O deserto é possivelmente uma das mais claras representações da ausência de vida e esperança. Beduínos e Tuaregues - povos do deserto - desenvolveram milenares técnicas de sobrevivência para resistirem à angustiante mistura de sol, calor e areia. Anos atrás atravessei a parte ocidental do Saara e, apesar do costume a temperaturas tropicais, nada me preparou para os 54 graus à sombra durante aquelas tardes. Lembro-me que o pensamento mais obsessivo e recorrente era simplesmente água, o elemento mais desejado em terras áridas.
Davi escreveu o Salmo 63 no deserto de Judá enquanto fugia de Saul. Encontrava-se em um dos momentos mais constrangedores de sua vida. Além de estar no deserto, tomado pelo desconforto e temores natos ao ambiente, seu povo e rei o perseguiam.
Contrariando a natural tendência do descontentamento de coração perante as caminhadas desérticas, Davi revela, ali mesmo na areia, que a sua alma tinha “sede de Deus”. Este parece ter sido o mais paradoxal pensamento que passou pela mente do salmista: a sede de Deus era maior que a sede de água. A busca pela presença de Deus era mais forte que qualquer outra carência humana.
Quando em caminhadas solitárias e perseguidos pelos que antes eram mais chegados que irmãos, precisamos nos conscientizar desta verdade transformadora: precisamos mais de Deus em nossas vidas do que água no deserto. C.S. Lewis nos diz que “o amor é o princípio da existência, e seu único fim”. Com isto nos incita a pensar que o amor não é apenas o meio, mas também o propósito final. Somos convidados, em toda a caminhada cristã, a andar de forma paradoxal, em expressões de amor: perder a vida para ganhá-la; oferecer a outra face a quem nos fere; esperar contra a esperança; amar, e não odiar os inimigos; perdoar, mesmo perante óbvias razões para a amargura; desejar mais a Deus do que a água, mesmo quando se vagueia, foragido, por entre terras mais secas.
É nesta caminhada que encontramos descanso verdadeiro. Davi não apenas fala da possibilidade de descanso em Deus, mas o experimenta. Os principais verbos nos versos 6 a 8 estão no presente. Davi se lembra, pensa e canta o descanso em Deus enquanto caminha - não apenas o planeja fazê-lo amanhã. Reconhecer que a presença de Deus é melhor que a vida parece ser o exercício mais transformador – de mente, coração e visão de mundo - que qualquer pessoa possa experimentar.
Somos amados por Deus e este fato deveria ser definidor em como vemos a vida e o mundo ao nosso redor. Ser amado por Deus é entender que somos convidados a um relacionamento eterno, é perceber que estamos em lugar seguro e saber que não há nada melhor.
A construção desta canção do deserto revela a alma de Davi. No verso 1 ele expressa que tinha sede de Deus. Nos versos 2 a 5 ele louva a Deus pelo Seu amor, que é melhor que sua própria existência. Nos versos 6 a 8 Davi descansa no Senhor e finalmente nos versos 9 a 11 ele declara sua confiança na vitória sobre os inimigos.
Encontro-me rotineiramente com pessoas que, à semelhança de Davi, experimentam a solidão do deserto, o constrangimento da fuga e a incerteza de não saber para onde ir. A vida nestas horas torna-se mais lenta, opaca e pesada. Porém, justamente em momento assim a presença de Deus nos convida a crer um pouco mais, e nos encoraja a continuar caminhando. Em um relance olhamos para trás e percebemos que no passado o Senhor foi fiel, mesmo no dia mais escuro. Amanhã não será diferente. A presença de Deus sempre trás à memória o que pode nos dar esperança.
Lutero, citado por C. J. Mahaney em seu livro “Glory do Glory”, nos diz que: “esta vida, portanto, não é justiça, mas crescimento em justiça. Não é saúde, mas cura. Não é ser, mas se tornar. Não é descansar, mas exercitar. Ainda não somos o que seremos, mas estamos crescendo nesta direção. O processo ainda não está terminado, mas vai prosseguindo. Não é o final, mas é a estrada. Todas as coisas ainda não brilham em glória, mas todas as coisas vão sendo purificadas”
Que o Senhor se mostre presente em nossas vidas. Nestes dias o deserto se tornará lugar de alegria e descanso.
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Ronaldo Lidório, doutor em antropologia, é missionário da Agência Presbiteriana de Missões Transculturais e da Missão AMEM. É organizador de Indígenas do Brasil -- avaliando a missão da igreja e A Questão Indígena -- Uma Luta Desigual
Fonte:ultimatoonline
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