sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O papado: do renascimento até João Paulo II



Alderi Souza de Matos

A Reforma Protestante do século 16 despertou a cúpula da Igreja Católica do estado de letargia espiritual e omissão pastoral em que se encontrava. A reação católica teve duas manifestações complementares. Por um lado, Roma empenhou-se em combater o novo movimento, detendo o seu crescimento e procurando suprimi-lo onde fosse possível, como aconteceu na Espanha e na Polônia. Esse esforço recebeu o nome de Contra-Reforma. Por outro lado, a Igreja Romana, consciente das distorções espirituais e morais apontadas pelos reformadores, fez uma autocrítica rigorosa e um esforço sério no sentido de corrigir seus erros, aperfeiçoar sua estrutura e explicitar melhor sua fé. Esse aspecto é denominado pelos historiadores de Reforma Católica. Nos dois esforços, os papas tiveram uma atuação destacada.

Até o início da década de 1530, o trono pontifício continuou a ser ocupado por homens excessivamente envolvidos em questões seculares e políticas. Essa situação mudou quando Alessandro Farnese tornou-se o papa Paulo III (1534-1549). Farnese nomeou uma comissão de cardeais que avaliou a situação da igreja e propôs medidas saneadoras, entre elas que o papado se concentrasse nas suas tarefas espirituais e deixasse em segundo plano a preocupação com o poder, a opulência e a dignidade terrena. Outras duas grandes realizações de Paulo III foram a aprovação formal da nova ordem dos jesuítas ou Companhia de Jesus (1540) e a convocação do Concílio de Trento (1545-1563).

Esse famoso concílio afastou definitivamente qualquer possibilidade de conciliação com os protestantes. Desde então, o catolicismo conservador e militante tem sido designado como “tridentino” (de Trento). Entre as suas muitas e importantes resoluções, o concílio reafirmou o papel dominante dos papas na vida da igreja. Outros destacados pontífices da era de Trento foram Giovanni Pietro Caraffa (Paulo IV, 1555-1559) e Giovanni Angelo Medici (Pio IV, 1559-1565). Este último tem seu nome ligado a uma importante declaração de fé católica, o Credo de Pio IV ou Profissão de Fé Tridentina, que deve ser afirmada por todos os convertidos ao catolicismo. Esses papas reformadores contribuíram decisivamente para tornar a Igreja Católica uma instituição mais coesa, organizada e disciplinada, bem como dotada de uma clara identidade doutrinária. Um fato revelador é que por mais de trezentos anos nenhum outro grande concílio seria convocado até o Vaticano I.

Nos séculos 17 e 18, as antigas ligações entre a Igreja Católica e as autoridades seculares continuaram a criar problemas para os papas. O Concílio de Trento contribuiu para a centralização do poder no papado e isso não foi bem recebido em muitas partes da Europa devido ao crescente nacionalismo e ao absolutismo real. A oposição ao conceito de uma igreja centralizada sob a autoridade papal recebeu o nome de galicanismo, por haver se manifestado mais fortemente na França, a antiga Gália. Assim, somente em 1615, os decretos de Trento foram promulgados nesse país. Até mesmo dentro da Igreja houve galicanos, isto é, aqueles que acreditavam que a autoridade eclesiástica residia nos bispos, e não no papa. Por outro lado, os defensores da autoridade suprema dos papas foram chamados de ultramontanistas, porque buscavam essa autoridade “além das montanhas” (os Alpes). Outro golpe recebido pelo poder papal foi a supressão da ordem dos jesuítas, um poderoso instrumento das políticas pontifícias. Após ser expulsa de Portugal, Espanha e França, bem como de suas colônias latino-americanas, a Sociedade de Jesus foi dissolvida em 1773 pelo papa Clemente XIV. Assim, ironicamente, enquanto os papas insistiam na sua jurisdição universal, eles estavam de fato perdendo poder e autoridade.

Um golpe ainda mais devastador contra o papado foi desferido pela Revolução Francesa (1789). Desde o início houve um profundo conflito entre a Igreja e o ideário republicano da revolução. Assim, logo que tomou o poder, o novo governo procurou enfraquecer o papado e suprimir a Igreja na França. Dois papas da época sofreram bastante nas mãos do novo regime. O primeiro foi Giovanni Angelo Braschi ou Pio VI (1775-1799). Em 1798, o exército francês ocupou Roma, proclamou uma república e declarou que o papa não mais era o governante temporal da cidade. Pio VI morreu no ano seguinte, virtualmente como prisioneiro dos franceses. Seu sucessor, Barnaba Chiaramonte, eleito papa Pio VII (1800-1823), inicialmente foi deixado em paz. Todavia, em 1808, Napoleão tomou a cidade de Roma e o papa foi feito prisioneiro por vários anos, até a queda do soberano francês em 1814. Pouco depois de retornar a Roma, Pio VI restaurou a Sociedade de Jesus.

A memória da Revolução Francesa reforçou o conservadorismo político e teológico dos papas e sua conseqüente oposição às idéias republicanas e democráticas que viriam a ser cada vez mais amplamente aceitas no mundo ocidental. Essa atitude alcançou a sua expressão máxima no cardeal Giovanni Maria Mastai-Ferretti, que, como papa Pio IX, teve o mais longo pontificado da história (1846-1878). Pio IX enfrentou um novo problema, que foi o nacionalismo italiano e a luta pela unificação da Itália, até então subdividida em muitos principados, um dos quais eram os antigos estados pontifícios. Um desses líderes nacionalistas foi Giuseppe Garibaldi, que casou-se com a brasileira Anita Garibaldi. Em 1870, as tropas do novo Reino da Itália tomaram os estados papais e assim chegou ao fim o poder temporal dos papas, que havia atingido o seu auge no pontificado de Inocêncio III, no século 13.

Ao mesmo tempo que perdia o seu poder político, Pio IX acentuou fortemente as suas prerrogativas na área religiosa. Sua ousadia tornou-se patente quando, pela bula Ineffabilis, proclamou o dogma da imaculada concepção de Maria (1854). Com isso, ele foi o primeiro pontífice a definir um dogma por si mesmo, sem o apoio de um concílio. Dez anos depois, Pio promulgou a encíclica Quanta cura (1864) e seu famoso apêndice, o Sílabo de Erros. Suas oitenta proposições condenaram explicitamente, entre outras coisas, o protestantismo, a maçonaria, a liberdade de consciência, a liberdade de culto, a separação entre a igreja e o estado, a educação leiga e, em geral, o progresso e a civilização moderna. Sua última grande realização foi o Concílio Vaticano I (1870), o qual, através do decreto Pastor aeternus, proclamou o controvertido dogma da infalibilidade papal. Essa infalibilidade ocorreria quando o papa fala ex cathedra, isto é, no exercício oficial do seu cargo, definindo questões de fé e moral. Não por coincidência, isso ocorreu no mesmo ano em que a Itália anexou os estados pontifícios.

A Igreja Católica e seus pontífices começaram lentamente a aceitar o mundo moderno com o papa Leão XIII (1878-1903). Embora ainda marcadamente conservador, a ponto de declarar na bula Immortale Dei que a democracia era incompatível com a autoridade da igreja, ele deu uma série de passos construtivos no relacionamento com diversos governos europeus. Sua realização mais notável foi a encíclica Rerum novarum (1891), na qual expressou o pensamento social da Igreja e fez uma corajosa defesa dos direitos dos trabalhadores no contexto da revolução industrial e do capitalismo em expansão.

Um período especialmente conturbado para a Igreja Católica e para os seus líderes foi a época das duas guerras mundiais. Em sua repulsa do comunismo anti-religioso e ateu, e em sua preocupação com a defesa dos interesses da igreja, os pontífices do período acabaram estabelecendo fortes laços com regimes de extrema direita em diversos países da Europa. Em 1929, Pio XI (1922-1939) assinou uma concordata com o ditador fascista Benito Mussolini, o Tratado de Latrão, mediante a qual foi criado o Estado do Vaticano. Ele também apoiou o regime de Francisco Franco na Espanha. Mais problemática foi a concordata com Adolf Hitler em 1933, vista por muitos observadores internacionais como uma aprovação tácita do regime nazista. Todavia, em 1937, Pio XI publicou a encíclica Mit brennender Sorge (“com viva ansiedade”), contendo severas críticas ao nacional-socialismo.

Seu secretário de estado, o cardeal Eugenio Pacelli, sucedeu-o no trono pontifício como papa Pio XII (1939-1958), ao mesmo tempo em que eclodia a II Guerra Mundial. Esse papa tem sido severamente criticado por seu silêncio diante das atrocidades cometidas pelos nazistas contra os judeus, mesmo convertidos ao catolicismo. No campo doutrinário, ele proclamou o dogma da assunção corporal de Maria (1950). Paradoxalmente, esse papa conservador tomou iniciativas que contribuíram para as grandes mudanças que viriam a acontecer na igreja após a sua morte. Ele incentivou o uso dos novos métodos de estudo bíblico por meio da encíclica Divino afflante Spiritu (1943), bem como valorizou e estimulou as igrejas localizadas fora da Europa.

Um dos períodos mais extraordinários da história da igreja e do papado teve início com a eleição do idoso cardeal Angelo Giuseppe Roncalli como papa João XXIII (1958-1963). Convencido da necessidade de uma ampla atualização (aggiornamento) da igreja, ele convocou o Concílio Vaticano II, formalmente instalado no dia 11 de outubro de 1962. Esse importante concílio, que teve expressiva participação de bispos do terceiro mundo, aprovou resoluções sem precedentes nas áreas de renovação litúrgica, preocupação com os pobres e diálogo interconfessional. As duas últimas preocupações já haviam sido expressas respectivamente na encíclica Mater et Magistra e na criação do Secretariado para a Promoção da Unidade Cristã. Seu sucessor, o cardeal Giovanni Battista Montini (Paulo VI, 1963-1978), embora mais contido, deu continuidade ao Concílio Vaticano II, no interesse de “construir uma ponte entre a Igreja e o mundo moderno”. A “Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Moderno” foi o documento mais longo já produzido por um concílio e contrastou profundamente com certas ênfases do século anterior. Paulo VI também publicou a controvertida encíclica Humanae vitae (1968), que proibiu aos católicos o uso dos métodos de controle artificial da natalidade.

A eleição do último papa do século 20, em 1978, foi um acontecimento não menos momentoso para a Igreja Católica e para o mundo ocidental. O polonês João Paulo II (Karol Jozef Wojtyla) é o primeiro papa não italiano desde o século 16. Sua atuação corajosa contribuiu para a derrocada do comunismo em sua pátria e no Leste Europeu. Em 1981, ele sobreviveu a um grave atentado na Praça de São Pedro. É também o papa que mais se deslocou pelo mundo afora, tendo feito quase uma centena de viagens internacionais. Dotado de sólido preparo intelectual, tem publicado inúmeras encíclicas, abordando temas éticos, sociais e teológicos: Redemptor hominis (1979), Dives in misericordia (1980), Sollicitudo rei socialis (1988), Veritatis splendor (1993), Evangelium vitae (1995), Ut unum sint (1995). Por outro lado, representa um recuo conservador em relação aos seus predecessores, como ficou evidenciado na sua atitude em relação à teologia da libertação, nas suas interferências diretas em muitas organizações da igreja e, em geral, no seu entendimento exaltado da autoridade papal.

No seu conjunto, o papado tem sido uma instituição predominantemente benéfica para a Igreja Católica, dando-lhe um notável senso de unidade, propósito e identidade. Muitos pronunciamentos papais sobre temas sociais e éticos têm sido altamente relevantes em um mundo secularizado e materialista. Suas fraquezas têm sido o envolvimento político e um estilo de liderança nem sempre condizente com as normas dadas por Cristo aos pastores do seu rebanho. Finalmente, é de se lamentar que justamente essa instituição seja o maior obstáculo para uma maior aproximação entre os cristãos, visto que a autoridade pontifícia é rejeitada não somente pelos protestantes, mas pela Igreja oriental, que tem raízes tão antigas e apostólicas quanto a Igreja latina.




Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja e professor do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, em São Paulo, SP.

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