A história dos pioneiros que se tornaram mártires no Brasil Colônia
Segundo dados do Censo de 2010 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população evangélica do Brasil conta com mais de 40 milhões de pessoas, uma das maiores do mundo. O Evangelho no Brasil teve êxito em termos de alcance e, se levarmos em conta a evangelização protestante tardia, temos um fenômeno notável.
Esta nação foi, até a primeira metade do século XX, um campo missionário. Hoje ela tem contribuído para o movimento missionário, ainda que muito aquém de seu potencial, e tem reproduzido, até certo ponto, um Evangelho forte e comprometido. O número de igrejas cresce incessantemente. A mídia, tanto aberta quanto segmentada, é cada vez mais ocupada por programação evangélica.
Diante desse quadro somos levados a nos perguntar: Quando e como tudo isso começou? Que pessoas foram instrumentos para tornar o Brasil uma potência evangélica? Quem foram os primeiros protestantes que puseram os pés neste nosso gigante? Essas perguntas fazem parte da inquirição histórica. Como disse Soren Kierkegaard: “A vida só pode ser compreendida, olhando-se para trás, mas só pode ser vivida, olhando-se para frente”.
O Brasil foi descoberto em 1500, mas a colonização oficial iniciou-se em 1532. Em 1517 teve início a Reforma Protestante na Europa. Menos de 50 anos depois os protestantes davam seus primeiros passos aqui. Não venceram a princípio, mas tornaram-se testemunhas do olhar de Deus sobre o Brasil.
A TRAGÉDIA DA GUANABARA
Em 1557, liderados por Nicolau Villegagnon e com o apoio do Almirante Gaspar Coligny, os huguenotes (protestantes franceses) buscaram refúgio no Brasil. Os franceses planejaram se fixar na Baía da Guanabara, Rio de Janeiro. Instalaram-se nas ilhas hoje conhecidas como Villegagnon, do Governador, Flamengo e Laje, denominando a região de França Antártica. O primeiro culto protestante foi realizado em 10 de março de 1557, uma quarta-feira. No dia 21 de março, domingo, foi realizada a primeira Santa Ceia.
Logo começaram atritos entre Villegagnon e os huguenotes, até que estes foram expulsos da ilha. A expulsão colocou-os em contato direto com os índios tupinambás, os quais procuraram evangelizar, sendo esse evento o primeiro contato missionário protestante com um povo não europeu.
Os frustrados colonos resolveram retornar à França, mas logo no início da viagem o barco ameaçou naufragar e cinco deles ofereceram-se para voltar à terra. Eram eles: Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon, André Lafon e Jacques Le Balleur. Logo que pisaram em solo brasileiro foram aprisionados por Villegagnon, que apresentou-lhes uma série de questões teológicas e exigiu uma resposta por escrito dentro de doze horas. Esses leigos redigiram o notável documento, conhecido como Confissão de Fé da Guanabara, que custou as suas vidas.
Diante da recusa deles em negar as suas convicções, Villegagnon condenou-os à morte. Bourdel, Verneuil e Bourdon foram estrangulados e lançados ao mar. André Lafon, sendo o único alfaiate da colônia, foi poupado sob a condição de não divulgar suas ideias religiosas.
Assim, apenas 40 anos após a Reforma, tivemos, em 1557 no Brasil, o primeiro culto protestante, a primeira ceia, o primeiro evangelismo de não europeus por protestantes, a primeira Confissão de Fé e os primeiros mártires. Eles foram sementes do enorme pomar futuro.
JACQUES LE BALLEUR, O JOÃO BOLÉ
Outro nome que merece menção é Jacques Le Balleur ou João Bolé. Fugindo para São Vicente, devido à sua utilidade para os portugueses, recebeu certa liberdade para pregar. Foi, contudo, denunciado a Inquisição pelo padre local Luís da Grã, que se sentiu ofendido nas disputas teológicas. Por insistência dos jesuítas foi levado para a capital colonial, Salvador, onde esteve aprisionado por vários anos (1559-1567). Em 1567 o governador geral Mem de Sá levou-o para o Rio de Janeiro, onde foi enforcado.
Sobre ele escreveu José de Anchieta em sua Informação do Brasil e de Suas Capitanias, de 1574: “Um dos moradores desta torre (em São Vicente) era um Joannes de Bolis, homem douto nas letras latinas, gregas, hebraicas e mui lido nas Escrituras Sagradas, porém grande herege.(…) Ali (em São Vicente) começou a vomitar a peçonha de suas heresias, às quais resistiu o Padre Luís da Grã.” Sobre sua morte escreveu Aníbal Pereira dos Reis: “Naqueles tempos de espesso obscurantismo religioso, a lei fazia um sacerdote companhar o réu ao cadafalso“. No caso de Bolé, Anchieta foi quem o seguiu.
As últimas instâncias para negar o Calvinismo e refugiar-se no Romanismo, como todas as investidas anteriores, caíram no vazio. A vítima do ódio clerical permaneceu em sua lealdade a Jesus Cristo! O historiador João Francisco de Lisboa reconhece: “com ânimo firme e resoluto perseverou na sua fé, e afrontou a morte. Retardou o algoz o desfecho fatal. Dizem que por imperícia, mas na verdade por compaixão do inocente que foi por ele instruído a respeito do Evangelho. O fato é que Anchieta, de espírito odiento, antecipou-se ao carrasco e enforcou Bollés, um dos mártires evangélicos do Brasil.” Ele mesmo, o santo José de Anchieta, no dizer do católico Arthur Heulhard, acaba de matá-lo, dizendo, ufano, ao carrasco acovardado: VOl LA COMM IL FAUT FAIRE! (Eis aí como se mata um homem!). E assim mais um missionário morria plantando a semente neste fértil solo.
HANS STADEN
“Ó Tu, Deus Todo-Poderoso, que fizeste o céu e a terra; Tu, Deus de nossos antepassados, Abraão, Isaac e Jacó; Tu, que tão poderosamente conduziste o teu povo Israel da mão dos seus inimigos através do Mar Vermelho. A Ti, que eterno poder tens, peço que me livres das mãos destes bárbaros, que não Te conhecem, em nome de Jesus Cristo, Teu amado Filho […]” Este é um trecho da oração feita em terras brasileiras por um servo de Cristo, o protestante alemão Hans Staden. De forma milagrosa ele conseguiu permanecer nove meses preso pelos canibais tupinambás em Ubatuba, SP. Os nativos se sentiram amedrontados pelas respostas às orações de Staden. Ele deixou entre eles e também para a posteridade o testemunho de um Deus vivo que responde ao clamor de seu povo. Tendo escapado e retornado ao Velho Mundo, escreveu um livro sobre sua aventura, em 1557, contando detalhes das cerimônias antropofágicas com gravuras que o imortalizaram. Ele terminou sua oração dizendo: “[…] e quando me tiveres livrado de seu poder [dos tupinambás], quero louvar a Tua Graça e dá-la a conhecer a todas as nações onde eu chegar. Amém.” E assim foi.
INSPIRAÇÃO
É dessa forma que histórias de fé de homens como esses têm inspirado outros ao longo dos anos. Esses fatos não podem ficar ocultos, não podem ser ignorados pela Igreja Brasileira, como disse o teólogo alemão Jürgen Moltmann: “consciência histórica é consciência de missão e conhecimento histórico é conhecimento transformador […]”.
Vamos deixar que a História influencie nossa vida e que o passado se repita, se projete e se intensifique na ação missionária da Igreja. Que a verdade nos inspire, nos mova e nos motive. A História não é o túmulo do passado, é o alicerce a partir do qual construímos nosso futuro. Se eles vieram e pagaram seu preço, nós podemos ir e pagar o nosso.
Eguinaldo Hélio de Souza Pastor no Vale da Bênção, professor de teologia, licenciatura em história, jornalista, apologista, palestrante em diversas áreas. Professor de história de missões e história da Igreja na Escola Ministerial Antioquia, no Instituto Nissi. Professor e coordenador do Instituto Karis de missões. Autor de diversos livros, entre eles: Uma seara [quase] esquecida, pela Betel publicações. Site: www.missaoatenas.com.br. Blog: www.devocionaisdeesperanca.com.br.
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