Continuando a nossa tríplice classificação de ação missionária (leia a parte um aqui), o segundo grupo de comunidades evangélicas pode ser chamado de “Igrejas absorventes”. Estas comunidades vivem de modo oposto às comunidades do tipo gueto e rejeitam qualquer posição que exija separação do modo de vida cotidiano. Nas comunidades de absorção, o reino de Deus é o “aqui e agora”, não se deve esperar um “mundo novo” ou algo que está por vir, pois tudo isso já chegou com Jesus.
Focalizando especificamente a área missionária, é especialmente importante conhecer o berço desses pensamentos e propostas que se processaram nas reuniões do Concílio Mundial de Igrejas (World Council of Churches-WCC), onde a “imersão no mundo” tomou forma e voz. A partir de 1947 o WCC em Whitby no Canadá, estabeleceu um novo conceito missionário. Naquela assembleia foi dito que “missão não era conquistar o mundo para Cristo, mas solidariedade para com o mundo”,1 postura totalmente oposta à teologia bíblica e em concordância às ideias universalistas (posição teológica que acredita que todos serão salvos, de uma forma ou de outra), já reinantes na teologia de vários eruditos da época.
A maior identificação e ênfase com este posicionamento estavam nos teólogos e missiólogos que defendiam a chamada “teologia ecumênica de missões”, a qual buscava eliminar o dualismo entre o eterno e o temporal, corpo e alma, indivíduo e comunidade, igreja e mundo. De pronto, antecipo que a nossa proposta missionária não nos coloca em oposição completa a tal proposta de conciliação, mas também não nos leva a posição de que há plena harmonia.
Nas cinco últimas décadas, a tarefa missionária em muitas comunidades foi fortemente impactada pelas ideias da teologia abraçada nas reuniões do Concílio Mundial de Igrejas. Chegou-se ao absurdo de afirmar que não há necessidade de conversão, mas sim de “diálogo entre as diversas fés”, uma vez que Deus estaria presente em todas as religiões. Apesar da teologia de absorção não refletir um total conformismo com tudo o que a estrutura humana é e produz, ela entende a missão unicamente como a implantação do Shalom (paz) de Deus na cidade2, antecipando os resultados futuros do Reino de Deus para o agora. Na realização deste ideal entre os seres humanos, a igreja de Cristo seria apenas uma parte cooperadora. Uma vez que na proposta de absorção o instrumento missionário de Deus é o mundo todo, a igreja não é mais o Seu povo missionário, nem a comunidade escolhida com uma missão no mundo, porém, apenas mais um organismo onde Deus age missionariamente.
Tal proposta prega que a Igreja precisa apenas estar atenta ao que ocorre na história da raça humana, pois é no desenrolar dos fatos históricos da humanidade que Deus mostra e executa a sua agenda missionária. Entenda bem essa proposta. Ela aparenta ter bases nas Sagradas Escrituras quando procura estabelecer seu ponto de partida na verdade de que nada escapa a soberania de Deus. Entretanto, isto não significa que o alvo ou as ações soberanas divinas são sempre o Seu instrumento missionário. Pois se o instrumento missionário de Deus está no que ocorre no mundo, então a igreja de Jesus não é mais a agência divina das missões. Fazer missões significaria a necessidade de “apenas se identificar” com e onde Deus está agindo para, plena e totalmente, se envolver nos processos sociais, desenvolver constantemente o criticismo e tornar-se comunidade ativa nas reformas políticas e econômicas, sem preocupação com os valores e o anúncio do evangelho. A Missio Dei, ficaria como que escondida por trás de tudo o que ocorre no contexto urbano ou rural, cabendo à igreja cristã e todas as demais organizações “cooperadoras”, a tarefa de descobrir e reconhecer o que Deus está fazendo e simplesmente se engajar em tais ações.
Em suma, defender a teologia missionária de absorção é aceitar que Deus age através do mundo de igual forma como age através da Sua igreja, pois a igreja seria também o mundo e o mundo pode agir como missionário de Deus. A igreja é dita não ser “a agência” missionária, mas “uma agência cooperativa com o Shalom” que precisa ser implantado. Desta forma, a prática desses pressupostos missionários aplicada ao contexto urbano transforma a missão em vida secular, diluindo a missão no total de eventos que acontece na cidade.
Essa absorção do ambiente e da rede de ações urbanas e a imersão nos valores abraçados por uma sociedade alheia a verdade de Deus, invariavelmente ofusca o propósito missionário integral revelado nas Sagradas Escrituras, que segundo John Stott deve sempre ser evangelização (o anúncio da salvação pela fé em Jesus Cristo) e a ação social (a prática das boas obras planejadas eternamente por Deus – Ef 2.10). As igrejas absorventes do contexto do mundo descaracterizam a fé evangélica ou pela ênfase exacerbada direcionada à democratização dos “valores sociais”, ou pelo individualismo competitivo, egoísta e arrogante que a vida urbana produz. A igreja cristã em contato com o fascínio do que a cidade oferece, fascínio este que é ampliado pela ganância que corrompe, pode ser atraída e traída pelo “ter mais” para “ser mais”3, mesmo que o centro da proposta tenha desejado optar pela socialização do bem comum. Na teologia missionária de absorção fica, então, invertida a prioridade Deus-igreja-missão-mundo para Deus-mundo-missão-agências cooperadoras.
A prática missionária de absorção tem encontrado amplo apoio por parte de teólogos Católicos Romanos e também evangélicos que aceitam os posicionamentos basilares do Concílio Mundial de Igrejas. Por crerem no envolvimento pleno no mundo, as ações e participações sociais dessas igrejas aparecem com mais frequência e até mesmo eficiência, reconheço, embora comprometendo a eficácia e a real proposta do evangelho que é viver e anunciar a doutrina de Cristo. É honesto registrar que os adeptos dessa forma de ação missionária não dão as boas vindas aos males estruturais presente na sociedade.
A rejeição e crítica a uma prática missionária de plena identificação residem no fato de se focalizar em extremo a missão como ação social e na descrença da doutrina da depravação total do ser humano. Acredito na verdade bíblica que o ser humano nada pode fazer para restaurar o ideal de Deus, nem no âmbito relacional-social, nem no espiritual, daí a necessidade da graça divina (Ef 2.1-9). Também acredito que Deus chamou e credenciou a Sua igreja, e apenas ela, para ser o Seu povo escolhido, santificado e enviado ao mundo com uma missão (IPe 2.8-10). Acredito que Deus capacitou a igreja a viver o Reino de Deus para ser a Sua agência missionária no mundo, porém distinta do mundo (Jo 15.16-19).
Enquanto as ações missionárias de absorção proclamam e vivenciam que não deve haver distinção nem separação alguma entre povo não cristão e povo cristão, as comunidades que abraçam a teologia missionária de guetos, mesmo melhor compreendendo a missão da Igreja, procuram mantê-la bem longe da realidade vivencial da cidade-do-homem. De modo análogo ao gueto missionário, as comunidades que absorvem o jeito de viver e agir da sociedade sem o crivo dos valores da Bíblia, também produzem consequências desastrosas, multiplicando crentes que de Cristo possuem apenas o rótulo de cristão. Exponho a seguir algumas características e resultados danosos produzidos por essa opção missionária.
O cristão é do mundo
A absorção dos valores do mundo parte da premissa que não há razão alguma para se afastar de qualquer coisa que acontece no mundo, pois é Deus quem está agindo nele. A igreja apenas precisar identificar onde Deus está atuando e se envolver. O cristão é do mundo e deve agir nele e com ele. Isto gera crentes sem as marcas do evangelho.
Tudo e todos são de Deus
Não se trata apenas de afirmar que Deus é o criador e dono de tudo e todos, mas que Deus também age de forma salvadora fora do cristianismo. Isto significaria que um muçulmano ou um budista não precisa de Jesus, ele chegará a Deus, pois todos são de Deus. Para as igrejas absorventes não é necessário se preocupar em pregar o evangelho a outros povos, mas sim, “viver o evangelho” (entenda fazer o que julga certo) onde se vive, pois em cada lugar e povo da terra Deus já está agindo e salvando.
Faltam apenas ajustes
Ora, se tudo é de Deus e todos serão salvos pelo amor e bondade infinitos de Deus, dizem eles que os problemas humanos tais como maldades, fome e guerras que vemos não são consequências de um “mundo diabólico”, nem o fruto de um mundo que foi e é marcado pelo pecado. O que ocorre é que o ser humano precisa apenas de alguns ajustes para melhorar, ele vai melhorar e está melhorando. Não há necessidade de intervenção nem ação transformadora da parte de Deus (conversão), é preciso apenas que o ser humano, de alguma forma, “se aproxime de Deus”.
Frouxidão doutrinária quanto aos ensinos bíblicos
Toda vez que o ensino da Palavra de Deus for deturpado ou declarado ultrapassado, moralista ou inadequado sempre se deve esperar sérios danos e o surgimento de doutrinas humanistas ou secularistas (ou seja, a solução está na ação e intervenção humanas). O mundo como sistema diabólico e alheio a Deus se torna igreja e a igreja o absorve. Já não se sabe o que é verdade (ela se torna relativa), a Bíblia não é mais a única regra de fé e prática e o cristão perde sua distinção do não cristão. Neste contexto o “achismo” ganha vez, voz e destaque.
Evangelho corrompido
Uma vez que a doutrina bíblica foi deturpada e passou-se a aceitar a verdade como relativa, o pecado como aceitável e a salvação em Jesus como opcional, as boas novas do evangelho perdem o seu significado e relevância. O cristianismo se desfigura e é corrompido, produzindo uma fé que não mais reflete o caráter de Jesus. Via de regra, os padrões se tornam aqueles aceitos pela maioria, como se a voz do povo fosse a voz de Deus. Nesse “evangelho” humanizado pela absorção dos valores do homem, os padrões do sistema diabólico, sutil e progressivamente lançam suas raízes de obscuridade, objetivando fazer as pessoas pensar que são “sal e luz”, quando na verdade, por estarem longe do ensino da Bíblia, em “grandes trevas estão” (Mt 5.13-14; 6.23).
Notas:
David Bosch, Witness to the World, p. 176.
2 Shalom deve ser interpretado como a implantação da paz, justiça e libertação de todas as formas de opressão. Esta percepção da ação eclesiástica missionária foi defendida na reunião do WCC de 1952 em Willingen. Porém, a plena elaboração dessa posição e seu arcabouço teológico se tornaram mais contundentes em 1968 na assembléia de Uppsalla, quando se concluiu que “O mundo providencia a agenda missionária, e a igreja em si não é importante, mas sim o que ela faz é que possui valor”. Ver Valdir R. Steuernagel, Editor, Igreja Comunidade Missionária. São Paulo: ABU Editora, 1978. p. 214. Bosch, Witness to the World. p. 37.
3 Steuernagel. Igreja Comunidade Missionária. p. 214.
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Sérgio Paulo Ribeiro Lyra é pastor e coordenador do Consórcio Presbiteriano para Ações Missionárias no Interior. Autor do livro “Cidades para a Glória de Deus” (Visão Mundial). É missiólogo e professor do Seminário Presbiteriano em Recife (PE).
Fonte:ultimatoonline