Jó é citado apenas duas vezes em toda a Escritura (Ez 14.12-23; Tg 5.11), fora do livro que leva o seu nome. Na primeira passagem, salienta-se a retidão e o poder de intercessão de Jó, que é colocado ao lado de outros homens especiais (Noé e Daniel). Na segunda, fala-se de sua capacidade de lidar com o sofrimento. Algumas versões chamam atenção para a sua paciência (RA, TEB, NTLH, BJ), outras para a sua constância (CNBB, EP) ou perseverança (NVI). A paráfrase Bíblia Viva prefere mencionar a sua confiança em Deus. Apenas a Bíblia do Peregrino acha apropriado traduzir a palavra original como resistência: “Ouvistes falar como Jó resistiu, e conheceis o desfecho que Deus lhe proporcionou, pois o Senhor é compassivo e piedoso”.
Logo no início do livro, Jó é apresentado como homem extremamente correto, inculpável, íntegro, irrepreensível, justo, precavido (“evitava fazer o mal”), reto (“andava na linha”) e temente a Deus (Jó 1.1). Era um homem especial, fora de série, um exemplo impressionante em sua época e em nosso tempo. Duas vezes o próprio Deus afirma que Jó era sem igual: “No mundo inteiro não há ninguém tão bom e honesto como ele” (Jó 1.8; 2.3)
Em geral, o que os cristãos sabem a respeito de Jó é apenas o que está no prólogo (os dois primeiros capítulos) e no epílogo (os 12 últimos versos do último capítulo). Passa-se por cima de toda a parte poética do livro, que valoriza tremendamente o caráter de Jó. Já o leitor que examina o miolo do livro fica perplexo com a incrível resistência do homem da terra de Uz frente a toda sorte de sofrimento, como se pode ver a seguir. Jó era irrepreensível...
Apesar das desventuras
Jó não era sem igual só no terreno ético. No que diz respeito à prosperidade, ele era aprovado e bem-sucedido em tudo. Jó tinha saúde, família, riquezas e muita gente a seu serviço. Era “o homem mais rico do oriente”. Possuía 11.500 cabeças de gado. De uma hora para outra, perdeu tudo. Em um mesmo dia, Jó recebeu quatro más notícias seguidas, uma imediatamente após a outra. As perdas foram provocadas pelos povos vizinhos (os sabeus e os caldeus) e por desastres naturais (raios caídos do céu e uma terrível ventania vinda do deserto). Foi assim que Jó perdeu...
Todo o gado (7.000 ovelhas, 3.000 camelos, 1.000 bois e 500 jumentos);
Todos os empregados (administradores, agricultores, boiadeiros, carreiros, cortadores de lã, guardas das torres de vigia, plantadores de capim, roçadores de pastos, tiradores de leite, tratadores de animais, vendedores de gado etc). Só escaparam aqueles que vieram trazer essas notícias.
Todos os dez filhos (três mulheres e sete homens). Estavam todos comendo e bebendo na casa do irmão mais velho, quando o furacão atingiu a casa e a derrubou sobre eles. No dia seguinte, havia dez caixões de defuntos para Jó enterrar.
Apesar da doença
Pouco depois da perda de quase todos os bens e de todos os filhos, Jó perdeu a saúde, o mais precioso bem que alguém pode possuir. A doença era tão grave que o obrigava a pensar na morte. Vários diagnósticos têm sido apresentados: a doença poderia ser dermatose escamosa, elefantíase, eczema crônico, eritema, lepra, melanoma, pênfigo foliáceo, psoríase queratose, úlceras malignas, varíola. Ele portava “feridas terríveis, da sola dos pés ao alto da cabeça”, raspava-se com um caco de louça e ficou tão desfigurado que seus amigos não puderam reconhecê-lo e começaram a chorar em alta voz diante daquele quadro aterrador (2.12-13).
O mal de Jó era uma agressão à visão e ao olfato de todos os que o cercavam.
Vale a pena ler o que o próprio Jó fala a respeito:
“Que esperança posso ter, se já não tenho forças? Como posso ter paciência, se não tenho futuro?” (6.11).
“Quando me deito fico pensando: quanto vai demorar para eu me levantar? A noite se arrasta, e eu fico virando na cama até o amanhecer. Meu corpo está coberto de vermes e cascas de ferida, minha pele está rachada e vertendo pus. [...] É melhor ser estrangulado e morrer do que sofrer assim” (7.4-5,15).
“Meus dias correm mais velozes que um atleta; eles voam sem um vislumbre de alegria. Passam [ligeiros] como barcos de papiro, como águias que mergulham sobre as presas” (9.25).
“Tornei-me objeto de riso para os meus amigos, logo eu, que clamava a Deus e ele me respondia, eu, íntegro e irrepreensível, um mero objeto de riso!” (12.4).
“Minha magreza [...] depõe contra mim”(16.8); “O meu corpo não passa de uma sombra” (17.7); “Não passo de pele e ossos” (19.20).
“O único lar pelo qual espero é a sepultura” (17.13); “Quem poderá ver alguma esperança para mim?” (17.15).
“Minha mulher acha repugnante o meu hálito; meus próprios irmãos têm nojo de mim” (19.17).
“Agora esvai-se a minha vida; estou preso a dias de sofrimento. A noite penetra os meus ossos; minhas dores me corroem sem cessar” (30.16-17).
“Minha pele escurece e cai; meu corpo queima de febre. Minha harpa está afinada para cantos fúnebres, e minha flauta para o som de pranto” (30.30-31).
Apesar da esposa
A companheira de Jó e mãe de seus filhos mortos não teve sabedoria suficiente para enfrentar o sofrimento da família:
1) Ela foi incapaz de suportar o quadro doentio do marido. Jó pessoalmente descreve a situação: “Minha própria esposa não chega perto de mim por causa do mau cheiro que sai de minha boca quando falo” (19.17, BV). O cheiro repugnante vinha também das feridas abertas.
2) Ela foi incapaz de manter o relacionamento anterior com Deus. A esposa de Jó rompeu com o Senhor e aconselhou o marido a fazer o mesmo: “Você ainda vai tentar ser muito religioso, mesmo depois de tudo o que Deus nos fez? O melhor que você tem a fazer é amaldiçoar a Deus e morrer!” Jó viu-se na obrigação de opor-se e resistir à própria esposa: “O que você está falando é loucura completa. Já recebemos tantas coisas boas de Deus, porque não recebemos também o sofrimento e a dor?” (2.9-10, BV.)
3) Ela foi incapaz de acompanhar o marido. A dura verdade é que a esposa de Jó passou para o lado oposto: aliou-se a Satanás, tornou-se porta-voz dele, fez-se advogada do diabo. Pois o único propósito de Satanás era levar Jó a amaldiçoar a Deus (1.11; 2.5).
Apesar da solidão Antes de suas desventuras, Jó tinha nome, tinha dinheiro, tinha poder. Era cercado de pobres, órfãos, viúvas e estrangeiros, com os quais repartia seus bens. Era cercado de parentes, amigos e vizinhos, próximos e distantes, com os quais se alegrava. Afinal, muitos são os que amam o rico (Pv 14.20). Mas, depois de suas desgraças, todos foram se retirando e deixaram Jó sozinho. Ele se queixa amargamente disso:
“[Deus] afastou de mim os meus irmãos; até os meus conhecidos estão longe de mim. Os meusparentes me abandonaram e os meus amigos esqueceram-se de mim. Os meus hóspedes e as minhasservas consideram-me estrangeiro; vêem-me como um estranho. Chamo o meu servo, mas ele não me responde, ainda que lhe implore pessoalmente. Minha mulher acha repugnante o meu hálito; meus próprios irmãos têm nojo de mim. Até os meninos zombam de mim e dão risadas quando apareço. Todos os meus amigos chegados me detestam; aqueles a quem amo voltaram-se contra mim” (19.13-20).
Apesar do Diabo O livro da Bíblia que menciona maior número de vezes o nome de Satanás é o de Jó. São ao todo quatorze citações, que aparecem apenas nos dois primeiros capítulos, o equivalente a pouco mais de 25% de todas as ocorrências. Quanto a toda a Escritura, apenas em Apocalipse Satanás é tão devastador como em Jó.
Por duas vezes, Deus chama a atenção de Satanás para a integridade de Jó: “Reparou em meu servo Jó?” (1.8; 2.3). Em resposta, Satanás duas vezes relacionou a integridade de Jó com a prodigalidade de Deus (1.10-11; 2.4). Então, também por duas vezes, Deus suspendeu parte de sua proteção e deixou Jó ao alcance de Satanás (1.12; 2.6).
Na primeira vez, Satanás toma todos os seus bens e todos os seus filhos (1.13-19). Na segunda, toma toda a sua saúde (2.7-8). Depois de todos os estragos, Satanás sai de cena e não mais é citado.
O Satanás do livro de Jó é o mesmo que mais tarde vai tentar o próprio Jesus Cristo (Mt 4.1-11), peneirar Pedro (Lc 22.31), entrar no coração de Judas (Jo 13.27), encher o coração de Ananias (At 5.2), atazanar Paulo com o espinho na carne (2 Co 12.7) e impedir Paulo de visitar os tessalonicenses (1 Ts 2.18). Satanás é o tentador, o enganador, o acusador, o maligno, o homicida, o ladrão de semente (Mt 13.19), o semeador de joio (Mt 13.39), o pai da mentira, o leão que ruge e especialmente “o príncipe da potestade do ar” (Ef 2.2), isto é, “aquele que se interpõe entre o céu e a terra” (na Tradução Ecumênica da Bíblia).
Por algum tempo, mas sem perder a proteção de Deus, Jó foi contundentemente machucado por Satanás!
Apesar das discurseiras de seus amigos
Os três amigos de Jó — Elifaz, Bildade e Zofar — “souberam de todos os males [desgraças, calamidades, em outras versões] que o haviam atingido, saíram, cada um da sua região. Combinaram encontrar-se para, juntos, irem mostrar solidariedade a Jó e consolá-lo” (2.11).
Depois da mudez provocada pelo impacto da aparência de Jó, os três homens começaram a falar. Seus oito (talvez nove) discursos ocupam pelo menos nove capítulos do livro de Jó. São peças admiráveis quanto à poesia, à beleza e à religiosidade. Os três são monoteístas como o amigo e o nome de Deus aparece 39 vezes em seus discursos (incluindo os nomes Criador e Todo-poderoso). Mas revelam incrível falta de sabedoria, falta de psicologia e falta de misericórdia. Eram inoportunas para aquele momento e para a pessoa com o qual falavam. Valendo-se de uma filosofia errada e de uma teologia errada, Elifaz, Bildade e Zofar causaram enorme mal-estar a Jó e cometeram imperdoáveis injustiças contra ele. Talvez Jó tenha sofrido mais com os discursos de seus amigos do que com a bancarrota financeira, a morte dos filhos e a própria doença. Isso pode ser visto nos seguintes desabafos:
“Vocês [...] me difamam com mentiras; todos vocês são médicos que de nada valem! Se tão-somente ficassem calados, mostrariam sabedoria” (13.5).
“Até quando vocês continuarão a atormentar-me, e esmagar-me com palavras? Vocês já me repreenderam dez vezes; não se envergonham de agredir-me” (19.2-3).
“Suportem-me enquanto eu estiver falando; depois que eu falar poderão zombar de mim” (21.3).
Os amigos de Jó atentaram contra a sua tranqüilidade, alvoroçaram a sua consciência e roubaram a sua paz com Deus. Desempenharam o mesmo serviço de Satanás, aquele que se põe na presença de Deus para acusar dia e noite, não os ímpios, mas os justos (Ap 12.10).
Quando o pano se levanta e toda a verdade vem à tona, o Senhor repreende severamente os acusadores de Jó: “Estou indignado com você [Elifaz] e com os seus dois amigos [Bildade e Zofar], pois vocês não falaram o que é certo a meu respeito, como fez meu servo Jó” (42.7). Para não serem punidos por Deus “pela loucura que cometeram”, os três amigos deveriam comparecer diante de Jó, oferecer holocaustos em favor deles mesmos e se beneficiarem da intercessão de Jó (42.8-9).
Apesar da arenga de Eliú
Eliú é o quarto personagem do livro de Jó. Era mais jovem que Elifaz, Bildade e Zofar. Foi o último a falar. Seu discurso ocupa seis capítulos seguidos e ele sozinho cita o nome de Deus 39 vezes. Embora mais cortês e mais próximo da verdade quanto à visão do sofrimento, Eliú também não poupou o homem da terra de Uz:
“Neste mundo não há ninguém como Jó, para quem é tão fácil zombar de Deus como beber um copo de água. Ele anda com homens maus e se ajunta com gente que não presta” (34.7, NTLH).
“Jó é pecador, um pecador rebelde. Na nossa presença, zomba de Deus e não pára de falar contra ele” (34.37, NTLH).
“Jó, você não tem o direito de dizer para Deus que você é inocente” (35.2, NTLH).
“São os outros que sofrem por causa dos pecados que você comete” (35.8, NTLH).
“Não adianta nada continuar o seu discurso; você fala muito, porém não sabe o que está dizendo” (35.16, NTLH).
“Você está sofrendo por causa da sua maldade; cuidado, não se volte para ela!” (35.21, NTLH.)
Com o discurso de Eliú fechou-se o cerco contra Jó. Já não havia ninguém a favor do homem da terra de Uz. Todos declararam impiedosamente e à uma voz que Jó era o único responsável pelo sofrimento dele: estava colhendo o que plantara (Gl 6.7-8).
Apesar de Deus
Ninguém tinha conhecimento do que estava acontecendo fora do palco, nos bastidores do inferno. Nem a principal vítima, nem a sua mulher, nem os demais parentes, nem a vizinhança, nem os conhecidos, nem seus antigos hóspedes, nem seus servos e servas, nem os rapazotes que brincavam displicentemente nas ruas e praças, nem os miseráveis que Jó havia acolhido em tempo de fartura. Menos ainda os acadêmicos presunçosos que vieram de Temã, de Suá e de Naamate, e o jovem Eliú, igualmente presunçoso. Ninguém sabia nada do profundo apreço de Deus por Jó, das duas provocações de Deus a Satanás (“Reparou em meu servo Jó?”), das alegações de Satanás de que Jó era reto por uma questão de interesse particular, das duas progressivas diminuições do tamanho da cerca que protegia Jó e da poderosa e sobrenatural investida de Satanás contra as posses, contra a família e contra a saúde de Jó. O mais ignorante disso tudo seria o próprio Jó.
Por essa razão, mesmo sem entender nada do que estava acontecendo, e na certeza de que nada está fora do controle de Deus, Jó atribuía tudo ao Senhor, como se pode ver nas declarações assinadas por ele:
“Nasci nu, sem nada, e sem nada vou morrer. O Senhor deu [tudo o que eu tinha], o Senhor tirou; louvado seja o seu nome!” (1.21, NTLH.)
“Sem dúvida, ó Deus, tu me esgotaste as forças; deste fim a toda a minha família. Tu me deixaste deprimido. [...] Deus, em sua ira, ataca-me e faz-me em pedaços, e range os dentes contra mim” (16.7-9).
“Deus fez-me cair nas mãos dos ímpios e atirou-me nas garras dos maus. Eu estava tranqüilo, mas ele me arrebentou; agarrou-me pelo pescoço e esmagou-me. Fez de mim o seu alvo; seus flecheiros me cercam. Ele traspassou sem dó os meus rins e derramou na terra a minha bílis. Lança-se sobre mim uma e outra vez; ataca-me como um guerreiro” (16.11-14).
“Foi Deus que me tratou mal e me envolveu em sua rede. [...] Ele bloqueou o meu caminho, e não consigo passar; cobriu de trevas as minhas veredas. Despiu-me da minha honra e tirou a coroa de minha cabeça. Ele me arrasa por todos os lados enquanto eu não me vou; desarraiga a minha esperança como se arranca uma planta. Sua ira acendeu-se contra mim; ele me vê como inimigo. Suas tropas avançam poderosamente; cercam-me e acampam ao redor da minha tenda” (19.6-12).
“Misericórdia, meus amigos! Misericórdia! Pois a mão de Deus me feriu” (19.21).
Na verdade, Deus não fez nada contra Jó. Porém, permitiu que Satanás fizesse tudo isso e ainda se servisse de sua própria esposa e de seus próprios amigos. Todavia, nenhum desses estranhos acontecimentos tirou o patriarca do caminho reto. É extraordinária sua resistência às circunstâncias esmagadoramente contrárias!
Apesar do próprio Jó
Jó era de carne e osso como qualquer outra criatura. Era homem e não Deus, era homem e não semideus, era homem e não super-homem. Assim como Jesus, em sua forma humana, era igual a qualquer de nós e tinha as mesmas necessidades básicas, como fome, sede e sono, e “passou por todo tipo de tentação” (Hb 4.15). Jó era cercado de limitações e fraquezas. O homem da terra de Uz era irrepreensível e inculpável, mas era santo no sentido restrito. Ele nasceu pecador e era pecador. O pecado habitava nele, estava dentro dele e atuava em seus membros, como aconteceu com Paulo (Rm 7.14-25) e como acontece com qualquer outro mortal.
As dores provocadas pela perda de todos os bens, pela morte de todos os filhos e pela doença mau cheirosa e sem cura, não foram fictícias. Assim como as dores dos cravos que atravessaram os pés e as mãos de Jesus não foram teatrais. Jó sofreu com o mau conselho da esposa e com a incompreensão, a falta de tato, o fundamentalismo religioso, as críticas, as calúnias, as denúncias, a falta de compaixão e a insistência de Elifaz, Bildade, Zofar e Eliú. Nada disso passou despercebido pelo sofrido Jó. Ele chorava — “Meu rosto está rubro de tanto eu chorar” (16.16). Ele ficava perdido, confuso, desesperado, deprimido. Jó fazia reclamações, lamentações, desabafos (não há outro livro com tantos e sérios desabafos como o de Jó). Ele tinha crises de fé. Todavia, o homem da terra de Uz sobreviveu a tudo isso e fazia sua pública profissão de fé: “Eu sei que o meu Redentor vive, e que no fim se levantará sobre a terra” (19.25).
Jó é um dos mais notáveis exemplos de resistência frente às vicissitudes pelas quais o ser humano pode passar!
Logo no início do livro, Jó é apresentado como homem extremamente correto, inculpável, íntegro, irrepreensível, justo, precavido (“evitava fazer o mal”), reto (“andava na linha”) e temente a Deus (Jó 1.1). Era um homem especial, fora de série, um exemplo impressionante em sua época e em nosso tempo. Duas vezes o próprio Deus afirma que Jó era sem igual: “No mundo inteiro não há ninguém tão bom e honesto como ele” (Jó 1.8; 2.3)
Em geral, o que os cristãos sabem a respeito de Jó é apenas o que está no prólogo (os dois primeiros capítulos) e no epílogo (os 12 últimos versos do último capítulo). Passa-se por cima de toda a parte poética do livro, que valoriza tremendamente o caráter de Jó. Já o leitor que examina o miolo do livro fica perplexo com a incrível resistência do homem da terra de Uz frente a toda sorte de sofrimento, como se pode ver a seguir. Jó era irrepreensível...
Apesar das desventuras
Jó não era sem igual só no terreno ético. No que diz respeito à prosperidade, ele era aprovado e bem-sucedido em tudo. Jó tinha saúde, família, riquezas e muita gente a seu serviço. Era “o homem mais rico do oriente”. Possuía 11.500 cabeças de gado. De uma hora para outra, perdeu tudo. Em um mesmo dia, Jó recebeu quatro más notícias seguidas, uma imediatamente após a outra. As perdas foram provocadas pelos povos vizinhos (os sabeus e os caldeus) e por desastres naturais (raios caídos do céu e uma terrível ventania vinda do deserto). Foi assim que Jó perdeu...
Todo o gado (7.000 ovelhas, 3.000 camelos, 1.000 bois e 500 jumentos);
Todos os empregados (administradores, agricultores, boiadeiros, carreiros, cortadores de lã, guardas das torres de vigia, plantadores de capim, roçadores de pastos, tiradores de leite, tratadores de animais, vendedores de gado etc). Só escaparam aqueles que vieram trazer essas notícias.
Todos os dez filhos (três mulheres e sete homens). Estavam todos comendo e bebendo na casa do irmão mais velho, quando o furacão atingiu a casa e a derrubou sobre eles. No dia seguinte, havia dez caixões de defuntos para Jó enterrar.
Apesar da doença
Pouco depois da perda de quase todos os bens e de todos os filhos, Jó perdeu a saúde, o mais precioso bem que alguém pode possuir. A doença era tão grave que o obrigava a pensar na morte. Vários diagnósticos têm sido apresentados: a doença poderia ser dermatose escamosa, elefantíase, eczema crônico, eritema, lepra, melanoma, pênfigo foliáceo, psoríase queratose, úlceras malignas, varíola. Ele portava “feridas terríveis, da sola dos pés ao alto da cabeça”, raspava-se com um caco de louça e ficou tão desfigurado que seus amigos não puderam reconhecê-lo e começaram a chorar em alta voz diante daquele quadro aterrador (2.12-13).
O mal de Jó era uma agressão à visão e ao olfato de todos os que o cercavam.
Vale a pena ler o que o próprio Jó fala a respeito:
“Que esperança posso ter, se já não tenho forças? Como posso ter paciência, se não tenho futuro?” (6.11).
“Quando me deito fico pensando: quanto vai demorar para eu me levantar? A noite se arrasta, e eu fico virando na cama até o amanhecer. Meu corpo está coberto de vermes e cascas de ferida, minha pele está rachada e vertendo pus. [...] É melhor ser estrangulado e morrer do que sofrer assim” (7.4-5,15).
“Meus dias correm mais velozes que um atleta; eles voam sem um vislumbre de alegria. Passam [ligeiros] como barcos de papiro, como águias que mergulham sobre as presas” (9.25).
“Tornei-me objeto de riso para os meus amigos, logo eu, que clamava a Deus e ele me respondia, eu, íntegro e irrepreensível, um mero objeto de riso!” (12.4).
“Minha magreza [...] depõe contra mim”(16.8); “O meu corpo não passa de uma sombra” (17.7); “Não passo de pele e ossos” (19.20).
“O único lar pelo qual espero é a sepultura” (17.13); “Quem poderá ver alguma esperança para mim?” (17.15).
“Minha mulher acha repugnante o meu hálito; meus próprios irmãos têm nojo de mim” (19.17).
“Agora esvai-se a minha vida; estou preso a dias de sofrimento. A noite penetra os meus ossos; minhas dores me corroem sem cessar” (30.16-17).
“Minha pele escurece e cai; meu corpo queima de febre. Minha harpa está afinada para cantos fúnebres, e minha flauta para o som de pranto” (30.30-31).
Apesar da esposa
A companheira de Jó e mãe de seus filhos mortos não teve sabedoria suficiente para enfrentar o sofrimento da família:
1) Ela foi incapaz de suportar o quadro doentio do marido. Jó pessoalmente descreve a situação: “Minha própria esposa não chega perto de mim por causa do mau cheiro que sai de minha boca quando falo” (19.17, BV). O cheiro repugnante vinha também das feridas abertas.
2) Ela foi incapaz de manter o relacionamento anterior com Deus. A esposa de Jó rompeu com o Senhor e aconselhou o marido a fazer o mesmo: “Você ainda vai tentar ser muito religioso, mesmo depois de tudo o que Deus nos fez? O melhor que você tem a fazer é amaldiçoar a Deus e morrer!” Jó viu-se na obrigação de opor-se e resistir à própria esposa: “O que você está falando é loucura completa. Já recebemos tantas coisas boas de Deus, porque não recebemos também o sofrimento e a dor?” (2.9-10, BV.)
3) Ela foi incapaz de acompanhar o marido. A dura verdade é que a esposa de Jó passou para o lado oposto: aliou-se a Satanás, tornou-se porta-voz dele, fez-se advogada do diabo. Pois o único propósito de Satanás era levar Jó a amaldiçoar a Deus (1.11; 2.5).
Apesar da solidão Antes de suas desventuras, Jó tinha nome, tinha dinheiro, tinha poder. Era cercado de pobres, órfãos, viúvas e estrangeiros, com os quais repartia seus bens. Era cercado de parentes, amigos e vizinhos, próximos e distantes, com os quais se alegrava. Afinal, muitos são os que amam o rico (Pv 14.20). Mas, depois de suas desgraças, todos foram se retirando e deixaram Jó sozinho. Ele se queixa amargamente disso:
“[Deus] afastou de mim os meus irmãos; até os meus conhecidos estão longe de mim. Os meusparentes me abandonaram e os meus amigos esqueceram-se de mim. Os meus hóspedes e as minhasservas consideram-me estrangeiro; vêem-me como um estranho. Chamo o meu servo, mas ele não me responde, ainda que lhe implore pessoalmente. Minha mulher acha repugnante o meu hálito; meus próprios irmãos têm nojo de mim. Até os meninos zombam de mim e dão risadas quando apareço. Todos os meus amigos chegados me detestam; aqueles a quem amo voltaram-se contra mim” (19.13-20).
Apesar do Diabo O livro da Bíblia que menciona maior número de vezes o nome de Satanás é o de Jó. São ao todo quatorze citações, que aparecem apenas nos dois primeiros capítulos, o equivalente a pouco mais de 25% de todas as ocorrências. Quanto a toda a Escritura, apenas em Apocalipse Satanás é tão devastador como em Jó.
Por duas vezes, Deus chama a atenção de Satanás para a integridade de Jó: “Reparou em meu servo Jó?” (1.8; 2.3). Em resposta, Satanás duas vezes relacionou a integridade de Jó com a prodigalidade de Deus (1.10-11; 2.4). Então, também por duas vezes, Deus suspendeu parte de sua proteção e deixou Jó ao alcance de Satanás (1.12; 2.6).
Na primeira vez, Satanás toma todos os seus bens e todos os seus filhos (1.13-19). Na segunda, toma toda a sua saúde (2.7-8). Depois de todos os estragos, Satanás sai de cena e não mais é citado.
O Satanás do livro de Jó é o mesmo que mais tarde vai tentar o próprio Jesus Cristo (Mt 4.1-11), peneirar Pedro (Lc 22.31), entrar no coração de Judas (Jo 13.27), encher o coração de Ananias (At 5.2), atazanar Paulo com o espinho na carne (2 Co 12.7) e impedir Paulo de visitar os tessalonicenses (1 Ts 2.18). Satanás é o tentador, o enganador, o acusador, o maligno, o homicida, o ladrão de semente (Mt 13.19), o semeador de joio (Mt 13.39), o pai da mentira, o leão que ruge e especialmente “o príncipe da potestade do ar” (Ef 2.2), isto é, “aquele que se interpõe entre o céu e a terra” (na Tradução Ecumênica da Bíblia).
Por algum tempo, mas sem perder a proteção de Deus, Jó foi contundentemente machucado por Satanás!
Apesar das discurseiras de seus amigos
Os três amigos de Jó — Elifaz, Bildade e Zofar — “souberam de todos os males [desgraças, calamidades, em outras versões] que o haviam atingido, saíram, cada um da sua região. Combinaram encontrar-se para, juntos, irem mostrar solidariedade a Jó e consolá-lo” (2.11).
Depois da mudez provocada pelo impacto da aparência de Jó, os três homens começaram a falar. Seus oito (talvez nove) discursos ocupam pelo menos nove capítulos do livro de Jó. São peças admiráveis quanto à poesia, à beleza e à religiosidade. Os três são monoteístas como o amigo e o nome de Deus aparece 39 vezes em seus discursos (incluindo os nomes Criador e Todo-poderoso). Mas revelam incrível falta de sabedoria, falta de psicologia e falta de misericórdia. Eram inoportunas para aquele momento e para a pessoa com o qual falavam. Valendo-se de uma filosofia errada e de uma teologia errada, Elifaz, Bildade e Zofar causaram enorme mal-estar a Jó e cometeram imperdoáveis injustiças contra ele. Talvez Jó tenha sofrido mais com os discursos de seus amigos do que com a bancarrota financeira, a morte dos filhos e a própria doença. Isso pode ser visto nos seguintes desabafos:
“Vocês [...] me difamam com mentiras; todos vocês são médicos que de nada valem! Se tão-somente ficassem calados, mostrariam sabedoria” (13.5).
“Até quando vocês continuarão a atormentar-me, e esmagar-me com palavras? Vocês já me repreenderam dez vezes; não se envergonham de agredir-me” (19.2-3).
“Suportem-me enquanto eu estiver falando; depois que eu falar poderão zombar de mim” (21.3).
Os amigos de Jó atentaram contra a sua tranqüilidade, alvoroçaram a sua consciência e roubaram a sua paz com Deus. Desempenharam o mesmo serviço de Satanás, aquele que se põe na presença de Deus para acusar dia e noite, não os ímpios, mas os justos (Ap 12.10).
Quando o pano se levanta e toda a verdade vem à tona, o Senhor repreende severamente os acusadores de Jó: “Estou indignado com você [Elifaz] e com os seus dois amigos [Bildade e Zofar], pois vocês não falaram o que é certo a meu respeito, como fez meu servo Jó” (42.7). Para não serem punidos por Deus “pela loucura que cometeram”, os três amigos deveriam comparecer diante de Jó, oferecer holocaustos em favor deles mesmos e se beneficiarem da intercessão de Jó (42.8-9).
Apesar da arenga de Eliú
Eliú é o quarto personagem do livro de Jó. Era mais jovem que Elifaz, Bildade e Zofar. Foi o último a falar. Seu discurso ocupa seis capítulos seguidos e ele sozinho cita o nome de Deus 39 vezes. Embora mais cortês e mais próximo da verdade quanto à visão do sofrimento, Eliú também não poupou o homem da terra de Uz:
“Neste mundo não há ninguém como Jó, para quem é tão fácil zombar de Deus como beber um copo de água. Ele anda com homens maus e se ajunta com gente que não presta” (34.7, NTLH).
“Jó é pecador, um pecador rebelde. Na nossa presença, zomba de Deus e não pára de falar contra ele” (34.37, NTLH).
“Jó, você não tem o direito de dizer para Deus que você é inocente” (35.2, NTLH).
“São os outros que sofrem por causa dos pecados que você comete” (35.8, NTLH).
“Não adianta nada continuar o seu discurso; você fala muito, porém não sabe o que está dizendo” (35.16, NTLH).
“Você está sofrendo por causa da sua maldade; cuidado, não se volte para ela!” (35.21, NTLH.)
Com o discurso de Eliú fechou-se o cerco contra Jó. Já não havia ninguém a favor do homem da terra de Uz. Todos declararam impiedosamente e à uma voz que Jó era o único responsável pelo sofrimento dele: estava colhendo o que plantara (Gl 6.7-8).
Apesar de Deus
Ninguém tinha conhecimento do que estava acontecendo fora do palco, nos bastidores do inferno. Nem a principal vítima, nem a sua mulher, nem os demais parentes, nem a vizinhança, nem os conhecidos, nem seus antigos hóspedes, nem seus servos e servas, nem os rapazotes que brincavam displicentemente nas ruas e praças, nem os miseráveis que Jó havia acolhido em tempo de fartura. Menos ainda os acadêmicos presunçosos que vieram de Temã, de Suá e de Naamate, e o jovem Eliú, igualmente presunçoso. Ninguém sabia nada do profundo apreço de Deus por Jó, das duas provocações de Deus a Satanás (“Reparou em meu servo Jó?”), das alegações de Satanás de que Jó era reto por uma questão de interesse particular, das duas progressivas diminuições do tamanho da cerca que protegia Jó e da poderosa e sobrenatural investida de Satanás contra as posses, contra a família e contra a saúde de Jó. O mais ignorante disso tudo seria o próprio Jó.
Por essa razão, mesmo sem entender nada do que estava acontecendo, e na certeza de que nada está fora do controle de Deus, Jó atribuía tudo ao Senhor, como se pode ver nas declarações assinadas por ele:
“Nasci nu, sem nada, e sem nada vou morrer. O Senhor deu [tudo o que eu tinha], o Senhor tirou; louvado seja o seu nome!” (1.21, NTLH.)
“Sem dúvida, ó Deus, tu me esgotaste as forças; deste fim a toda a minha família. Tu me deixaste deprimido. [...] Deus, em sua ira, ataca-me e faz-me em pedaços, e range os dentes contra mim” (16.7-9).
“Deus fez-me cair nas mãos dos ímpios e atirou-me nas garras dos maus. Eu estava tranqüilo, mas ele me arrebentou; agarrou-me pelo pescoço e esmagou-me. Fez de mim o seu alvo; seus flecheiros me cercam. Ele traspassou sem dó os meus rins e derramou na terra a minha bílis. Lança-se sobre mim uma e outra vez; ataca-me como um guerreiro” (16.11-14).
“Foi Deus que me tratou mal e me envolveu em sua rede. [...] Ele bloqueou o meu caminho, e não consigo passar; cobriu de trevas as minhas veredas. Despiu-me da minha honra e tirou a coroa de minha cabeça. Ele me arrasa por todos os lados enquanto eu não me vou; desarraiga a minha esperança como se arranca uma planta. Sua ira acendeu-se contra mim; ele me vê como inimigo. Suas tropas avançam poderosamente; cercam-me e acampam ao redor da minha tenda” (19.6-12).
“Misericórdia, meus amigos! Misericórdia! Pois a mão de Deus me feriu” (19.21).
Na verdade, Deus não fez nada contra Jó. Porém, permitiu que Satanás fizesse tudo isso e ainda se servisse de sua própria esposa e de seus próprios amigos. Todavia, nenhum desses estranhos acontecimentos tirou o patriarca do caminho reto. É extraordinária sua resistência às circunstâncias esmagadoramente contrárias!
Apesar do próprio Jó
Jó era de carne e osso como qualquer outra criatura. Era homem e não Deus, era homem e não semideus, era homem e não super-homem. Assim como Jesus, em sua forma humana, era igual a qualquer de nós e tinha as mesmas necessidades básicas, como fome, sede e sono, e “passou por todo tipo de tentação” (Hb 4.15). Jó era cercado de limitações e fraquezas. O homem da terra de Uz era irrepreensível e inculpável, mas era santo no sentido restrito. Ele nasceu pecador e era pecador. O pecado habitava nele, estava dentro dele e atuava em seus membros, como aconteceu com Paulo (Rm 7.14-25) e como acontece com qualquer outro mortal.
As dores provocadas pela perda de todos os bens, pela morte de todos os filhos e pela doença mau cheirosa e sem cura, não foram fictícias. Assim como as dores dos cravos que atravessaram os pés e as mãos de Jesus não foram teatrais. Jó sofreu com o mau conselho da esposa e com a incompreensão, a falta de tato, o fundamentalismo religioso, as críticas, as calúnias, as denúncias, a falta de compaixão e a insistência de Elifaz, Bildade, Zofar e Eliú. Nada disso passou despercebido pelo sofrido Jó. Ele chorava — “Meu rosto está rubro de tanto eu chorar” (16.16). Ele ficava perdido, confuso, desesperado, deprimido. Jó fazia reclamações, lamentações, desabafos (não há outro livro com tantos e sérios desabafos como o de Jó). Ele tinha crises de fé. Todavia, o homem da terra de Uz sobreviveu a tudo isso e fazia sua pública profissão de fé: “Eu sei que o meu Redentor vive, e que no fim se levantará sobre a terra” (19.25).
Jó é um dos mais notáveis exemplos de resistência frente às vicissitudes pelas quais o ser humano pode passar!
Fonte:Revista Ultimato
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