quinta-feira, 5 de março de 2020

Paulo Freire – Uma avaliação relâmpago




















É sempre surpreendente, para mim, ver que a maioria das referências feitas ao professor Paulo Freire (1921-1997) são benevolentes e eivadas de admiração. Ele é, via de regra, apresentado como um educador de vanguarda e os termos elogiosos procuram descrever a sua contribuição à filosofia educacional não somente no Brasil, mas em escala mundial. Na realidade, essa abordagem deveria ser esperada, considerando a massiva exposição de sua pessoa; a ampla aceitação acrítica e promoção de sua metodologia (apesar de ser pouco analisada em detalhes[1]); e a divulgação decorrente de sua figura mitológica nos círculos intelectuais e acadêmicos. Realmente, é de se esperar a ocorrência de tal popularidade procedente de uma academia formada e que subsiste submersa no marxismo cultural. O marxismo também embalou e embasou os escritos e discursos do Freire.
O seu livro inicial foi Educação como prática da liberdade (1967).[2] Após esse livro, ele foi pródigo no desenvolvimento de várias “pedagogias”. Na sequência Freire escreveu Pedagogia do oprimido (escrito em 1968, publicado em 1970), enquanto esteve no Chile e que está traduzido para mais de 40 idiomas;[3] Pedagogia da esperança (1992);[4] Pedagogia da autonomia (1997)[5] e as compilações de artigos e palestras publicadas após sua morte, por sua filha, chamadas de Pedagogia da Indignação (2000)[6] e Pedagogia da Tolerância (2005).[7] Freire é também conhecido como autor do “Método Paulo Freire” de alfabetização de adultos. Este consiste na utilização de vocábulos conhecidos do grupo a ser alfabetizado, como ponto de partida, para, a seguir, subdividi-los em partículas menores que serviriam de base à alfabetização.[8]
            Na Pedagogia do Oprimido, Freire faz quase um registro autobiográfico, relacionando o que chama de anseios democráticos, o desenvolvimento de uma mente democrática, mas que reflete, na realidade, uma visão de uma sociedade oprimida tanto pelas forças econômicas, como pelo exercício da autoridade das chamadas “esferas dominantes”. Ele traça paralelos com a sua transição de criança a adolescente, extrapolando consequências de um relacionamento com os pais, baseado no castigo, para a esfera da sociedade. Nesse trabalho de Freire temos mais um libelo social contra as “esferas dominantes”, do que uma fórmula pedagógica que dê relevância ao processo educacional. Freire não está errado ao apontar injustiças ou abusos de autoridade, que levam à opressão. No entanto, as respostas, presas a uma visão anacrônica de estruturas político-econômicas marxistas, que faliram no leste europeu e em outras experiências sociais do mundo, têm como base uma cosmovisão equivocada, na qual o fator pecado não existe. Existem injustiças, existem violências, mas, em sua compreensão, as pessoas são basicamente boas. A boa percepção, por falta de um alicerce filosófico veraz, leva a anseios e constatações, mas não a respostas eficazes.
            Na Pedagogia da Esperança, Freire retoma o tema, fazendo extensa referência à sua obra anterior, e aponta que no meio de disfunções sociais é necessária a existência da esperança. O papel da educação seria fornecer essa esperança, indicando as possibilidades da história. Os educadores “progressistas” enfrentarão as barreiras, oligarquias e “situações limites” para imprimir essa esperança de um mundo melhor. Apesar de palavras de esperança, a pedagogia contemporânea acaba removendo a esperança, pois essa nunca cruza a linha da incerteza e anseio, para a da expectativa de uma certeza de redenção. Baseando a esperança numa confiança irrestrita na humanidade, desconhecendo que as disfunções são mais profundas e só podem ser lidadas e trabalhadas em um contexto no qual Deus seja reconhecido e se faça presente (como o fez, na pessoa de Jesus Cristo), a pedagogia contemporânea falha em dar as respostas que procura. Esperança redentiva é fé; “é a certeza das coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem”.[9] É mais do que meros sonhos de alívio das necessidades materiais presentes.
            Na Pedagogia da Autonomia, Freire dá continuidade às suas análises, desta feita procurando dar lições pontuais aos professores, para que aprimorem a sua prática de ensino dentro do relacionamento professor-aluno-escola. Muitos desses conselhos são de grande valia. Outros apontam, ainda, uma dependência muito grande em conceitos correntes totalmente humanistas, nos quais a dimensão do divino está conspicuamente ausente. Trabalhando apenas na parte inferior da realidade, esquecendo-se do transcendente, suas conclusões são consequentemente imprecisas e imperfeitas. Francis Schaeffer aponta o perigo:
... em todos os casos em que o “inferior” se tornou autônomo, não importa que nome tenha se dado a isso, não demorou muito para que o “inferior” engolisse o “superior”. Não apenas Deus desapareceu, mas também a liberdade e o próprio homem também sumiram.[10]
            Ainda assim, nesse livro, vemos até um Freire mais maduro, talvez sem tanta convicção de suas lealdades político-sociais do passado. No entanto, ele ainda insiste em indicar que o caminho para o sucesso na educação é a libertação da heteronomia. Essa rejeição teórica da lei (vamos ver, na frente que ela é mais teórica do que prática) confunde ainda mais a já abalada mente de nossos professores. Em Pedagogia da Autonomia, Freire diz:
Se trabalho com crianças, devo estar atento à difícil passagem ou caminhada da heteronomia para a autonomia, atento à responsabilidade de minha presença que tanto pode ser auxiliadora, como pode virar perturbadora da busca inquieta dos educandos... primordialmente a minha postura tem de ser a de respeito à pessoa que queira mudar ou que recuse mudar.[11]
Freire não tem alternativa a não ser apegar-se a um antropocentrismo radical e isso está explícito nessa obra:
... jamais abandonei a minha preocupação primeira, que sempre me acompanhou, desde os começos de minha experiência educativa: a preocupação com a natureza humana a que devo a minha lealdade sempre proclamada. Antes mesmo de ler Marx já fazia minhas as suas palavras; já fundava a minha radicalidade na defesa dos legítimos interesses humanos... Prefiro ser criticado como idealista e sonhador inveterado por continuar, sem relutar, a apostar no ser humano.[12]
            A Pedagogia da Autonomia é uma catarse pessoal, onde Freire reflete a sua cosmovisão e, baseado nela, oferece diversos conselhos práticos aos professores. Muitos têm se escudado em Freire, até como modelo pedagógico às escolas cristãs. No entanto, ele está longe de ter um plano mestre, coerente, de diretrizes que sirvam à educação cristã. Após a leitura de suas obras continuamos carentes de uma relevância maior ao processo educativo – que transcenda a míope visão cadente do homem-deus e que não se perca em lamúrias sociológicas, sem ofertar respostas reais aos problemas constatados.
No entanto, deve-se reconhecer que, ao mesmo tempo em que defende autonomia, Freire não chega a descolar por completo da necessidade de responsabilidade e de limites na prática educacional (pontos relevantes igualmente compartilhados pela educação escolar cristã). Diz ele:
O professor que se exime do cumprimento de seu dever, de propor limites à liberdade do aluno, que se furta ao dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência.[13]
Isso equivale a um reconhecimento dos valores cristãos, ainda que incoerentemente com o restante do seu pensamento. Em diferentes ocasiões ele se apega a princípios tais como ética: a existência de certo e errado; limites e leis; o dever de ensinar, como missão, com responsabilidade e sacrifício. Freire está prestando homenagem, sem perceber, a princípios absolutos preciosos ao cristianismo.
            No mesmo tom, mais à frente neste mesmo livro, ele se posiciona contra a “liberdade sem limites”;[14] indica a “impossibilidade da neutralidade em educação”,[15] e que o professor tem que se aperceber que, “por não ser neutra, minha prática exige de mim uma definição”.[16] Continua, ainda: “Neutra, ‘indiferente’... a educação jamais foi, é, ou será”.[17] Até o destaque dos conteúdos – palavra que contemporaneamente equivale a uma depreciação da escola que os valoriza, é encontrada na obra de Freire, quando ele escreve que o professor deve “ensinar certo e bem os conteúdos[18] de sua disciplina.
            Estes últimos pontos de convergência não são suficientes, entretanto, para obscurecer as divergências do pensamento de Paulo Freire com o a filosofia cristã de educação, ou com a própria visão da sociedade que a comunidade cristã extrai das Escrituras, como conjunto de valores e práticas que mais se aproxima da realidade e dos caminhos a serem trilhados por cidadãos responsáveis perante Deus e os homens.
            Creio que Paulo Freire continuará a ser exaltado pelo mundo acadêmico, que se delicia tanto por ideias pseudo-complexas, como por truísmos intelectualizados, ambos tão ao gosto de uma suposta elite interpretativa, que gravita acima dos meros e simples mortais. Nessas categorias encontramos muito do que Paulo Freire escreveu, como por exemplo, “Na verdade, seria incompreensível se a consciência de minha presença no mundo não significasse já a impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença”.[19] Pensamento esse, que foi muito bem traduzido e expresso pelo palhaço Tiririca, quando disse: “Muitas vezes tentei fugir de mim, mas aonde eu ia, eu tava”.

Autor: Solano Portela, 2019


[1] É relevante que até o famoso “Método Paulo Freire” de alfabetização de adultos, segundo reportagem da Rádio Câmara, com o Prof. Afonso Celso Scocuglia, um de seus admiradores, foi desenvolvido e os seus postulados estabelecidos, após uma experiência em uma sala de aula com apenas 5 alunos, dos quais 2 desistiram e apenas 3 foram alfabetizados. Texto disponível no site:
[2] FREIRE, Paulo. Educação como prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. 160 pgs.
[3] FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 184 pgs. Este livro já vai na 38ª edição.
[4] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 245 pgs.
[5] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996, 2000 – 16ª Ed. 165 pgs. Este livro já vai na 37ª edição.
[6] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação – compilação de Ana Maria Araújo Freire. São Paulo: UNESP, 2000. 134 pgs.
[7] FREIRE, Paulo, Pedagogia da Tolerância – compilação de Ana Maria Araújo Freire. São Paulo: UNESP, 2005. 329 pgs.
[8] Esse método teve aplicação limitada, pelo próprio autor, em Pernambuco, antes de seu exílio no Chile. Vide nota 1, acima.
[9] Hebreus 11.1
[10] SCHAEFFER, Francis. A Morte da Razão: a desintegração da vida e da cultura moderna. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana (Editora Cultura Cristã), 2002, 95.
[11] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996, 2000 – 16ª Ed., 78 e 79.
[12] FREIRE, Paulo. Ibid., 145 e 136.
[13] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996, 2000 – 16ª Ed. P. 66.
[14] FREIRE, Paulo. Ibid., 118.
[15] FREIRE, PauloIbid., 126.
[16] FREIRE, Paulo. Ibid, 115.
[17] FREIRE, Paulo. Ibid, 111.
[18] FREIRE, Paulo. Ibid, 116.
[19] FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 19.
Solano Portela

 Solano Portela.

O Prof. Solano Portela prega e ensina na Igreja Presbiteriana de Santo Amaro, onde tem uma classe dominical, que aborda as doutrinas contidas na Confissão de Fé de Westminster.

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