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Por Jorge Fernandes
A partir do livro Eleitos de Deus, de R. C. Sproul, farei algumas considerações sobre a sua abordagem relacionada à dupla predestinação, o barro "decaído" e a arbitrariedade de Deus. Boa parte desses argumentos podem ser lidos nos meus comentários ao livro, disponíveis aqui.
Ressalto
ainda que o meu intento não é o de polemizar pelo gosto da polêmica,
mas revelar os meus pensamentos e fazer com que tanto eu como o leitor
pensemos a partir do próprio texto bíblico. Não estou a sugerir nenhuma "saida"
das Escrituras, nem uma tentativa estúpida de explicar algo
inexplicável. Ao meu ver, o que tem feito os crentes permanecerem
vulneráveis ao mundo e a si mesmos (em suas pressuposições) é exatamente
o medo de ver na Bíblia aquilo que ali está revelado. Sem fazer-me dono
da verdade ou especulador, nem exaustivo no que me proponho: uma
reflexão a partir de considerações escriturísticas; e que pode levar
muitos ao estudo sério de algumas questões que nem mesmo cogitamos
pensar. O que acabará por nos tornar em replicantes de um esquema
intruso à Bíblia, reverberando o deleite que o homem tem de ouvir sua
própria voz. Então, sem mais delongas, mãos-à-obra!
Na
questão da dupla predestinação, ainda que Sproul tente amenizar a
eleição dos réprobos, ao dizer simplesmente que Deus escolheu os eleitos
e deixou de lado ou à própria sorte os réprobos, não neutraliza a idéia
do favor divino, da Sua escolha para a salvação dos eleitos; e o
desfavor, mas ainda assim uma escolha, para com os ímpios.
Da mesma
forma, dizer que Deus não endurece efetivamente o coração ímpio, mas
retira a restrição do pecado sobre eles, deixando-os livres para pecar, é
muito simplória e faz o malabarista derrubar todos os pratos no chão e
estatelar-se sobre eles, além de não haver respaldo bíblico para essa
conjectura.
Usar termos como "endurecimento passivo", "entregá-los ao pecado", "decreto positivo e negativo","destinação não simultânea",
etc, não exclui de Deus o desejo de que seus corações sejam
endurecidos, os pecadores se voltem mais e mais ao pecado, e de que
destinando alguns para a salvação, estará destinando os demais para a
condenação. É fato que Deus não os quis salvar; é fato que Ele quis
condená-los. Então, por que a necessidade de se tentar "aliviar"
Deus quando Ele claramente diz o que fez e porquê fez? Não seria uma
forma de subestimá-lo, e de até mesmo considerá-lo imperfeito,
necessitando que o adequemos aos nossos defeitos para assegurar-lhe a
perfeição? Isso cheira mal, algo muito próximo da rebeldia ou, na melhor
das hipóteses, ignorância disfarçada de piedade. Em muitos casos é não
querer aceitá-lo como é; em outros é a incapacidade de vê-lo como se
revelou a Si mesmo.
Sproul
chegou ao ponto de utilizar a passagem de Ex 7.2-5 (quando Deus afirmou a
Moíses que endureceria o coração do Faraó) como um exemplo de
endurecimento passivo, onde Deus não interviu diretamente no coração do
Faraó, mas ao remover a sua restrição sobre ele, deixou que "as inclinações malignas de Faraó fizessem o restante"1.
Ao que pergunto: se isso não é o mais escancarado malabarismo
argumentativo a fim de tirar de Deus o poder de mover a vontade do Faraó
a fim de que se cumprissem exatamente os Seus desígnios, o que mais
pode ser? De certa forma, não passa de uma tentativa ilusória para
transformar o irreal em verdade através de hábeis jogos semânticos.
Passiva
ou ativamente, o Faraó não cumpriu o decreto divino? Tal qual ele foi
estabelecido na eternidade? E, ainda que passivamente (especulativo),
estaria-se a dizer que Deus obteve o resultado desejado sem querer
produzi-lo? E se Ele não quis produzi-lo, quem o produziu? Nós? Há uma
nítida inversão de papéis e de valores; sempre como uma justificativa
para eximi-lo de suposta culpa, o que redundará em uma tentativa, mesmo
inconsciente, de desprezá-lo e a Sua santidade, sabedoria e perfeição.
Da mesma forma, ao referir-se a Rm 9, Sproul diz: "Soa
como se Deus estivesse ativamente fazendo pessoas ser pecadoras. Mas
isso não é requerido pelo texto... veremos que o barro com o qual o
oleiro trabalha é barro 'decaído'. Um pouco de barro recebe misericórdia
para tornar-se vaso de honra. Essa misericórdia pressupõe um vaso que
já está culpado. Da mesma maneira, Deus precisa 'tolerar' os vasos de
ira, próprios para a destruição, pois eles são vasos de ira, culpados"2.
Não sei
quanto a você, mas me parece outro contorcionismo desnecessário para não
concluir o que o texto bíblico evidentemente afirma: Deus é quem FAZ os
vasos de honra e os vasos de ira, lançando "as riquezas da sua
glória nos vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou"
(v.23); assim como a "sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou
com muita paciência os vasos da ira, preparados para a perdição" (v.22).
Quem
preparou? Quem destinou? Quem é o oleiro? Ou seja, quem fez os vasos
destinando-os a ser o que são? Se não foi Deus, quem foi? Outro deus?
Satanás? O homem? Mas se mesmo o mal, e apenas o mal e o pecado, não foi
criado e ordenado à existência pelo Senhor, Ele não é soberano, e
estamos de alguma forma enganados ou sendo enganados. Se como a Bíblia
assegura que não há outro deus além do Senhor, e de que Ele é o criador
de todas as coisas, por que ainda resistimos? Por que não nos sujeitamos
às evidências internas das Escrituras? Certamente porque os nossos
conceitos e argumentos não se encontram em unidade e harmonia com essas
manifestações certeiras; os quais penetram sorrateiramente pela porta
dos fundos, como se fizessem parte da revelação proposicional quando não
passam de parasitas a provocar a verdade, no exercício de induzir o
crente a uma aventura desastrosa, a culminar numa imagem distorcida de
Deus.
O barro não existia previamente antes de Deus fazê-lo existir. O barro "decaído" não decaiu alheio à vontade de Deus, à sua revelia, por vontade própria. O barro "decaído" não foi auto-criado, ou criado por outra "força". O barro "decaído"
surgiu pelo poder e vontade de Deus, e apenas por Ele poderia existir. O
mesmo poder que destinou alguns para a glória e outros para a perdição.
Ou seria possível ao homem escolher a forma como Deus o faria? E de
como seria? Por exemplo, a cor dos olhos, cabelos ou pele? E o que dizer
de coisas como o estado pecaminoso e o redentivo? Afinal, qual poder
temos sobre nós mesmos? E a história? E a eternidade?
Fico com
a impressão de que o autor quer ao mesmo tempo dizer e não dizer o que
diz. E suas atenuações acabam por enfraquecer e confundir o conceito de
soberania, predestinação e eleição divinas.
Isso é
manipulação teológica, com todo o respeito e admiração que o Dr. Sproul
merece. Bastaria ater-se ao texto bíblico, que é claro e límpido como
água (especialmente os dois textos citados), sem a preocupação de
imputar a Deus qualquer injustiça, pois, o menor pensamento de que isso
seja possível somente poderá vir de uma mente doentia e caída; de uma
mente não regenerada e carente da misericórdia divina. Nesses casos,
vale a mesma resposta dada por Paulo: "Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim?" (Rm 9.20).
Outra questão é a definição de arbitrário. Ele afirmou que Deus não é arbitrário, porque "por si só, ser arbitrário é fazer alguma coisa por nenhuma razão"3. Bem, acho que esse conceito do autor, demonstra o seu nível de excentricidade, ou seria arbitrariedade?
A
palavra arbitrário designa alguém que decide como árbitro, que não é
regulado por leis, mas só depende da sua vontade. Nesse sentido, Deus é
completamente arbitrário. Há algo igual ou superior a Ele, ao qual
esteja condicionado? Deus faz exatamente tudo aquilo que quer, como quer
e da maneira que quer, segundo a Sua perfeição, santidade e justiça. E
quem somos nós para questioná-lo? Ou para moldá-lo a um padrão humano?
Não
nascemos por nossa vontade, nem escolhemos o país, os pais, sexo ou
nível de inteligência que gostaríamos de ter. Nascemos pecadores sem
desejar sê-lo; somos eleitos sem querer sê-lo; e muitos irão para o
inferno sem querer ir. Essas coisas todas aconteceram e acontecerão à
nossa revelia, pela arbitrária vontade divina. Então, considero Deus
arbitrário no sentido de que tudo no universo acontecerá segundo o seu
arbítrio, sem nenhuma consulta prévia, sem nem mesmo Ele se preocupar se
Suas decisões me agradarão ou não. E, por quê? Porque Ele é santo,
justo, perfeito, sábio, Todo-Poderoso. E porque somos pecadores,
injustos, imperfeitos e tolos, criaturas metidas a besta, julgando ter
algum poder quando não temos nada, e o pouco que temos (o que é muito
para a nossa condição) provém d'Ele, e é por Ele, para a Sua glória.
Descrever
a vontade divina como não-imperativa, não-absoluta, em que o governo de
Deus não depende exclusivamente de Si, nem é independente do universo
governado é professar a maior heresia que o homem é capaz de produzir.
Numa tentativa tola de diminuí-lo aos nossos olhos. Portanto, concluo
que Deus é arbitrário, e não há como não ser. Em qualquer situação que
se vá explicar a soberania divina, não há como não ligá-la à
arbitrariedade. Senão não estaríamos falando de Deus, mas de deus, algo
diminutivo, depreciativo, frágil como nós.
Nos
aspectos citados, a despeito de muita coisa valorosa e pautada
biblicamente que o Dr. Sproul diz e escreve, não posso concordar com
suas afirmações. Elas me parecem com o marido desesperado, que ao
encontrar a esposa em adultério no sofá da casa, joga fora o sofá.
Notas:
[1] - Eleitos de Deus - R. C. Sproul - Editora Cultura Cristã - página 109.
[2] - Idem - página 114.
[3] - Ibidem - página 116.
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