Por Dr. Harry L. Reeder
“Para mim, o viver é Cristo, e o morrer é lucro.” – Filipenses 1.21
Na escuridão de 15 de abril de 1912, o Titanic, anunciado como “o navio que nem Deus poderia afundar”, submergiu nas águas geladas do Atlântico Norte, seu casco dividiu-se em dois. Admiravelmente, a perda consistiu de homens de toda posição e época de vida possível, incluindo alguns que eram multibilionários. Os botes salva-vidas foram ocupados predominantemente por mulheres e crianças de toda esfera da sociedade. Estes fenômenos se tornaram irresistíveis matérias de análise nos meios de comunicação e até nos meios acadêmicos durante os dias subsequentes.
O filme Titanic (1997), aclamado pela crítica e com grande divulgação publicitária, tentou recriar este acontecimento histórico. O filme, anunciado como um sucesso tecnológico e cinematográfico, foi um fracasso em termos de realidade, retratando com inexatidão a narrativa daquela noite fatal. O script revisionista tentou apresentar o desastre como um exemplo de “conflito de classes”. Uma história de amor espalhafatosa e adúltera entre uma mulher da sociedade e um imigrante de classe inferior foi inventada para o filme. Houve também uma apresentação fictícia da elite cultural oprimindo as classes inferiores no interior do navio, capacitando-os (como privilegiados) a escapar nos preciosos botes salva-vidas, que eram poucos.
Na verdade, os produtores do filme perderam uma grande oportunidade. Naquele flutuante microcosmo de opulência, consumismo e elitismo, um acontecimento admirável transpirou. Homens de poder e prestígio sacrificaram sua vida em favor de mulheres e crianças de classe inferior, muitos dos quais eram servos contratados, diaristas e empregados domésticos. Nesta flotilha de autoabsorção, o autossacrifício se tornou uma virtude prevalecente durante um momento de crise. E os poderosos escolheram a morte, para que os fracos recebessem vida.
A análise nos dias seguintes fazia persistentemente a pergunta óbvia: “Por quê?” A resposta, quase universalmente reconhecida – até por agnósticos e secularistas – foi a influência inegável do cristianismo. A virtude cristã de autossacrifício em favor do bem-estar de outros e o imperativo bíblico de homens darem sua vida em favor de mulheres e crianças foram escolhidos em lugar da autopreservação. Estas virtudes triunfaram no contexto de escolhas reais de vida e morte, no Titanic.
Estas virtudes contagiantes poderiam ser propagadas na cultura de nossos dias, que é marcada por autoabsorção, autossatisfação e autoexaltação? A Escritura e a história dizem sim. Todavia, a Escritura e a história também dizem que essa transformação norteada pelo evangelho não acontecerá neste mundo se, primeiramente, ela não dominar a igreja de Cristo.
A cultura contemporânea se debate num mar de narcisismo, mas a igreja se debate na exaltação do ego e na supremacia da idolatria pessoal. Muitas igrejas (e, portanto, seus membros) abandonaram há muito tempo a chamada do evangelho para que “não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente” (Rm 12.2). A igreja não molda mais o mundo porque está sendo moldada pelo mundo. A igreja contemporânea não pode suprimir, e muito menos transformar, os efeitos desastrosos do narcisismo na cultura porque o narcisismo não é suprimido e floresce dentro do próprio ministério da igreja. As evidências de autoabsorção dentro da igreja são inegáveis e estão quase se tornando uma epidemia.
A igreja contemporânea, em seu esforço para ser relevante e conectada, se tornou, em muitos casos, irrelevante e desconectada, acomodando-se ao narcisismo da cultura. A igreja de hoje, em vez de pregar a mensagem do verdadeiro evangelho em temos que a cultura entende, foi seduzida e intimidada a modificar a mensagem do evangelho de acordo com o que a cultura aprova. Por isso, insistimos na supremacia das preferências pessoais quanto ao tipo de música no culto. Nossos filhos existem para obter honras acadêmicas e atléticas, a fim de promoverem nosso orgulho paternal. Os cônjuges, em vez de serem os objetos de nosso amor sacrificial, tornaram-se objetos a serem usados ou descartados. Nossas carreiras são instrumentos para consumismo evidente, e não oportunidades de gerar riqueza e ajuntar recursos para os necessitados. Nossas igrejas locais são vistas como “lojas religiosas de especialidades” para os desafios da vida. A pregação do evangelho tem sido pervertida em terapia de autoestima ou conversas estimulantes, preparando-nos para o sucesso mundano ou, o que é mais admirável, redefinindo o amor de Cristo em termos que obstam seu desprazer com o impenitente egocentrismo em nossa vida. Nossa busca por felicidade e satisfação pessoal tem ocupado o lugar da chamada de Deus para sermos santos e exaltarmos a sua glória. Agora, a primeira pergunta de nosso novo catecismo é: “Qual é o objetivo principal de Deus?” A resposta: “Amar-me e tornar-me feliz”. Nossa conformação com o mundo e nossa perda da nítida chamada do evangelho para seguirmos a Cristo e morrermos para nós mesmos e nossos pecados têm transformado os crentes e a igreja em termômetros da cultura, em vez de termostatos dentro da cultura.
Há uma grandiosa lição a ser aprendida do Titanic. Durante um momento de crise, uma virtude que é alheia à humanidade caída permeou a cultura coletiva no Titanic. Sacrifício prevaleceu em lugar de narcisismo porque a chamada do evangelho à autorrenúncia havia anteriormente penetrado e transformado a vida de crentes em toda a sociedade. Um mundo espectador fora afetado quando observou os seguidores de Cristo, imperfeita mas intencionalmente, abraçarem a bênção do evangelho: “Para mim, o viver é Cristo, e o morrer é lucro” (Fp 1.21).
A igreja de Cristo proclama uma mensagem do evangelho que é estimulantemente clara e inegociável: venha a Cristo, aquele que negou-se a si mesmo, deixou de lado as riquezas da glória e humilhou-se a si mesmo até à morte na cruz, para que fôssemos resgatados e recebêssemos a vida eterna. Este Cristo, que recebe você espontaneamente, pela fé e arrependimento, chama-o a segui-lo e a morrer para o ego a fim de que outros sejam resgatados por seu intermédio. Que ato extraordinário e maravilhoso do amor de Deus por nós! No entanto, ele não foi realizado primeiramente para exaltar-nos, e sim para humilhar-nos e matar-nos, para que exaltemos aquele que nos exaltará no devido tempo. “Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gl 2.20).
O narcisismo do mundo pode ser suprimido e até transformado, mas tem de ser primeiramente confrontado em nós, salvos pela graça, quando dizemos não à ilusória chamada de autoadoração da parte do mundo e dizemos sim para a libertadora chamada de autorrenúncia da parte de Cristo. Esta é a libertação que nos permitirá exaltar a Cristo, que fez tanto para nos salvar.
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Fonte: Editora Fiel, Via Ministério Beréia.
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