Por Daniel Santos
O que seria necessário para chamar a atenção de uma pessoa como Moisés? Ele era um homem com mais de setenta anos, tendo já a experiência de viver no contexto humilde dos escravos hebreus, no Egito; no palácio, como o filho da princesa do Egito e, finalmente, experimentava uma vida de pastor de ovelhas numa terra estranha, Midiã. Essa última fase de sua vida, deveu-se ao fato de ter matado um egípcio, precisando, então, de um asilo político no país vizinho.
O relato do primeiro encontro de Moisés com o Senhor é apresentado na narrativa de Êxodo a partir da visão da sarça que ardia e não se consumia. Ora, Moisés não era o tipo de pessoa que se impressionaria com qualquer coisa, era preciso algo contundente para despertar nele o interesse de aproximar e verificar o que exatamente estava acontecendo. Este é o princípio básico de uma pegadinha, atrair a atenção e envolvimento de alguém para uma cena que revelará, mais tarde, ter outro significado. Uma boa pegadinha não pode ser muito exagerada, sob pena de tornar-se óbvia; nem muito disfarçada, sob pena de perder seu poder de atração. Com isso em mente, pense na situação de Moisés: como chamar a atenção de um homem como ele? O que ele viu não teria nenhuma ligação direta com a mensagem que ele receberia. Deus poderia, se quisesse, simplesmente aparecer a Moisés e iniciar o diálogo. Foi assim com os patriarcas no passado; ele se apresentou a alguns deles em forma bastante pessoal, como foi o caso da visita do Senhor a Abraão nos carvalhais de Manre (Gn 18-19). Naquele contexto, o Senhor escolheu assumir a forma humana, juntamente com dois anjos que também assumiram a forma humana, e os três se aproximaram do patriarca Abraão. A narrativa bíblica nos diz que Abraão teve uma atitude semelhante à de Moisés diante da visitação do Senhor: Olhou, aproximou-se e prostrou-se (Gn 18.2). No caso de Abraão, o elemento responsável por capturar a atenção do observador foi a surpresa da visita, já que a identidade dos visitantes não foi revelada nem percebida por Abraão antes de um longo período de comunhão. Por que, então, o Senhor resolveu armar esta “pegadinha” para atrair a atenção de Moisés?
1. Deus queria testar a atenção de Moisés
Ao contrário do que aconteceu com Abraão, a manifestação de Deus foi extremamente sutil. Moisés estava acostumado a ver fogo, a ver uma sarça pegando fogo, mas ele nunca tinha visto uma sarça pegando fogo sem ser consumida. A primeira ação de Deus, então, foi um teste da atenção de Moisés. Até que ponto Moisés conseguiria perceber a natureza misteriosa daquela visão? Observe que o elemento responsável por capturar a atenção não foi nem o anjo do Senhor (que apareceu no meio da chama) nem o fogo, propriamente dito, mas o fato da chama não afetar a folhagem daquele arbusto. Embora o texto afirme ser o Senhor quem estava aparecendo no meio da sarça, o desenrolar na narrativa mostra que Moisés não percebeu isso imediatamente (reação semelhante à de Abraão). Moisés ficou impressionado com a cena e resolveu aproximar-se para investigar mais de perto. A justificativa, por trás de sua decisão de aproximar-se do fenômeno que ele possivelmente já vinha observando há algum tempo, é resumida na seguinte pergunta: “por que a sarça não se queima?” (Êx 3.1). Obviamente, a distância inicial não despertou em Moisés a hipótese de ser aquilo uma manifestação divina. Sua motivação inicial foi a verificação desse aparente mistério que quebrava a monotonia e a rotina diária de um pastor de ovelhas nas regiões do deserto do Sinai. O Senhor teve até que o proibir de chegar muito perto. Assim sendo, Moisés passou no teste de atenção. O que Deus precisaria para testar a sua atenção hoje?
II. Deus queria testar a devoção de Moisés
Após ter sido informado de que o fenômeno se tratava de uma aparição divina do Deus de seus pais, Moisés esconde o seu rosto imediatamente, temendo as consequências de ver o Deus de Abraão, Isaque e Jacó face a face. Dá-se aqui o início de um grande relacionamento que deveria crescer muito, porém vagarosamente, ao ponto de Moisés ser referido, quarenta anos depois, como aquele com quem o Senhor falava face a face, como alguém falando com seu amigo (Êx 33.11). É curioso, então, que a visão que Moisés teve do Senhor no meio da sarça tenha marcado o início de um relacionamento profundo e duradouro, mesmo não tendo sido uma visão em forma humana, como foi no caso de Abraão.
As primeiras instruções que Moisés recebeu ao aproximar-se da sarça deixaram claro que o fenômeno em si era apenas uma maneira de captar a sua atenção. O Senhor começou a lhe falar do meio da sarça, ou seja, por meio do anjo do Senhor que estava no meio da chama, e o foco de interesse da narrativa muda imediatamente para outra dimensão (3.4-5). A narrativa bíblica não tem qualquer interesse em responder a pergunta inicial de Moisés: “por que a sarça não se consumia?”, muito menos justificar a aparição do anjo do Senhor no meio da chama. O foco de interesse, agora, é a santidade daquele que está falando por meio do anjo do Senhor no meio do fogo, daí a proibição de se aproximar demais. Podemos afirmar, diante disso, que Moisés passou também no teste da devoção; ele respondeu prontamente à instrução daquele que se apresentou como o Deus dos patriarcas. Uma reação possível seria a de incredulidade, como foi o caso de Manoá (Juízes 13) e Zacarias, pai de João Batista (Lucas 1.20).
III. Deus queria testar a tradição de Moisés
Eu sou o Deus de vossos pais (Êx 3.6). Para uma pessoa que foi criada por uma mãe hebreia e, posteriormente, adotada por uma egípcia; a expressão “vossos pais” ganha um novo elemento atrativo. Será que, após o período de convivência com a cultura e a tradição egípcia da sua mãe adotiva, Moisés ainda retinha a tradição religiosa de sua mãe hebreia? Com essa simples frase, o Senhor se apresenta como o Deus que guiou os patriarcas Abraão, Isaque e Jacó e que com eles fez aliança. A referência aos patriarcas não tem a finalidade de ajudar Moisés a se lembrar de quem estava falando, mas, sim, de estabelecer uma conexão necessária e inevitável entre a era abraâmica e a mosaica. Essa conexão é necessária porque o diálogo a seguir poderia ser interpretado de um ponto de vista puramente humano e horizontal, se não tivéssemos essa pequena, porém profunda, apresentação do Senhor. A identificação do Deus de Israel como alguém distinto criou a atmosfera de um diálogo entre duas pessoas; Moisés não estava delirando ou tendo alucinações, no forte calor do deserto, mas, sim, participando de um verdadeiro diálogo entre dois seres pessoais. Na verdade, essa característica se tornou um marco distintivo do Deus de Israel como alguém que fala com os seres humanos, com voz de seres humanos (Dt 5.4, 22).
Além disso, o Deus que se apresenta demonstrou interesse pelo povo hebreu e não pelo egípcio: “Eis que tenho visto a aflição do meu povo” (Êx 3.7-9). Nesses três versos, o Senhor deixa bem claro que ele havia acompanhado de perto a situação dos hebreus no Egito. Ele garante a Moisés que o clamor dos hebreus (3.7) e a sua aflição por causa dos seus opressores (3.8) não tinham passado despercebidos. A pergunta que comumente tem sido feita nesse trecho da narrativa é o que exatamente motivou a descida do Senhor para livrar o seu povo, Israel. Teria sido o sofrimento do seu povo, a opressão praticada pelos egípcios, ou o clamor que foi levantado? As três situações estão, de certo modo, associadas, mas o motivo apresentado na narrativa precisa ser distinguido claramente. A afirmação, “pois, agora o clamor dos Israelitas chegou a mim” (3.9), parece ser o ponto decisivo quando Deus resolveu agir. Doutra sorte, pareceria que o Senhor havia ouvido e visto o sofrimento e o clamor do seu povo por tanto tempo e só agora resolveu tomar uma atitude.
A escravidão e opressão do povo precisam ser entendidas do ponto de vista já mencionado, isto é, da perspectiva da promessa abraâmica. Segundo o relato de Gênesis 15, o Senhor foi enfático a respeito do futuro da descendência de Abraão: “Sabe, com certeza, que a tua posteridade será peregrina em terra alheia, e será reduzida a escravidão, e será afligida por quatrocentos anos” (15.13). Nesse texto, encontramos os dois termos utilizados no relato de Êxodo: escravidão e aflição. Se olharmos então para o relato de Êxodo 3 da perspectiva de Gn 15.13-16, a decisão de Deus de agir em favor do seu povo representa o início do cumprimento dos eventos escatológicos prometidos ao patriarca Abraão, pois ele já sabia que após quatrocentos anos o povo sairia do cativeiro. A correlação entre os eventos do êxodo e a promessa abraâmica é indubitavelmente confirmada pelo próprio narrador em Êxodo, quando ele conclui o relato inicial dos eventos no Egito com as seguintes palavras: “ouvindo Deus o seu [do povo hebreu] gemido, lembrou-se da aliança com Abraão, com Isaque e com Jacó” (Êx 2.24). Observe, então, que o fato de o gemido e clamor do povo terem chegado aos ouvidos do Senhor, não é o elemento determinante por si só; mas, sim, o fato de Deus ter se lembrado das promessas feitas aos patriarcas. Mais uma vez, à luz do que já tinha sido dito a Abraão, “lembrou-se de” não significa que o Senhor tivesse se esquecido daquilo que prometera há tanto tempo, mas aponta para o período determinado quando todas essas promessas voltariam a ocupar o centro das atenções de Deus. Aquilo que foi manifestado ao patriarca Abraão numa perspectiva escatológica estava, nos dias do êxodo, começando a se tornar realidade. Mais uma vez, Moisés parece passar no teste da tradição.
Há três perguntas que resumem o que vimos até aqui:
1) Como anda a nossa atenção para com o que Deus está fazendo em nosso meio?
2) Como anda a nossa devoção em resposta àquilo que Deus requer de nós em sua palavra?
3) Qual tem sido a tradição com a qual temos mais e mais nos identificado?
2) Como anda a nossa devoção em resposta àquilo que Deus requer de nós em sua palavra?
3) Qual tem sido a tradição com a qual temos mais e mais nos identificado?
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