quinta-feira, 17 de novembro de 2016

LIVRE-ARBITRIO: UM GUIA PARA INICIANTES


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Por John Piper

Antes da queda de Adão, o homem era sem pecado e capaz de não pecar. Pois, “viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom” (Gênesis 1.31). Mas o homem também era capaz de pecar. Porque Deus disse: “no dia em que dela [da árvore] comeres, certamente morrerás” (Gênesis 2.17).


Assim que Adão caiu em pecado, a natureza humana foi profundamente alterada. Agora o homem era incapaz de não pecar. Na queda, a natureza humana perdeu a sua liberdade para não pecar.

Por que o homem é incapaz de não pecar? Porque após a queda “o que é nascido da carne é carne” (João 3.6), e “a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus; na verdade, ela não pode ser, e aqueles que estão na carne não podem agradar a Deus” (Romanos 8.7-8, tradução minha). Ou, como Paulo diz em 1Coríntios 2.14: “Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente”.

Observe o termo não pode que aparece duas vezes em Romanos 8.7-8 e outra vez em 1Coríntios 2.14. Esta é a natureza de todos os seres humanos quando nascemos — o que Paulo chama de “homem natural”, e Jesus chama de “nascido da carne”.

Rebelde demais para se submeter a Deus

Paulo diz que isso significa que nesta condição nós “não podemos agradar a Deus”, ou, dito de outra forma, “não somos capazes de não pecar”. A razão básica é que o homem natural prefere a sua própria autonomia e sua própria glória acima da soberania e da glória de Deus. Isto é o que Paulo intenciona quando diz: “a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita…”.

A submissão alegre à autoridade de Deus, e ao superior valor e beleza de Deus, é algo que não somos capazes de fazer. Isto não acontece porque somos impedidos de fazer o que gostaríamos. É porque nós preferimos a nossa própria autoridade, e estimamos o nosso próprio valor, acima de Deus. Não podemos preferir a Deus como extremamente valioso enquanto preferimos supremamente a nós mesmos.

A razão para esta preferência idólatra é que somos moralmente cegos para a glória de Cristo, de modo que não podemos valorizar a sua glória como superior à nossa. Satanás está empenhado para nos confirmar nesta preferência ofuscante. “O deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo” (2Coríntios 4.4). Assim, quando o homem natural olha para a glória de Deus, seja na natureza ou no evangelho, ele não vê beleza e valor supremos.

Para crermos, nós precisamos ver beleza

Esta é a razão fundamental pela qual o homem natural não pode crer em Cristo. Crer não é apenas afirmar a verdade sobre Jesus, mas também é ver a beleza e o valor de Jesus, de tal maneira que nós o recebemos como nosso tesouro supremo. A forma como Jesus expressou isso foi dizer: “Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; quem ama seu filho ou sua filha mais do que a mim não é digno de mim” (Mateus 10.37). Não existe uma relação salvífica com Jesus onde a fé não consiste em valorizar Jesus acima de seus mais queridos tesouros terrenos.

Onde esse despertamento para a glória e valor supremos de Jesus (chamado de “novo nascimento”) não aconteceu, o coração humano caído é incapaz de crer em Jesus. É por isso que Jesus disse aos que se opunham a ele: “Como podeis crer, vós os que aceitais glória uns dos outros e, contudo, não procurais a glória que vem do Deus único?” (João 5.44). Em outras palavras, você não pode crer em Jesus, enquanto você tem maior estima pela glória humana do que pela dele. Pois, crer é exatamente o oposto. Crer em Jesus significa recebê-lo como supremamente glorioso e valioso (João 1.12).

É por isso que o homem natural não pode agradar a Deus. Pois, ele não pode crer em Deus desta maneira. Ele não pode receber a Deus e seu Filho como extremamente valiosos. Mas a Bíblia diz: “sem fé é impossível agradar a Deus” (Hebreus 11.6). Ou, como Paulo diz, ainda mais enfaticamente, em Romanos 14.23: “tudo o que não provém de fé é pecado”.

A grande renovação por meio de Cristo

Portanto, a dura realidade é que os seres humanos, como nós nascemos — com uma comum natureza humana caída — não somos capazes de não pecar. Somos, como Paulo e Jesus afirmam: “escravos do pecado” (João 8.34; Romanos 6.20). O remédio para esta condição é a livre e soberana graça de Deus operando uma mudança na essência de nossa natureza caída.

Esta mudança miraculosa, comprada pelo sangue, operada pelo Espírito a partir da qual nós percebemos e preferimos é descrita de diversas formas no Novo Testamento. Por exemplo:

Deus iluminando nossos corações: “Porque Deus, que disse: Das trevas resplandecerá a luz, ele mesmo resplandeceu em nosso coração, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Cristo” (2Corinthians 4.6).

Deus fazendo com que nasçamos de novo: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo a sua muita misericórdia, nos regenerou para uma viva esperança, mediante a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos” (1Pedro 1.3).

Deus nos ressuscitando dentre os mortos: “Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou, e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo” (Efésios 2.4-5).

O dom divino do arrependimento: “que Deus lhes conceda não só o arrependimento para conhecerem plenamente a verdade, mas também o retorno à sensatez, livrando-se eles dos laços do diabo, tendo sido feitos cativos por ele para cumprirem a sua vontade” (2Timóteo 2.25-26).

O dom divino da fé: “Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo e não somente de crerdes nele” (Filipenses 1.29).

O efeito dessa mudança miraculosa, operada Espírito é que nós já não somos cegos para a beleza e glória supremas de Cristo; já não preferimos a nossa própria autonomia em vez do governo soberano de Deus; já não amamos a criação de Deus mais do que o Criador; apegamo-nos a Cristo como extremamente valioso; nós confiamos em suas promessas; somos libertos da nossa escravidão à incredulidade e ao pecado, e finalmente, somos capazes de não pecar. “Porque o pecado não terá domínio sobre vós” (Romanos 6.14).

Uma definição de “livre-arbítrio”

Agora, onde o “livre-arbítrio” se encaixa nesta descrição bíblica da nossa condição no mundo?

Para responder a essa pergunta, precisamos de uma definição clara de “livre-arbítrio”. Pode ser útil oferecer três definições: Uma a partir do uso popular, uma a partir do uso bíblico comum e uma proveniente de uma discussão mais técnica.

Uma definição popular

Popularmente, o que a maioria das pessoas querem dizer quando perguntam sobre o livre-arbítrio? Eu penso que a maioria das pessoas quer dizer algo como isto: A nossa vontade é livre se as nossas preferências e nossas escolhas são realmente nossas, de tal forma que possamos ser justamente considerados responsáveis, sejam elas boas ou más. O oposto seria que as nossas preferências e escolhas não são nossas, mas que somos robôs ou fantoches não possuindo quaisquer atos significativos de preferência ou escolha.

Por essa definição, o livre-arbítrio existe tanto em seres humanos caídos quanto nos redimidos. Pois, o que a queda provocou não foi que deixamos de ser pessoas autênticas que preferem e escolhem, mas que a nossa rebelião nos inclina a preferir e escolher o mal. Todos preferem e escolhem de acordo com a sua natureza. Se a natureza é rebelde e insubordinada, como Paulo descreve em Romanos 8.7-8, nós preferimos e escolhemos de acordo com isso. Se a nossa natureza for libertada da rebelião, ela começa a preferir e escolher o que é verdadeiramente belo. Em ambos os casos, a nossa preferência e escolha é “nossa”, e somos “responsáveis” sejam elas boas ou más.

Uma definição bíblica

A segunda definição de livre-arbítrio, expressa na linguagem de Jesus e Paulo, é esta: A vontade humana é livre quando não está sob a escravidão de preferir e escolher irracionalmente. Ela é livre quando é libertada de preferir o que é infinitamente menos preferível do que Deus e de escolher o que levará à destruição. O oposto dessa visão seria que tais preferências e escolhas irracionais e suicidas devem ser chamadas de “liberdade”.

Com base nesta definição, somente aqueles que nasceram de novo têm livre-arbítrio. Esta é a forma que Jesus definiu a noção de liberdade em João 8.32: “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. E esta é a maneira como Paulo fala sobre liberdade em Romanos 6: “Mas graças a Deus porque, outrora, escravos do pecado, contudo, viestes a obedecer de coração à forma de doutrina a que fostes entregues; e, uma vez libertados do pecado, fostes feitos servos da justiça” (Romanos 6.17-18).

Uma definição técnica

A definição mais técnica de livre-arbítrio que algumas pessoas usam é esta: Nós temos livre-arbítrio, se em última instância ou decisivamente nos autodeterminamos, e as únicas preferências e escolhas pelas quais podemos ser responsabilizados são aqueles nas quais, finalmente ou decisivamente, nos autodeterminamos. A palavra-chave aqui é finalmente ou decisivamente. A questão não é apenas que as escolhas são autodeterminadas, mas que o eu é o final ou decisivo determinador de si mesmo. O oposto desta definição seria que Deus é o único ser que, em última análise, determina a si mesmo, e ele mesmo é, finalmente, o ordenador de todas as coisas, incluindo todas as escolhas, embora existam muitas ou diversas outras causas intervenientes.

Nesta definição, nenhum ser humano tem livre-arbítrio, em tempo algum. Em última análise, nem antes ou após a queda, ou no céu, as criaturas determinam a si mesmas. Há grandes níveis de autodeterminação, como a Bíblia evidencia frequentemente, mas o homem nunca é a causa final ou decisiva de suas preferências e escolhas. Quando a agência do homem e a agência de Deus são comparadas, ambas são reais, mas a de Deus é decisiva. Todavia — e aqui está o mistério que faz com que muitos tropecem — Deus é sempre decisivo de tal forma que a agência do homem é real, e a sua responsabilidade permanece.

Mas, isso não é inconcebível?

Eu digo que muitos tropeçam nisso porque eles o consideram como inconcebível. A minha perspectiva é que a Bíblia ensina a compatibilidade entre a decisiva soberania de Deus e a responsabilidade do homem. Se isso parece inconcebível para você, eu pediria que você não permita que isso o impeça de crer no que a Bíblia ensina.

Mas pode ser útil fazer uma tentativa de ajudar a dar sentido a isso. Os atos de uma pessoa podem ser justamente considerados louváveis ou condenáveis se eles fluem de uma natureza boa ou má que o inclina a apenas um caminho?

Aqui está parte da resposta de João Calvino a essa objeção:

A bondade de Deus é tão entrelaçada à sua divindade, que não é mais necessário ser Deus do que ser bom; enquanto que o diabo, por sua queda, tanto se alienou da bondade que nada pode fazer, senão o mal.

Se alguém mencionar a zombaria profana de que pouco louvor é devido a Deus por uma bondade a que ele é compelido, não é óbvio que cada homem responda: “Não é devido à forçosa compulsão, mas à sua bondade infinita, que ele não pode fazer o mal”?

Portanto, se o livre-arbítrio de Deus em fazer o bem não é impedido porque ele necessariamente deve fazer o bem; e se o diabo, que nada pode fazer, senão o mal, mesmo assim peca voluntariamente; pode ser dito que o homem peca menos voluntariamente, porque ele está sob uma necessidade de pecar? (Institutas, II.3.5).

Muito mais poderia ser dito. Questionamentos não faltam. Meu apelo é que você se concentre no verdadeiro ensino das Escrituras. Tente não levar pressupostos filosóficos ao texto (pressupostos como: a responsabilidade humana não pode coexistir com Deus decisivamente fazer “todas as coisas conforme o conselho da sua vontade”, Efésios 1.11). Deixe que a Bíblia fale plena e profundamente. Confie que um dia não veremos em espelho, obscuramente, mas face a face (1Coríntios 13.12).
Por: John Piper - Original: A Beginner’s Guide to ‘Free Will’
Tradução: Camila Rebeca Almeida. Revisão: William Teixeira. - Ministério Fiel. 


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