Após termos analisado as igrejas do tipo gueto e também aquelas que absorvem o seu contexto sem restrições, descaracterizando a proposta missionária do povo de Deus, apresentamos a terceiro e último tipo, a igreja “peregrina”. Trata-se da opção que abraçamos e deve ser entendida como peregrina, porque está de passagem no mundo, mas vive, marca e altera o contexto por onde passa. Faz-se necessário, logo de início, estabelecer que a proposta de uma teologia peregrina para a missão da igreja é inquestionavelmente de Deus, pois é assim que o povo de Deus é descrito nas Escrituras. Seu objetivo final não é aqui, nem ser sucesso aqui, nem ajuntar tesouros daqui. A igreja deve ser entendida como o povo escolhido por Deus e por ele vocacionado e enviado com uma missão no mundo (1 Pe 2.9-10), seja na cidade, na tribo ou na área rural. Isto posto, pode-se afirmar que a igreja está no mundo, mas não é do mundo. Por causa disto vive um ideal que “já é” e, ao mesmo tempo, “ainda não” chegou em plenitude. É a partir desse pressuposto que se torna possível estabelecer uma teologia sadia e equilibrada que fundamente a ação missionária da igreja em qualquer lugar.
O paradoxo do “já” e do “ainda não” é o conceito que apresenta a comunidade dos eleitos como peregrina no mundo, porém, não sem rumo ou propósito, mas como uma comunidade “cruzadora-de-fronteiras-em-forma-de-serva na cidade”1. O povo de Deus é peregrino porque não se identifica com a desordem social, não abraça todos os valores do seu tempo e povo, nem se associa com a violência, injustiça e promiscuidades, estejam onde estiverem. Por outro lado, o fato de ser povo peregrino não descarta a realidade de viver a responsabilidade civil de estar na cidade ou no campo; e mais, a paz do povo de Deus, em certo grau, depende da paz do local onde este povo está. Foi exatamente por assim ser que Deus ordenou ao profeta Jeremias que mandasse o povo de Israel, cativo, oprimido, mas peregrino, orar pela paz da cidade de Babilônia (Jr 29.7).
A igreja peregrina não admite o gueto. Uma igreja fiel a Jesus não está apenas na cidade, ela vive a cidade, seus problemas, e também sofre as consequências da “loucura criativa” que a vida urbana pecaminosa produz. Como povo com uma missão, é preciso desenvolver pela cidade o mesmo amor e compaixão que foram vivenciados por Jesus, o qual chorou ao constatar a perversidade e a dureza de coração dos seus habitantes (Lc 13.24). Ser povo de Deus que vive na cidade não significa absorvê-la, mas entendê-la, e ao participar de suas redes de criação e relacionamentos, ser o seu sal e a sua luz (Mt 5.13-16). José Comblin, teólogo católico, mesmo sendo um defensor da teologia ecumênica de missões do Conselho Mundial de Igrejas que abraça a imersão, não deixou de refletir a posição de igreja peregrina ao escrever: “Os cristãos são enviados às cidades, não para assimilarem suas estruturas, mas para transformá-las, para libertá-las de seus pecados, para adaptá-las à verdadeira comunidade humana”2.
Este é o ponto de equilíbrio da missão da igreja peregrina: a igreja deve se aproximar o bastante da vida da cidade para manter relacionamentos íntegros, testemunhar e plantar as sementes da mensagem de salvação de Cristo, mas por ser peregrina tem seus olhos voltados para os céus. Enquanto está neste mundo “vive, implanta e expande os valores do Reino”, e é isto que deve ser entendido por “sermos humanos”, seres que refletem a imagem de Deus.
Porém, há também o fator do “ainda não”. A igreja não é do mundo, mas ela possui dupla cidadania. Como comunidade que é santa e santificada pela graça de Jesus, a igreja mantém-se afastada o bastante para não ser manchada pelo fascínio dos sistemas corruptos e corruptores da cidade, pois é cidadã da cidade de Deus. Porém, como homens e mulheres cristãos ligados ao tempo e espaço urbanos, há neles uma parcela de responsabilidade de servir como cidadão da “cidade-do-homem” o “próximo-vizinho-distante” com tudo o que o Evangelho ensina.
A preservação da santidade pregada pela igreja peregrina impulsiona a comunidade dos salvos a um equilíbrio de ação “kerigmática” (pregação) e “diaconal” na cidade, sem baratear ou regatear sua “koinonia” (comunhão). Nesta harmonia de ações está a base para rejeitar a rendição ao isolacionismo urbano como fonte de proteção para se viver em segurança na cidade. Se para o teólogo Harvey Cox, defensor do secularismo, o ser desconhecido na cidade é fator de sobrevivência e segurança, a proposta de comunhão da igreja a leva a nadar contra a correnteza 3. Isto acontece porque ela é a comunidade peregrina e missionária eleita e transformada pelo Espírito Santo que age oferecendo ampla comunhão com Deus e com o próximo, seja pobre ou rico, esteja na cidade ou no campo. É, então, a partir desta ótica, que se pode construir uma teologia que ajude a igreja, em particular a igreja brasileira, ser autenticamente missionária e relevante no contexto onde atua.
Valdir Steuernagel, citando o teólogo francês Jacques Ellul 4, sugere seis considerações missionárias práticas e equilibradas para a igreja, que explicitam as bases da teologia peregrina de missões: (1) O cristão no mundo é revolucionário, 5 ele atua na conservação do mundo através do inesgotável poder transformador de Deus; (2) O cristão urbano, para ser ouvido, necessita não depender de qualquer estratégia política ou econômica, todas suas ações passam pelo teste da honra a Deus; (3) O cristão é cidadão de dois reinos: no mundo participa da sociedade, mas possui outro Senhor que determina a sua vida, sua participação é de anunciar o evangelho e proporcionar que a vida seja no mundo suportável; (4) O objetivo e o fim da história são a vinda do Senhor, a certeza do Reino de Deus que vem determina o viver hoje; (5) O cristão urbano é o único que está capacitado, a partir do amor, para romper com a escravidão opressora da sociedade citadina; (6) O cristão precisa conhecer o homem moderno, o seu mundo e seus pressupostos e agir responsável e comprometidamente com as Escrituras.
Firmemente ancorados nas Sagradas Escrituras aprendemos a doutrina de uma igreja sacerdotal, profética e eleita para salvação e serviço missionário 6.Com essa fundamentação pode-se laçar as bases teológicas e bíblicas que justifiquem, norteiem e propulsionem uma missiologia sadia e relevante. Como igreja de Cristo é necessário reconhecer que somos povo missionário, povo que tem uma missão, e isto produz não apenas uma consciência correta, mas obediência à missão. Por assim crermos que a igreja de Jesus precisa discipular e produzir cristãos comprometidos com pelo menos cinco aspectos da tarefa missionária:
1. Estamos no mundo, mas não pertencemos a ele
Esta consciência não reproduz a postura do “ET do céu na terra”, pois cremos que a igreja tem a responsabilidade de participar positivamente do que chamamos de humanidade. A diferença reside no fato de sermos seres humanos que primeiramente são súditos do Reino de Deus, enviados com a missão de implantar os valores deste Reino onde estamos e passamos.
2. Deus é Rei de toda a terra
O Senhor tem autoridade no céu, na terra e em todo universo (Mt 28.18). Os principados e potestades foram expostos ao ridículo na cruz de Cristo (Cl 2.15). Sermos servos do Deus soberano, Senhor de tudo e todos, nos torna missionários triunfantes, pois a “Missio Dei” nunca poderá ser frustrada, nem as portas do inferno tem poder contra a obra que a igreja executa. Deus concede sua autoridade para o seu povo cumprir a missão.
3. O pecado não desmaia, mata
Todo ser humano sem Cristo é escravo do pecado (Jo 8.34). É por isto que ele está realmente morto (Rm 5.12; 6.23; Ef 2.1-3) e totalmente incapacitado de decidir se quer ou não a Deus. A desqualificação e destruição causadas pelo pecado foram fatais e tornaram impossível qualquer restauração por parte de ser humano. O pecador não precisa de um ajuste, o ser humano é carente de total restauração, de vida, e isto é resultado da exclusiva obra do Espírito Santo (Jo 16.8-10) por meio da pregação do evangelho.
4. Aproximação ao máximo e afastamento necessário
Esta é uma marca distintiva e qualificadora da igreja peregrina. O mundo foi maculado e invadido pelo pecado e por ele está dominado. A igreja missionária se aproxima dele o máximo para mostrar e anunciar a vida que Jesus oferece. Mas, como imitadora de Cristo, mantém uma distância necessária o suficiente para que o “mundo-sistema-pervertido” não a contamine com suas influências e seduções diabólicas (1 Jo 3.15-16).
5. Nossa missão reflete dupla ação
A tarefa missionária da igreja possui duas ações de igual importância e relevância: a evangelização – responsabilidade de proclamação do evangelho por todos os crentes a todas as pessoas; e a ação social – atitude de todos os crentes através de boas obras para com todos que precisam de ajuda.Evangelizando, proclamamos as boas notícias que Jesus ama e perdoa o pecador e salva a todo aquele que nele crer. Agindo com boas obras, mostramos e repartimos com bondade o que Deus fez por nós e implantamos os valores do Reino de Deus. Isto reflete os dois grandes mandamentos: (1) O maior mandamento: Amar a Deus sobre todas as coisas e; (2) O segundo maior mandamento: Amar ao próximo como a si mesmo (Mc 12.29-31).
A história das missões é repleta de registros de como a igreja de Jesus marcou o seu tempo através do testemunho e das ações de pessoas dedicadas ao Senhor. Foram homens e mulheres que fomentaram e alcançaram mudanças sociais para muitos povos, através de obras sócias que impactaram milhares de pessoas carentes. Foram comunidades que, através do anúncio da preciosa mensagem de salvação através da fé e, Jesus Cristo, transformaram gerações. Esses muitos exemplos nos ensinam que hoje a igreja de Jesus, o povo escolhido para ser missionário, também pode e deve se dispor a ser usada como instrumento do poder Deus (Rm 6.13) para transformar vidas e até comunidades (1 Ts 1.5-10).
A vida do cristão nesse mundo é passageira. Sua missão aqui também é temporária, pois a sua morte ou a vinda de Cristo porão fim à tarefa missionária. Se você é igreja de Cristo, você faz parte de uma comunidade que está de passagem, você pertence a um povo peregrino em direção à cidade celestial (Hb 11.16; 13.14). Mas lembre-se sempre, enquanto aqui viver, você é um missionário. Cumpra a sua missão com obediência às Escrituras, dedicação a Cristo e sabendo usar as oportunidades para com os que estão fora da igreja (Cl 4.5).
Notas:
1. Bosh, Witness to the World, 248.
1. Bosh, Witness to the World, 248.
2. José Comblin, Teologia da Cidade, (São Paulo: Edições Paulinas, 1991), 60.
3. Cox é um dos expoentes da teologia da secularização que credita ao ser humano a capacidade de poder resolver os seus problemas, ao passo que rejeita uma diferenciação entre mundo e igreja. Esta ênfase predomina grande parte do seu livro. Ver Harvey Cox, A Cidade do Homem, São Paulo: Editora Paz e Terra, 1966.
4. Steuernagel, Igreja Comunidade Missionária, p. 222-3
5. Por revolucionário não deve ser entendido um dos pressupostos da Teologia da Libertação, mas o resultado transformador produzido pelo evangelho. O Cristão ao propor os valores do Reino de Deus, deseja implantar uma contra cultura cristã, e isto não deixa de ser uma proposta de mudança radical, capaz de gerar uma revolução de paz.
6. Clifford Christians, Earl J. Schipper e Wesley Smedes, Who in the World?, Grand Rapids: Eerdmans Publishing, 1992, p.110
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Sérgio Paulo Ribeiro Lyra é pastor e coordenador do Consórcio Presbiteriano para Ações Missionárias no Interior. Autor do livro “Cidades para a Glória de Deus” (Visão Mundial). É missiólogo e professor do Seminário Presbiteriano em Recife (PE).
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