Por Fernando Almeida
O marido chega em casa tarde da noite e encontra sua esposa quase dormindo, sentada em uma cadeira na cozinha tentando se acalmar com uma xícara de café:
- Isso são horas?
- Você sabe, querida, é o meu trabalho... – tenta se justificar.
- Mas de novo? – levanta-se a esposa – Você sai de casa, as crianças estão dormindo; chega em casa, estão dormindo também… você sabe a quantos dias elas não te vêem?
-Eu sei,eu sei, meu amor. Não pense que eu gosto dessa situação! Mas entenda, é temporário.Essa situação vai mudar,eu prometo! Afinal de contas, você tem que entender… se eu estou trabalhando tanto é por causa de vocês... por causa da minha família!
O diálogo acima poderia ter acontecido na casa de muitos de nós. O que podemos aprender com a Palavra de Deus para resolvermos esse impasse que se torna a cada dia mais freqüente e mais destrutivo em nossos lares?
A. O Lugar da Família na Vida do Cristão
Logo nas primeiras páginas da Bíblia Deus estabeleceu regras para a humanidade sem pecado se relacionar tanto com a Criação, como uns com os outros e com o próprio Deus. Para cada um destes relacionamentos, o Criador estabeleceu regras as quais damos o nome de mandatos. Um desses mandatos, portanto, tem a ver com normas quanto à convivência do ser humano em sociedade e aproximando mais nosso foco, em família. Deus disse a Adão e Eva: “Sede fecundos, multiplicai-vos…” (Gn 1.28). Quanto ao relacionamento entre marido e esposa, a Bíblia também se pronunciou: “Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne.” (Gn 2.24)Esse é o Mandato Social.
Essas considerações são necessárias porque o cristão não pode fabricar leis para a sua vivência familiar nem tão pouco viver o pragmatismo em seu lar, ou seja, fazer aquilo que aparentemente dá certo. O cristão deve atentar para o fato de que Deus, desde o início, se pronunciou quanto ao valor dafamília e como o ser humano deveria se portar em obediência diante desse assunto.
1.O Valor dos filhos– O salmo 127 diz que os filhos são “herança do Senhor” (v.3)e que o homem que “enche deles a sua aljava” (v.5) é bem-aventurado. No Salmo 128 eles são chamados de “rebentos da oliveira” (v.3). Todas as declarações dos dois salmos estão ligadas à idéia de “proteção”. Os filhos garantem a continuidade da qualidade de vida de seus pais.Eles são flechas na mão do guerreio e os que têm filhos não se envergonham diante dos inimigos. Podemos perguntar: “Que inimigos são estes?”Em uma interpretação literal, uma família numerosa representava segurança diante de uma tentativa de invasão e tomada de terras. Também no quesito trabalho os filhos eram o mesmo que ter prosperidade.Em uma sociedade rural, ter muitos filhos era sinônimo de mão de obra. Assim, mesmo na velhice, o pai tinha a garantia de que o sustento familiar seria provido. Mas podemos enxergar as declarações dos salmos de maneira figurada: os filhos são motivos de bênçãos na época em que os pais mais precisarão deles. Seguindo esta interpretação, devemos entender por “inimigos” os anos finais da vida. O capítulo 12 de Eclesiastes relata as limitações do corpo conforme os anos da velhice se aproximam. Deste modo, o corpo que na juventude é o grande aliado, com o passar dos anos torna-se cada vez mais motivo de preocupações e cuidados. Agora, em idade avançada, o ser humano luta com seu próprio corpo; tenta vencer suas limitações físicas.Em ambas as interpretações, o papel dos filhos é crucial. Tanto que eles são chamados de “rebentos da oliveira à roda da tua mesa” (Salmo 128.3)Entendamos melhor o que essa comparação quer dizer: Como não existia luz elétrica naquela época, as famílias faziam uso de lampiões.Esses lampiões eram movidos a óleo, óleo de oliveira ou, como também podemos chamar, azeite. Assim, o salmista aponta para os filhos como a fonte de luz e energia do lar. Ter uma família grande é a garantia de que os filhos poderão compartilhar uns com os outros o cuidado para com seus pais.
2. O Valor do Matrimônio– A Palavra de Deus responsabiliza prioritariamente o homem pelo sustento financeiro do lar. Deus disse a Adão: “No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado; porque tu és pó e ao pó tornarás.” (Gn 3.19) Por isso, podemos entender o Salmo 128 como uma distribuição de responsabilidades que vamos observar no quadro abaixo:
v.2 marido Trabalhar para que haja comida em seu lar
v.3a Esposa Ser videira frutífera
v. 3b Filhos Serem como rebentos de oliveira
Já falamos a respeito do quer dizer “rebentos da oliveira”, vejamos, portanto, o que significa para a esposa ser chamada de “videira frutífera”. A videira produz uva e da uva se faz o vinho.Embora existam muitas passagens na Bíblia a respeito de como a embriaguez é condenada, em outras o vinho tem uma conotação muito positiva. Principalmente no relacionamento conjugal, o vinho serve de metáfora para o deleite que deve existir por parte dos cônjuges (Ct 7.8-9). Quando o salmista responsabiliza a mulher por ser “videira frutífera” para o marido na verdade ele está querendo dizer que o marido deve ansiar por voltar para casa vindo do trabalho porque sabe que quando chegar vai encontrar alguém que irá lhe satisfazer plenamente. Por outro lado, podemos imaginar também a videira como sendo capaz de dar frutos em cachos, ou seja, assim como de uma semente cachos podem ser produzidos, também uma esposa que alegra o marido é aquela que tem muitos filhos. Aliás, a ansiedade de ter muitos filhos levou muitos servos de Deus a pecarem adotando várias esposas ou concubinas (compare Deuteronômio 17.17 com 1Reis 11.1-13).
Comparando os filhos com a oliveira e a esposa com a videira o salmista revela o valor da família. Não havia nada mais importante ou caro comercialmente falando do que o vinho e o azeite. É importante que fique muito bem frisado o extraordinário valor da família, pois isso nos ajudará a ter uma compreensão melhor do papel do trabalho.
B.O Lugar do trabalho na vida do cristão
Não podemos esperar que ímpios e crentes tenham a mesma compreensão do que venha a ser a maneira correta de se trabalhar. Por isso precisamos analisar quais são as diferenças.
1. O Trabalho para o Ímpio
Na parábola do semeador, Jesus fala a respeito de um semeador que lançou a semente sobre quatro tipos de solos. Um destes solos foi descrito da seguinte forma: “A que caiu entre espinhos são os que ouviram e, no decorrer dos dias, foram sufocados com os cuidados, riquezas e deleites da vida; os seus frutos não chegam a amadurecer.” (Lc 8.14)Este grupo demonstra alguma resposta ao evangelho sem, no entanto, desenvolver a fé verdadeira. Parece que Jesus divide esses espinhos em três principais, segundo argumenta Willian Hendriksen[1]: 1ºEspinho – Cuidados ou Preocupações da Vida.Esta preocupação condenada por Jesus extrapola os limites do planejamento pessoal e se traduz por ansiedade. A ansiedade é amplamente combatida pela Bíblia por ter um alto grau de destruição (Fp 4.6; Lc 12.4-12, 22-34; Mt 6.25-34; 10.19-29, 28-31). 2ºEspinho – Riquezas.Embora possuir dinheiro não seja pecado, ter amor a ele é (1Tm 6.10). Jesus está condenando a busca desenfreada pelo dinheiro (Lc 12.13-21; 16.19-31; 18.18-24). 3ºEspinho – Prazeres da Vida. Tanto prazeres que são nocivos em si mesmos (embriaguez, drogas, jogos de azar) quanto aqueles que são nocivos se não forem moderados (esportes, jogos, diversões). As pessoas que são atingidas por estes espinhos nunca chegam a produzir frutos verdadeiros. São, porém como Demas, segundo testemunhou o apóstolo Paulo: “Porque Demas, tendo amado o presente século, me abandonou e se foi para Tessalônica.” (2Tm 4.10a)
Jesus certa vez disse: “Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder-se ou a causar dano a si mesmo?” (Lc 9.25) Assim como Demas, aquele que dá mais valor ao mundo mostra que nunca foi de fato um cristão. Mas, além dessa pessoa perder a sua alma,ela perderá coisas ainda nessa vida, causando muito dano a si mesma. Não ver os filhos crescendo e não participar de sua educação são perdas irreparáveis. A sociedade atual não é muito diferente nesse aspecto do que foi o Império romano. A família da classe média romana, assim que o filho nascia,entregava-o para uma escrava porque essa seria sua ama de leite. Assim, a mãe não amamentava a criançae sim a escrava. Depois, com alguns anos de vida ainda, a criança era entregue pra um outro escravo, quase sempre grego, que seria o responsável pela sua educação. Outra vez, os pais se omitiam. O resultado disso é o que vemos nos registros históricos. Filhos que não hesitavam em assassinar seus pais para atingirem seus objetivos. Como é que laços de carinho e amor podem ser construídos sem que haja relacionamento? Por essa razão é que também podemos observar na sociedade atual, o mesmo triste fenômeno: filhos matando pais ou então os tratando como se fossem inimigos.
2. O trabalho para o Cristão
No começo da lição falamos que Deus deu três ordens para Adão e Eva, as quais chamamos de “mandatos”. Já discorremos sobre o mandato social, ou seja, a normas instituídas por Deus para que o ser humano se relacione com seus semelhantes.
Vejamos agora um segundo mandato, chamado de Mandato Cultural. Deus também deixou regras claras quanto à relação do ser humano com a natureza.
Deus, ao criar o primeiro casal, disse a ele que deveria sujeitar e dominar a Criação (Gn 1.28). Para tanto, foram postos em um jardim (Éden) para cultivá-lo e guarda-lo (Gn 2.5e 15). É importante lembrarmos que o contexto em que se deu essa ordem foi o de um mundo perfeito no qual o pecado ainda não havia entrado. Todo trabalho, portanto, deveria ser norteado por esse tipo de prescrição divina e não pelos conceitos mundanos e pecaminosos.
C. Conciliando Família e Trabalho
O terceiro mandato instituído por Deus em Gênesis é o Mandato Espiritual, ou seja, Deus disse a Adão e Eva que era necessário que obedecessem em tudo a Deus senão morreriam: “E o SENHOR Deus lhe deu esta ordem: De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás.” (Gn 2.16-17). O Salmo 128 começa com a seguinte afirmação: “Bem-aventurado aquele que teme ao SENHOR e anda nos seus caminhos!” (Sl 128.1). Saber conciliar o lugar dafamília e o lugar do trabalho é uma questão de temor e obediência a Deus. Não é o mundo que vai ditar as normas de como você, cristão, deve trabalhar, mas as próprias leis de Deus. Por isso, se você diz que teme a Deus, precisa também entender quais são os objetivos do trabalho.
Glorificar a Deus. Acima de tudo, o ato de trabalhar deve ser encarado como um meio de glorificar a Deus, pois assim diz a Bíblia: “ Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus.” (1 Co 10.31) Se não houver essa prioridade, o ser humano pode se matar de tanto trabalhar que, nas palavras do Salmo 127, será tudo em vão.
Dignidade Própria. Por obedecer a Deus, o crente sente-se feliz com o fruto do seu trabalho: “Do trabalho de tuas mãos comerás, feliz serás,e tudo te irá bem.” (Sl 128.2) Ninguém se sentirá feliz construindo uma carreira profissional brilhante deixando para traz um lar destruído.
Sustento Pessoal e Familiar. Devemos trabalhar para que haja o necessário dentro de casa. Um aparelho de DVD ou uma TV de 29’não são o necessário. Mas o pão de cada dia e a presença dos pais junto aos filhos ou a união dos cônjuges é sem dúvida importante.
Conclusão
Os fins não justificam os meios. Se eu quero que meu trabalho seja instrumento de glória a Deus e benefício tanto pessoal bem como familiar, eu preciso fazer com que haja uma harmonia entre os fins e os meios. Certa vez, disse uma esposa: “abriria mão de tudo o que tenho de conforto e moraria de baixo de uma ponte se fosse preciso para ter meu marido mais tempo dentro de casa”. Descontando-se a emoção do momento,ela tem razão. O crente deve ter o trabalho como motivo de bênção e não segundo ditam as normas do mundo. O cristão deve sempre optar por ter uma vida mais simples dando tempo à família do que uma vida com conforto mas na prática, também sem família.
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1]Willian Hendriksen, Comentário do Novo testamento – Lucas, Vol 1. (São Paulo, Cultura Cristã, 2003), p. 571.
Fonte:Reflexões Bíblicas
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