Há coisa de cinco anos, evangélicos de todo o Brasil entraram em festa. Pela primeira vez, desde que o país foi achado pelos portugueses, a fé católica perderia sua hegemonia. Esta, pelo menos, era a previsão de pastores, líderes e pesquisadores diante dos números promissores sobre o avanço da Igreja Evangélica no país. “O Brasil é do Senhor”, frase bradada dos púlpitos e nos programas evangélicos na TV, sintetizava a virada de mesa que aconteceria em breve. Quem cresse e vivesse, veria – e a base para tanto ufanismo eram as estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, que a cada década realiza o Censo da população nacional. No levantamento do ano 2010, chegou-se à cifra de 42,3 milhões de crentes, ou 22,2% do povo brasileiro. O processo fora mais avassalador ainda nas comparações anteriores, que mostravam um avanço de seis vezes do segmento em duas décadas. Em seu estudo A dinâmica das filiações religiosas no Brasil entre 2000 e 2010, o pesquisador José Eustáquio Diniz, da Escola Nacional de Ciências Estatísticas, chegou a dizer que o Brasil poderia ser um país de maioria evangélica já por volta de 2030: “Apenas pelo efeito da inércia demográfica, haverá crescimento da população evangélica.”
Na mesma onda foram muitos pastores e institutos de pesquisa evangélicos. O Departamento de Pesquisas do ministério Servindo Pastores e Líderes (Sepal) divulgou uma estimativa, em 2011, segundo a qual os evangélicos representariam mais da metade da população brasileira já em 2020. “Eles serão aproximadamente 109,3 milhões, para uma população de 209,3 milhões,” previu o teólogo e pesquisador Luis André Bruneto. O entusiasmo era corroborado por grandes manifestações, como a Marcha para Jesus (que, em 2009, levou às ruas de São Paulo quase 2 milhões de pessoas), pela maciça presença midiática dos pastores e pela crescente influência evangélica em setores como a política partidária, entre outros. “O Instituto Superior de Estudos da Religião fez, na década de 90, uma extensa pesquisa sobre a abertura de templos. Eram cinco por semana, só no Rio de Janeiro”, observa o pastor presbiteriano André Mello, na época integrante da equipe do Iser.
Acontece que, se a matemática é uma ciência exata, a dinâmica demográfica, muitas vezes, caminha na direção oposta, e aí não há fé capaz de fechar a equação. Os números relativos à religiosidade do povo brasileiro do Censo 2010 só foram fechados e divulgados mais de dois anos depois, e o festejado crescimento dos evangélicos, que se acelerou de maneira sem paralelo no mundo contemporâneo entre os anos 1980 e 2000, caiu bastante. Os números ainda são ascendentes, mas tendem à estabilização – e até ao encolhimento, como especulam alguns pesquisadores –, o que contraria frontalmente as previsões mais ufanistas. “Entre 1991 e 2000, o aumento médio foi de 120%”, lembra o bispo emérito da Igreja Metodista Paulo Ayres Mattos. Dali em diante, o avanço caiu pela metade. “Isso não pode ser ignorado de forma alguma para quem trabalha com rigor e seriedade as mutações no campo religioso brasileiro”. Doutor em Teologia e professor da Universidade Metodista de São Paulo, Ayres é estudioso do movimento pentecostal brasileiro e avalia que o fato mais importante dos dados religiosos do último Censo é a diminuição comparativa do crescimento evangélico.
DESCONCENTRAÇÃO
Há diversas razões para essa perda do ímpeto de crescimento, que pôde ser sentida no dia 4 de junho, quando apenas cerca de 200 mil pessoas, na avaliação da Polícia Militar, prestigiaram a mesma Marcha para Jesus nas ruas da capital paulista. “As pesquisas atuais falam em fechamento de templos e dissolução de associações evangélicas por divergências ou luta por poder”, acrescenta André Mello. Tal fragmentação das igrejas, e seu consequente enfraquecimento, é apenas um dos motivos do quadro atual. Ela se verifica tanto na igrejinha da esquina, da qual o pastor assistente saiu para abrir seu próprio empreendimento religioso, até grandes grupos, como a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd). Nadando de braçada na explosão evangélica dos anos oitenta e noventa (ver quadro), a denominação de Edir Macedo começou a sofrer a concorrência – é, o termo usado pelos estudiosos é este mesmo, que remete à ideia de disputa por mercado – de grupos saídos de suas entranhas, como a Igreja Mundial do Poder de Deus, fundada e liderada por Valdemiro Santiago, ex-pastor da Universal e atual desafeto do antigo chefe. O estrago é um dos motivos do encolhimento da Iurd, de 2,1 milhões de fiéis, há quinze anos, para os cerca de 1,8 milhão encontrados em 2010. De maneira análoga, diversas denominações têm sofrido fraturas e cizânias que, no médio prazo, acabam dificultando as coisas tanto para a igreja que fica como para aquela que se forma.
“As pessoas, hoje, têm mais liberdade para escolher e combinar diversas opções em seu próprio cardápio religioso, como num balcão de comida a quilo”, continua Paulo Ayres. Para ele, o quadro sinaliza as transformações sociais que melhoraram a situação econômica de boa parte da população nos últimos anos, como as classes C e D. “Isso possibilitou às pessoas resolverem seus problemas mediante meios mais racionais, sem buscar o recurso de soluções milagrosas”. Além disso, o bispo metodista aponta outros fatores, como o aparecimento mais visível dos evangélicos sem igreja e o aumento percentual de pessoas sem religião, ateus e agnósticos no cenário nacional. De fato, o IBGE encontrou 9.218.000 brasileiros que se enquadram na difusa categoria “evangélica não determinada”, que inclui os chamados desigrejados – gente que, apesar da origem evangélica, em determinado momento da vida assumiram uma fé “não institucional”, para usar o termo moderninho. “Tudo isso confirma um dado já identificado anteriormente, trabalhado com bastante competência por sociólogos da religião como Paul Freston”, cita.
Autor de um artigo polêmico, publicado na revista Ultimato em 2011 e no qual questionava as previsões entusiasmadas que anunciavam a quebra da antiga hegemonia religiosa do catolicismo, Freston cunha uma expressão para se referir ao esvaziamento da ideia de pertencimento religioso, antes tão cara aos evangélicos que era comum se ver, nos bancos das igrejas, sucessivas gerações de crentes. “Vários fatores podem estar por trás dessa ‘desdenominacionalização’. São aspectos negativos – como o individualismo e a falta de compromisso – e outros positivos, como a melhora econômica e a consequente diminuição da necessidade de uma relação clientelista numa igreja com liderança forte”. Inglês naturalizado brasileiro e colaborador nos programas de pós-graduação da Universidade Federal de São Carlos, Freston, que atualmente leciona no Canadá, chama a atenção para os subgrupos do universo evangélico brasileiro, lembrando que o fenômeno os atinge em diferentes graus. “As análises se complicam com as mudanças internas do segmento. Segundo o Censo, 60% dos evangélicos são pentecostais; 18% são de missão (ou seja, integrantes de igrejas históricas ou tradicionais); e 22% estão entre os ‘evangélicos não determinados’.”
Ele considera que o espantoso o aumento desta última categoria atrapalha as comparações com os Censos anteriores. Quem seriam eles? “Será que são neopentecostais decepcionados com as suas igrejas, mas que ainda se consideram evangélicos? Ou pentecostais clássicos, de terceira ou quarta geração, em processo de ‘despentecostalização’? Ou crentes de igrejas históricas que perderam a sua identidade denominacional? Ou uma soma de tudo isso e muito mais? De qualquer forma, diminui a porcentagem do mundo evangélico que se diz pentecostal ou que declara adesão a uma denominação categorizada como tal”, descreve o professor. Por outro lado, o Censo anuncia mudanças demográficas no Brasil que não favorecem o movimento, como o acelerado envelhecimento da população e a redução da taxa de fecundidade. Numa coisa, porém, Freston é categórico: “Os dados desmentem claramente as previsões absurdas que circularam de que haveria uma maioria evangélica até 2020. Estas previsões fazem um grande desserviço à comunidade evangélica.”
O avanço da Igreja Evangélica brasileira, alavancado pela explosão pentecostal e neopentecostal de vinte anos atrás, estará perto de bater no teto? “No momento, parecem precoces e arriscadas quaisquer conjecturas desse tipo”, comenta Ricardo Mariano, doutor em Sociologia e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Em seu trabalho Mudanças no campo religioso brasileiro no Censo 2010, ele menciona que os sem religião, demograficamente insignificantes até 1970, já chegam a 15,3 milhões de brasileiros. “Eles quintuplicaram de tamanho entre 1980 e 2010, formando o terceiro maior ‘grupo religioso’ do país”, diz no estudo. Ao mesmo tempo, a expansão dos pentecostais na última década pesquisada, de 44%, não chega nem à metade das médias de crescimento obtidas nos dois decênios anteriores, como em 1991 (aumento de 111%) e em 2000, da ordem de 115,4%. O que parece certo, ainda conforme Mariano, é a perda de musculatura de grandes igrejas. “Em 2000, cinco denominações concentravam 85% dos pentecostais. Uma década depois, essa cifra declinou para 75,4%. Tal desconcentração denominacional é decorrente tanto da queda numérica de igrejas como Congregação Cristã no Brasil e Universal quanto do aumento da diversificação institucional do pentecostalismo.”
“QUANTO MAIS CRESCE, MENOS CRESCE”
No caso da Assembleia de Deus, a desaceleração é evidente. Embora fragmentada em diversas convenções e usada até como nome de fantasia para empreendimentos religiosos individuais, as Assembleias de Deus constituem a maior confissão religiosa do país depois do catolicismo – nada menos que 12,3 milhões de brasileiros disseram aos pesquisadores do IBGE que pertencem a uma igreja com essa placa na entrada. “Elas cresceram 245% na década de 1990 a 2000, mas avançaram ‘apenas’ 46% depois disso”, frisa Gedeon Freire de Alencar, membro da Rede Latinoamericana de Estudos do Pentecostalismo (Relep). Em sua tese de doutorado em Ciências da Religião, ele usou como objeto de estudo a denominação fundada há pouco mais de cem anos por missionários suecos. “Uma constatação óbvia se apresenta aos estudiosos: a de que, quanto mais cresce, menos cresce”, prossegue Alencar (ver artigo na continuação desta reportagem).
Luis Bruneto, diretor de Pesquisas do Projeto Brasil 21 da Sepal, admite que a previsão de alguns anos, feita ainda com base nos dados do período entre 1991 e 2000, continha erros e precisa de uma releitura. “O crescimento anual dos evangélicos mostrou-se aquém do previsto. O aumento perdeu força”. Segundo ele, o avanço do secularismo na sociedade brasileira, o utilitarismo do discurso evangélico, os escândalos envolvendo pastores e líderes e a falta de higidez teológica e doutrinária ajudam a explicar o atual momento histórico. “Durante anos, a liderança evangélica nacional tem afirmado, categoricamente, que o país experimenta um avivamento espiritual, dados os números tão expressivos. Mas, será mesmo?”, indaga. Bruneto invoca a falta de influência bíblica e profética da Igreja em diversas áreas da vida brasileira, como a política, a segurança pública, o desenvolvimento social e a ética, para exemplificar o paradoxo.
De menos de um por cento da população no início do século passado (ver quadro), o grupo religioso que mais cresceu na história do Brasil está representado em todas as mais de 5,6 mil cidades do país e ainda apresenta índices de expansão bem maiores do que os da população em geral. Mas as oscilações em seu crescimento precisam, ao menos, ser interpretadas como sinal de alerta. “Resta saber o que isso tem representado, na prática, em termos de transformação pessoal e coletiva”, insiste Bruneto. Para Paul Freston, em um futuro próximo, esse enfoque será cada vez mais necessário. “Se não recuperarmos a capacidade de interagir com o texto bíblico, de deixá-lo falar a nós e, a partir disso, tirar as implicações individuais, eclesiásticas e nacionais necessárias, nos mostraremos irrelevantes”, alerta. “A Igreja Evangélica brasileira de 2030 ou 2040 precisará de líderes mais diversos nos seus dons, profundos no seu conhecimento e sabedoria e transparentes nas suas vidas”. Quanto aos fiéis, a recomendação é simples, mas não necessariamente fácil de cumprir: “Precisamos redescobrir o verdadeiro sentido de ser evangélico, que é a vontade de sermos profundamente bíblicos em toda a nossa existência.”
“IMAGEM DESOLADORA”
Pesquisa realizada em junho pelo instituto Gallup mostrou que a maior nação evangélica do mundo já não é mais a mesma. Hoje, os americanos têm menos confiança na religião organizada do que nunca antes, e isso é sinal inquietante de que a Igreja pode deixar de ser um pilar da liderança moral na cultura dos Estados Unidos. Nos anos 1980, a Igreja e a religião organizada compunham a instituição que gozava de maior confiança na América. Agora, no geral, são os militares, as empresas de pequeno porte e a polícia que atraem mais credibilidade do cidadão americano. A Igreja desceu para a quarta posição. “Quase todas as organizações estão em baixa nesse quesito, mas a imagem formada da religião é particularmente desoladora”, avalia a autora do relatório do Gallup, Lydia Saad.
O dado de maior influência no resultado, segundo a pesquisadora, é a crescente quantidade de americanos que se desligam do que se chama de organização religiosa. Outra pesquisa, esta do Instituto Pew, especializado em levantamentos de natureza religiosa, apontou que 23% dos americanos não se identificam com nenhuma religião. Há, também, um declínio crescente de credibilidade nas igrejas Católica e Protestante. O descrédito em ambas cresceu, em pouco mais de trinta anos, na ordem de 50%. Escândalos sexuais e financeiros envolvendo pastores famosos, assim como a denúncia de casos de pedofilia entre o clero católico, colaboraram para essa rejeição.
O PERIGO DA IRRELEVÂNCIA: ENTREVISTA COM PAUL FRESTON
Doutor em Sociologia e professor catedrático de Religião e Política na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, no Canadá, Paul Freston é um dos mais respeitados estudiosos do movimento evangélico brasileiro. Ele conversou com CRISTIANISMO HOJE.
CRISTIANISMO HOJE - O senhor já provocou polêmica ao contrariar previsões mais otimistas de que o Brasil teria maioria evangélica em sua população. Hoje, ainda pensa assim?
PAUL FRESTON – Não mudei de previsão. Continuo achando que, dentro de duas a três décadas, o crescimento do segmento evangélico irá, basicamente, parar.
Uma de suas preocupações é em relação ao que chama de irrelevância da Igreja devido à ausência de implicações individuais, eclesiásticas e nacionais do texto bíblico. Já chegamos a este ponto?
Não, mas estamos a caminho. Se não houver essa capacidade até o momento do fim do crescimento, aí sim, seremos irrelevantes. O crescimento numérico que ainda se observa nos dá uma relevância, por assim dizer, inercial. Mas depois, precisaremos mostrar mostrá-la de outras formas.
Qual o perfil eclesiástico que terá, então, maior sucesso?
Acredito que as igrejas que tiverem maior solidez teológica e oferecerem ensino mais aprofundado da Palavra de Deus, além de visões atraentes de discipulado, terão mais espaço. Igrejas que não estiverem preocupadas apenas com sucesso numérico, mas que adotarem perfis mais variados dentro da sua liderança, tanto clerical como leiga. Quanto a quais denominações se adequarão a esse perfil, isso vai depender da situação de cada igreja até lá.
MAIORIA FEMININA E MAIS IDOSA
A frequência a cultos religiosos no Brasil é maior para mulheres (57%) do que para homens (43%). Em relação à faixa etária, 58% dos frequentadores habituais têm mais de 50 anos
(Fonte: Novo Panorama das Religiões, estudo da Fundação Getúlio Vargas)
O avassalador crescimento dos evangélicos verificado a partir de 1980 é demonstrado na comparação com a série histórica. Desde o primeiro estudo que os contabilizou, um ano após a instauração da República, os números da população evangélica brasileira são estes:
1890 – 143.000
1940 – 1.075.000
1950 – 1.740.000
1960 – 2.825.000
1970 – 4.800.000
1980 – 7.900.000
1991 – 13.200.000
2000 – 26.200.000
2010 – 42.275.000
Fonte: IBGE
Fonte:CH
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