Minha filha ganhou de presente de aniversário um item de segunda necessidade e resolvi trocar na loja por um sapato, algo mais importante neste momento. A vendedora chegou dizendo que tinha o must da hora. Imaginei que fosse algo como uma sola especial, um formato ergonômico, qualidades realmente importantes, um avanço de fato significativo. Mas, para meu espanto, a grande novidade é que o sapatinho, além de ser cheio de lantejoulas e acender luzes a cada pisada, também muda de cor. Hm. Tá. Pisquei algumas vezes, olhei para a sorridente vendedora com olhar entre o estoico e o incrédulo e optei por outro modelo, que fosse apenas confortável e que estivesse uns dois números acima do que calça minha filha, para durar por mais tempo. Algo de fato útil. E não o que não acrescenta nada. Sapato que pisca? Que muda de cor? Para quê? Pensando nisso, me dei conta de que essa valorização de coisas desimportantes em detrimento das fundamentais não ocorre só na indústria dos calçados. No nosso meio vivemos o mesmo fenômeno.
Vamos pensar. Em primeira análise, um sapato serve para proteger nossos pés dos pedregulhos da caminhada, para evitar que uma topada quebre uma unha, para resguardar nossos frágeis pés dos danos que longos passeios lhes causariam. Só que o que está sendo valorizado neles são características que não têm a ver com nada disso. A Bíblia nos ensina que o cerne da nossa fé é amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Mas o que tem estado sob os holofotes são aspectos secundários, que não mereceriam muito de nosso tempo.
Um exemplo: em vez de discutirmos o que temos feito para ajudar órfãos e viúvas em suas tribulações (que é, segundo Tiago, “A religião que Deus, o nosso Pai, aceita como pura e imaculada”), estamos gastando horas e mais horas, por exemplo, em debates sobre a eterna querela “calvinismo versus arminianismo”. Outro exemplo: em vez de nos unirmos para encontrar o melhor caminho para discipular vidas, investimos nosso precioso tempo discutindo se crente pode ou não fazer tatuagem e usar piercing. E assim seguimos, gastando litros de saliva para defender nossos pontos de vista sobre temas que não mereceram nenhuma ou quase nenhuma atenção de Jesus.
Nos três anos em que passou ensinando, Cristo falou muito sobre arrependimento e perdão. Interessante é que nunca vi uma conferência teológica sobre o tema – mas já vi sobre questões como Missão Integral, sobre “a Igreja relevante” (precisa de uma conferência para saber que a Igreja relevante é aquela que ama a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo?!) e outros temas do gênero. E, enquanto ficamos num interminável disse-me-disse sobre se embarcamos ou não em novidades, a Igreja segue em grande parte incompetente quando o assunto é perdoar e amar. E, entenda: quando falo “Igreja” não estou me referindo a uma quimera maligna e institucional à qual devemos nos opor como Quixotes contra moinhos de vento, tampouco a meia dúzia de líderes malignos e corruptos.
Ao me referir a “Igreja”, estou falando sobre eu e você. Pessoas.
A Igreja tem estado fora de foco. No Cristianismo, a teologia é fundamental e o sobrenatural é indispensável, mas muitos de nós estão perdidos entre teologismos sem vida e misticismos exagerados. Decoramos livros de duas mil páginas sobre se o Evangelho deve mudar de cor mas esquecemos de atentar para coisas simples, como se ele tem uma sola que proteja nossos pés na caminhada da vida. Ou perdemos tempo cobrando que o povo fique gritando “glória” na hora da pregação em vez de dirigir nossa atenção para se temos agido conforme a lâmpada para nossos pés.
Copiando Martin Luther King: eu tenho um sonho. Meses atrás, meu sonho era ver uma grande limpeza na Igreja: o fim da Teologia da Prosperidade, a extinção da heresia da confissão positiva, a pulverização das práticas neopentecostais esdrúxulas, a maturação do lado infantil da Igreja emergente, a erradicação do envolvimento da Igreja na política partidária, a destruição do sistema de celebridades gospel, a prisão de falsos líderes evangélicos que enganam o povo com suas campanhas estelionatárias, a eliminação de teologias apócrifas e distorcidas e muito mais.
Só que meu sonho mudou. Pois parei. Suspirei. Respirei fundo. Pequei. Apanhei. Fui moído sob muitos aspectos. Travei longas conversas com o Senhor. E, com tudo isso, refleti. E cheguei à conclusão de que essa é uma guerra que, na sociedade pluralista e descentralizada em que vivemos, nunca terá fim. É tentar segurar o vento. Ou deter as águas de um tsunami com as mãos. Em outras palavras: é perda de tempo. Não somos mais a Igreja de 1.700 anos atrás, que resolvia suas disputas num concílio e decidia no voto se algo era heresia ou ortodoxia: o monstro de nossos dias tem muito mais tentáculos e, para se dobrar à verdade bíblica, depende muito menos de blá blá blá pseudoapologético e muito mais de oração. Muito menos de cansativos debates e muito mais de contrição. Muito menos de agressões e polêmicos manifestos on-line e muito mais da manifestação prática do fruto do Espírito nos relacionamentos.
A Igreja está com uma boca do tamanho do mundo para falar, mas com um coração do tamanho de uma formiga para amar.
Nos esquecemos que só Deus muda as coisas, mas, por vaidade, queremos nos tornar os paladinos do Evangelho. Triste Igreja nos tornamos, inchada em seu ego mas a léguas de distância daquilo que de fato muda o mundo. Hoje, concentro minhas energias no mais elementar do Evangelho: amor ao próximo. Vida de santidade. Perdão dos pecados. Ajuda aos necessitados. Jesus de Nazaré.
Depois de um período de quase um ano de reflexão, oração e leituras direcionadas das Escrituras, hoje acredito que Jesus está pouquíssimo interessado se eu sou calvinista ou arminiano, se sou adepto da Missão Integral ou não, se minha igreja tem cinco ou dez vitrais, se congrego com 50 ou 5.000 membros, e muitíssimo preocupado com o fato de eu dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, hospedar o forasteiro, vestir quem está nu, visitar o enfermo, ver o presidiário. Não adianta querermos combater sistemas de pensamento e doutrinas teológicas aviltantes enquanto ao nosso lado um pobre morre de fome, um pecador é abandonado pelos irmãos, um doente padece solitário, um órfão chora de frio, uma viúva pede esmolas nas janelas de nossos carrões com ar-condicionado, um perdido caminha a passos largos para as trevas. Primeiro o que vem primeiro e depois o resto. Jesus veio à terra para estender a mão. Mas e nós? Temos feito isso? Ou temos investindo nosso tempo em debater qual é a melhor forma de estender a mão enquanto a mantemos encolhida?
A vaidade humana impera entre nossas lideranças. A arrogância teológica impera entre nossos acadêmicos. O ambição por poder e dinheiro impera por trás das paredes de muitas igrejas. O amor ao próximo e a preocupação com os outros mais do que conosco mesmo desapareceu enormemente da cristandade. Amamos o próximo quando e conforme nos convém. Valorizamos o outro quando nos interessa. Estendemos a mão para quem tem algo a nos oferecer. Essa é a igreja falida.
A Igreja pulsante e viva não tem lantejoulas ou luzes pisca-pisca. Ela tem um solado firme de amor ao próximo. Não perde seu tempo com discussões intermináveis ou com vaidades teológicas, mas se dedica a abrir mão de si pelos outros. Não se preocupa se o que amarra melhor é um cadarço de algodão ou sintético, mas sim com a busca da santidade. Aliás, cadarço para quê?
Só o que peço a Deus é que nunca deixe morrer em meu coração esse amor. Amor por Cristo, expresso em amor pelo próximo. Glória ao Pai, expressa em amor pelo próximo. Louvor ao Espirito Santo, expresso em amor pelo próximo. Quero um sapato simples. Pode ser de tiras de couro bruto, solado rígido e sem tingimento. Os sapatinhos com lantejoulas e luzes brilhantes deixo para os vaidosos e aqueles que querem ver seus nomes em letras de neon e suas fotos em banners e cartazes. Para os arrogantes donos da verdade. Aqueles que glorificam os holofotes enquanto dizem “Soli Deo Gloria” da boca para fora. Que fazem o que criticam. Que não agem como pregam. Que tomam todas as decisões pensando somente em si. Que são a expressão do século 21 dos fariseus da época de Jesus. E falo com conhecimento de causa, porque eu já fui assim. Já corri atrás do vento, vivi de forma hipócrita e me preocupei com o que não é pão. Basta.
Amor. E que Deus nos livre de tudo o mais.
Paz a todos vocês que estão em Cristo.
Fonte:Blog Apenas
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