Introdução
Um neologismo tem se tornado comum nos últimos anos – “fidelização”. Trata-se de um termo da área de publicidade e marketing que traduz um desejo de empresas em diferentes ramos de atividade: o de que seus clientes ou consumidores se mantenham fiéis a elas e a seus produtos. Especialmente em setores nos quais existe forte concorrência, trata-se de um alvo buscado com crescente intensidade. Evidentemente, a fidelidade das pessoas a um determinado fornecedor ou prestador de serviços pode não ter quaisquer implicações éticas. Se alguém é cliente da pizzaria “a” ou “b” e utiliza os serviços dessa ou daquela companhia de telefonia celular, isso não tem maiores consequências fora da área mercadológica. Em outras esferas, todavia, a fidelidade adquire uma importância muito maior, como é o caso da política partidária. No Brasil, há muito tempo um bom número de políticos tem se envolvido com uma prática condenável: a troca frequente de partidos, geralmente por motivos pouco elogiáveis. Eles se filiam a uma legenda, elegem-se por ela e depois, movidos por interesses muitas vezes questionáveis, simplesmente se transferem para outra. Em anos recentes têm sido aprovadas leis visando coibir a chamada “infidelidade partidária”. Pois bem, esse é um tema que também interessa de perto às igrejas evangélicas.
É um fato conhecido que muitas delas, se não todas, experimentam um considerável êxodo de membros. Muitas vezes é feito um grande esforço no sentido de atrair novos adeptos, para depois perder parte deles pelos mais diferentes motivos. Muitos líderes parecem não estar preparados para lidar com essa realidade e são escassos os materiais publicados que tratam do assunto desde uma perspectiva pastoral. O objetivo deste artigo é analisar essa questão dos pontos de vista histórico e bíblico, bem como propor estratégias a serem tomadas para amenizar esse problema.
1. Dimensão Histórica
O problema da evasão de seguidores já pode ser visto no Novo Testamento, desde a época do ministério de Jesus. É bem conhecido o episódio em que, depois de um discurso contundente do Mestre, muitos de seus discípulos deixaram de segui-lo (Jo 6.66). Na igreja primitiva, o abandono da comunhão cristã geralmente estava associado à apostasia, à deserção da fé, sendo condenado vigorosamente. É essa a atitude do autor da 1ª Epístola de João, que se refere aos desertores como “anticristos” e acrescenta: “Eles saíram do nosso meio; entretanto não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse manifesto que nenhum deles é dos nossos” (1Jo 2.19). Na 1ª Epístola a Timóteo, Paulo afirma que, nos últimos tempos, alguns apostatariam da fé (1Tm 4.1).
É importante lembrar que os primeiros cristãos entendiam estar vivendo nos últimos dias. Assim, a realidade da apostasia era algo contemporâneo, e não somente futuro. A epístola aos Hebreus lida muito diretamente com a problemática do abandono da fé, exortando os crentes a perseverarem no evangelho (2.1-3; 3.12-13; 6.11-12). A certa altura, o autor deixa claro que a deserção da comunidade cristã era uma realidade naqueles dias, mas apela aos seus leitores para que resistam contra isso: “Não deixemos de congregar-nos, como é costume de alguns; antes, façamos admoestações e tanto mais quanto vedes que o Dia se aproxima” (10.25).
Essa problemática continuou existindo nos três primeiros séculos da era cristã, o período em que o cristianismo era considerado uma religião ilegal (religio illicita). As duas principais causas de afastamento da igreja eram o fascínio das heresias ou das religiões alternativas e o temor das perseguições. Muitos cristãos deixavam a “igreja católica”, a corrente principal do cristianismo, considerada ortodoxa, fiel ao legado de Cristo e dos apóstolos, para se unir a manifestações heterodoxas como o gnosticismo, o montanismo, o marcionismo e outros movimentos. A literatura cristã antiga está repleta de alusões a esses grupos e aos males que causavam à igreja e seus fiéis.
No contexto das perseguições, muitas delas restritas e localizadas, e outras amplas e gerais, um grande número de pessoas abandonava a comunidade cristã. Elas o faziam justamente para não serem submetidas aos sofrimentos resultantes da ação repressora do estado. Porém, cessada a perseguição, surgia um difícil problema pastoral a ser enfrentado pelos bispos, os líderes da igreja. Muitos desses indivíduos que haviam negado a Cristo e se entregue à idolatria e outras práticas, arrependiam-se e manifestavam o desejo de retornar à igreja. As atitudes dos bispos variavam em relação a tais pessoas: alguns deles, adotando uma postura tolerante, reintegravam-nas com relativa facilidade; outros, conhecidos como “rigoristas”, submetiam-nas a um longo e árduo processo de reinserção na comunidade cristã. Em alguns casos, esse processo podia durar a vida inteira e o indivíduo somente era readmitido à comunhão no seu leito de morte, caso tivesse se mantido fiel até então. Essa situação viria a resultar no desenvolvimento do sacramento da penitência, que visava lidar com a realidade do pecado na vida dos batizados.[1]
Com o advento da era constantiniana, no início do quarto século, marcada pela aliança da igreja com o estado e pelo surgimento do cristianismo como religião oficial do Império Romano, o problema da deserção tomou novos contornos. Agora, sendo a igreja majoritária e aliada ao poder civil, era altamente desejável permanecer nela, e muito arriscado deixá-la. Surgiu assim uma inversão de situações: enquanto nos três primeiros séculos muitos abandonavam a igreja para não serem perseguidos, agora essa deserção é que se tornou passível de castigo, principalmente no caso dos heterodoxos. Um bispo espanhol, Prisciliano, e alguns de seus seguidores, foram os primeiros indivíduos a serem executados por heresia na história do cristianismo, em 385.[2]
Tal situação perdurou ao longo de toda a Idade Média. No contexto da “cristandade”, ou seja, a sociedade europeia fortemente influenciada pela Igreja Romana, o problema do abandono da igreja ou da fé ficou relativamente minimizado. Todas as pessoas eram batizadas na infância e se tornavam nominalmente cristãs. Os súditos de um estado eram ao mesmo tempo membros da única igreja. Cidadania e fé se equivaliam. Nesse contexto, não havia nenhuma tentação ou oportunidade para abandonar a comunidade eclesial. Essa realidade se alterou profundamente com o surgimento da Reforma Protestante. Esse movimento rompeu a cristandade e introduziu o princípio da diversidade religiosa no contexto do cristianismo europeu. Tal fato incentivou o trânsito das pessoas de uma confissão religiosa para outra. Além disso, o advento de uma mentalidade secularizante, associada com o Renascimento e o Humanismo, levou muitas pessoas a simplesmente rejeitarem qualquer religiosidade institucional.
Curiosamente, por um bom tempo as novas igrejas protestantes mantiveram a mentalidade hegemônica do catolicismo medieval. Em todas as nações ou regiões protestantes havia uma igreja oficial, fosse ela luterana, reformada ou anglicana, e os adeptos de outros grupos eram submetidos a diversas restrições. A única exceção eram os anabatistas, que rejeitavam qualquer associação entre a igreja e o estado. Esse sistema se transferiu para as colônias inglesas da América do Norte, onde cada colônia tinha a sua própria igreja oficial e os dissidentes sofriam sérias limitações e até mesmo rigorosas punições, como foi o caso dos quacres em Massachusetts. Finalmente, com a independência americana e a consagração da norma constitucional de separação entre igreja e estado, surgiu o fenômeno conhecido como denominacionalismo, ou seja, uma situação em que as mais diversas confissões religiosas têm exatamente o mesmo status e plena igualdade diante da lei, ninguém podendo ser punido por pertencer a este ou aquele grupo confessional, ou a nenhum deles.[3]
Evidentemente essa situação estimulou ainda mais a “infidelidade eclesiástica”. Como as pessoas tinham muitas opções religiosas, e não sofriam nenhuma sanção se transitassem de uma para outra, esse fato passou a ocorrer com frequência. Outras pessoas, por diferentes razões, simplesmente deixavam suas comunidades de origem e não se filiavam a nenhuma outra, optando por uma vida irreligiosa.
2. No Brasil
Como é sobejamente conhecido, dois tipos de igrejas protestantes foram implantadas no Brasil no século 19: aquelas constituídas de imigrantes europeus, como a anglicana e a luterana, e aquelas surgidas como resultado da atividade missionária europeia e norte-americana (congregacionais, presbiterianos, metodistas, batistas, episcopais e outros). Embora imperasse no país a união entre igreja e estado, sendo a Igreja Romana a religião oficial do império, entre as igrejas protestantes, principalmente as de origem missionária, ocorria na prática o fenômeno do denominacionalismo, que se consagrou definitivamente com o advento da República.
Por muito tempo houve considerável trânsito de membros entre as denominações tradicionais, o que era visto com certa naturalidade. Ninguém se espantava ou se afligia se um presbiteriano passava a frequentar uma igreja batista, ou um congregacional se tornava metodista. Por causas das afinidades entre essas igrejas, tais transferências não chegavam a chocar. Isso ocorria inclusiva com pastores: no início do século 20, dois ministros metodistas de igual sobrenome, Manoel de Arruda Camargo e Jovelino Moraes de Camargo, serviram a igreja presbiteriana por alguns anos, sem que isso causasse qualquer estremecimento entre as duas denominações.[4]
Muito diferente era a situação em que o afastamento de membros ocorria num contexto conflitivo, quer como resultado de cismas, adesão a grupos considerados heterodoxos ou quebra de padrões doutrinários e éticos. A seguir, são examinados alguns desses casos em conexão com a igreja presbiteriana brasileira.
2.1 Cisões ou Cismas
Historicamente, a ocorrência de divisões nas igrejas tem sido uma causa importante para o afastamento de membros. O primeiro cisma ocorrido no incipiente presbiterianismo nacional foi aquele associado ao Dr. Miguel Vieira Ferreira (1837-1885), engenheiro pertencente a uma família aristocrática do Maranhão. Em abril de 1874, ele foi recebido por profissão de fé e batismo pelo Rev. Alexander Blackford, na Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro. Poucos meses depois foi eleito presbítero e acompanhou o missionário em algumas viagens evangelísticas. O pastor seguinte daquela igreja, Rev. Dillwin M. Hazlett, estando envolvido com outras atividades, entregou-lhe o púlpito com frequência. Dotado de um temperamento místico, que anteriormente o havia levado a envolver-se com o espiritismo, o Dr. Miguel começou a fundamentar seu ensino em sonhos e visões, pretendendo ter revelações diretas de Deus. Em fevereiro de 1879, ele foi suspenso do presbiterato. Em setembro daquele ano retirou-se da igreja com 27 pessoas, muitas delas de sua família, criando a Igreja Evangélica Brasileira, uma pequena denominação que existe até os dias de hoje.[5] Esse episódio foi objeto de várias análises do professor Émile Léonard, que o considerou um caso de “iluminismo” protestante.[6] Do ponto de vista pastoral, vale destacar a temeridade dos missionários em ordenar ao presbiterato esse indivíduo recém-convertido e posteriormente confiar-lhe o púlpito.
Posteriormente, com o cisma de 1903, que resultou no surgimento da Igreja Presbiteriana Independente, um número muito maior de membros deixou a igreja presbiteriana “sinodal”, gerando incontáveis amarguras por anos a fio. A partir da década de 1960, o movimento de renovação espiritual e posteriormente as influências neopentecostais continuaram a produzir divisões e afastamento de membros. Por sua natureza e por seu caráter coletivo, esse tipo de evasão dificilmente pode ser sanado, embora ocorram casos em que as pessoas acabam se decepcionando com o grupo separatista e fazem o caminho de volta.
2.2 Adesão a Outros Grupos Religiosos
Outro motivo para a evasão de membros tem sido o retorno à confissão religiosa original ou a filiação a outros grupos, evangélicos ou não. São um tanto comuns nos anais da história presbiteriana os casos em que membros vindos do catolicismo retornavam à velha igreja ou ingressavam nas fileiras espíritas. Porém, com mais frequência os líderes lamentam a adesão de fiéis a “seitas” protestantes, como sabatistas, pentecostais e outros movimentos.[7] Um exemplo interessante pode ser visto no primeiro livro de atas do conselho da Igreja Presbiteriana de Guarapuava, no interior do Paraná, organizada em 1889. Em maio de 1921, o conselho dessa igreja excluiu do seu rol 12 pessoas por terem se filiado à Igreja Presbiteriana Independente, 14 à Igreja Luterana, 23 aos sabatistas e duas aos espíritas.[8] É importante lembrar que muitos desses indivíduos residiam fora da sede e recebiam escassa assistência pastoral, um problema comum na época. Além disso, tais deserções provavelmente ocorreram ao longo de vários anos. No caso das adesões à Igreja Luterana, todos os envolvidos eram de origem alemã.
Em sua história do presbiterianismo brasileiro, Júlio Andrade Ferreira se refere ao “duro golpe” sofrido pela Igreja Presbiteriana do Brás, em São Paulo, quando foi implantada no mesmo bairro a Congregação Cristã no Brasil.[9] Em outro lugar ele fala das visitas do Rev. Roberto Frederico Lenington a Ponta Grossa, no Paraná, “onde os adventistas andavam dizimando o rebanho”.[10] Obviamente, essas incursões proselitistas acabavam por afastar membros individuais e famílias inteiras de muitas igrejas presbiterianas.
2.3 Abandono da Fé
Um terceiro fator motivador de abandono das fileiras das igrejas era a renúncia à fé, por diferentes motivos. Particularmente lamentadas eram as deserções resultantes da quebra dos padrões éticos das igrejas evangélicas, em especial na forma de vícios e adultério. Um caso ilustrativo é o do Dr. Antônio Teixeira da Silva (1863-1917), advogado natural de Tietê e irmão de D. Alexandrina Braga, mãe do Rev. Erasmo Braga. Ele era formado pela Faculdade de Direito de São Paulo, foi diretor do Liceu de Artes e Ofícios e lecionou por vários anos no Curso Comercial Superior do Mackenzie College. Em 1900, foi recebido por profissão de fé por seu sobrinho na Igreja Presbiteriana de Niterói e se tornou um dos primeiros membros da Igreja Presbiteriana Unida de São Paulo. Por alguns anos, revelou-se vigoroso propagandista da fé evangélica, pregando em praças públicas e escrevendo folhetos e livros. Sua principal obra foi O catolicismo romano e o cristianismo puro (1902), que teve grande circulação. Foi um dos organizadores da Aliança Evangélica da capital paulista e um dos líderes iniciais do Esforço Cristão.[11]
No início de 1906, o Dr. Teixeira da Silva comunicou ao conselho da sua igreja que “tinha descrido do evangelho e vivia na transgressão do sétimo mandamento”, pedindo o seu desligamento do rol de comungantes.[12] Por vários anos esteve afastado da fé. Porém, segundo os registros da época, durante a enfermidade que o levou à morte, mostrou-se contrito e arrependido.[13] Os livros de atas das primeiras igrejas presbiterianas estão repletos de registros de demissão de membros por motivos semelhantes. Por outro lado, alguns se afastavam simplesmente por terem deixado de crer, sem terem cometido alguma transgressão moral. Em sua obra clássica sobre o presbiterianismo nacional, o historiador Vicente Themudo Lessa se refere a vários indivíduos que ingressaram na igreja, mas “não perseveraram na fé”. Entre outros, ele menciona o médico e cientista Vital Brasil Mineiro da Campanha; o jornalista e poeta Teófilo Barbosa; o candidato ao ministério e mais tarde advogado Randolfo Campos; Ricardo Figueiredo, diretor de O Estado de São Paulo, e Agnelo Costa, advogado, político e jornalista no Maranhão.[14]
3. O Cenário Atual
Como se percebe, a evasão de membros é um fenômeno antigo no protestantismo brasileiro, porém nos últimos anos adquiriu proporções alarmantes. O censo de 2010 realizado pelo IBGE revelou um contingente de quatro milhões de evangélicos que declararam não estar filiados a nenhuma igreja. Não se trata de pessoas que deixaram de abraçar a fé cristã e evangélica. Elas continuam a se considerar cristãs ou evangélicas, mas não julgam necessária uma vinculação eclesiástica. Para designar esses indivíduos, foi criado no Brasil há alguns anos o neologismo “desigrejados”, correspondente ao inglês “unchurched”. Um estudo recente sobre o assunto foi feito por Idauro Campos, pastor congregacional em Niterói e professor em diversos seminários da região. Sua dissertação de mestrado em Ciências da Religião no Seminário Teológico Congregacional do Estado do Rio de Janeiro foi publicada com o título Desigrejados: teoria, história e contradições do niilismo eclesiástico.[15] As referências bibliográficas arroladas por esse autor revelam o vasto número de estudos que têm se voltado para o tema nos últimos anos.[16]
Sua pesquisa revela duas causas principais para o fenômeno dos sem-igreja. Muitos membros deixam as igrejas evangélicas, principalmente neopentecostais, por se decepcionarem com líderes autoritários, controladores, ávidos por dinheiro, prestígio e poder.[17] Essas pessoas se ressentem da exploração espiritual, emocional e financeira a que foram submetidas por pastores inescrupulosos. Todavia, muitas delas acabam procurando outras igrejas nas quais a liderança é exercida dentro de moldes mais bíblicos. O segundo grupo é constituído daqueles que renunciam às suas congregações por não mais acreditarem na igreja institucional. Os porta-vozes desse movimento argumentam que o uso de templos, a existência de ministros ordenados e o ensino por meio de prédicas, entre outros fatores, são exemplos da paganização da igreja, do seu afastamento da simplicidade do cristianismo original.[18] Tais líderes propõem uma espiritualidade centrada em pequenos grupos, reuniões em contextos informais e um mínimo de aparato institucional. Entre eles estão Frank Vila e George Barna, nos Estados Unidos, e Caio Fábio e Paulo Brabo, no Brasil.
Embora tenha simpatia pelo primeiro grupo, aqueles que deixaram suas igrejas por terem sido “feridos em nome de Deus”, Campos discorda firmemente dos proponentes de uma “terceira reforma”. Enquanto que a primeira, a dos reformadores do século 16, teria sido doutrinária, e a segunda, a dos pietistas, teria ocorrido no âmbito da espiritualidade, a terceira seria eclesiológica, implicando numa profunda reformulação da igreja institucional. Conquanto reconheça, como é correto, os erros da igreja enquanto instituição, inclusive no âmbito protestante, o referido autor apresenta vários argumentos em sua defesa: o questionamento da igreja visível não é novo na história do cristianismo, tendo ocorrido muitas vezes no passado[19]; embora a igreja neotestamentária tivesse uma organização bastante singela, já se percebem os sinais de uma institucionalização incipiente, como as instruções a respeito dos oficiais; nenhuma organização pode prescindir de alguma estruturação formal – isso é próprio de todo grupamento humano. Mesmo que um movimento denomine suas unidades de “estações do caminho” (Caio Fábio), mais cedo ou mais tarde elas irão ter características de igrejas.
Uma das críticas mais pertinentes feitas por Campos aos proponentes da desvinculação com a igreja tem a ver com a “crise de pertencimento” da sociedade pós-moderna.[20] A mentalidade contemporânea caracteriza-se por elementos como o relativismo, o pluralismo e o individualismo exacerbados. Nesse contexto, são desfeitos os vínculos de lealdade com as instituições. Esse autor conclui: “Mesmo que não percebam ou que não admitam, muito da energia dos desigrejados vem da pós-modernidade. Antes de ser uma revolução (como acreditam) é tão somente um reflexo do momento pelo qual a sociedade passa”.[21]
Uma ressalva que se pode fazer a esse valioso estudo é o fato de deixar de considerar outros fatores igualmente importantes no processo de desigrejação, como aqueles que foram considerados acima na história do presbiterianismo brasileiro. Além da decepção com líderes abusivos e com doutrinas e práticas heterodoxas, e além do questionamento ideológico da igreja como instituição, a realidade é que muitas pessoas continuam deixando as suas congregações por participarem de movimentos cismáticos, se sentirem atraídas por igrejas mais empolgantes, não se submeterem à disciplina quando envolvidas com práticas conflitantes com a fé cristã ou simplesmente por passarem a nutrir dúvidas acerca do evangelho.
4. Perspectivas Pastorais
Este artigo não tem em vista simplesmente apresentar uma perspectiva histórica do problema da evasão de membros e fazer um breve diagnóstico desse mal que acomete muitas igrejas, mas propor ações preventivas e corretivas que podem ser empreendidas pelos líderes cristãos. A evasão de membros é um fenômeno complexo e multifacetado, decorrente de uma grande multiplicidade de fatores. Existem participantes ou frequentadores que irão deixar a congregação não importa o que se faça em relação a eles, mas é certo que muitos deixarão de fazê-lo se forem tomadas atitudes adequadas em relação aos problemas que enfrentam ou aos questionamentos que nutrem com relação à igreja. A seguir, são apontados alguns elementos a serem considerados por aqueles que se preocupam com esse desafio.
4.1 Autocrítica
Em primeiro lugar, pastores e presbíteros precisam admitir que suas igrejas não são perfeitas e podem ter características que tenderão a afastar alguns de seus integrantes. O tradicionalismo, as formas rígidas de culto e organização, a incapacidade de se adaptar a novas realidades, a falta de abertura para o diálogo e outros fatores correlatos estão presentes em muitas igrejas e acabam por gerar insatisfação e finalmente evasão. Alguém disse que muitas vezes a igreja fica eternamente respondendo perguntas que as pessoas não estão fazendo e, por outro lado, deixa de responder as que elas estão levantando. Isso dá aos fiéis a percepção de que suas necessidades, dúvidas e carências não estão sendo supridas. Se é bem verdade, desde uma perspectiva reformada, que o alvo precípuo da igreja é a glória de Deus e não a satisfação de necessidades, por outro lado a igreja tem o dever de ministrar aos seus participantes em suas carências espirituais, emocionais, relacionais e outras.
Outro aspecto crucial diz respeito às oportunidades que as pessoas, todas as pessoas, devem ter na igreja de exercer os ministérios e dons confiados por Deus. Aqui, dois erros extremos podem ocorrer, um de falta e outro de excesso. Existem membros que se frustram porque raramente têm espaço para fazer alguma coisa, para dar a sua contribuição. Por exemplo, aquela pessoa que nunca tem a oportunidade de fazer uma oração no culto público ou de ter qualquer outra participação na liturgia. Ou então quem nunca recebe um convite para exercer algum cargo, emitir uma opinião ou colaborar em alguma área na qual tem conhecimento ou experiência. Todavia, também existe o perigo oposto, que é sobrecarregar as pessoas com atividades, deixando-as exaustas e sem tempo para outros interesses, sejam eles familiares ou comunitários. O Rev. Erasmo Braga era crítico dessa tendência das igrejas de sua época, tendo se referido a esse problema em vários de seus escritos.[22]
Os dirigentes precisam ser sensíveis e receptivos em relação às reivindicações e solicitações legítimas de seus fiéis, evitando assim uma evasão desnecessária. Para isso, é preciso ouvi-los com frequência, exercer o diálogo constante e, assim, realizar as correções nas normas e práticas que se façam necessárias, tendo em vista o bem-estar e a continuidade da participação dos membros.
4.2 Discipulado
Em muitas igrejas locais se verifica uma grande ironia, um grande paradoxo. Essas igrejas fazem um enorme e apreciável investimento na área da evangelização, da atração de novas pessoas e famílias para o evangelho de Cristo. O pastor prega e ensina com frequência a respeito do assunto, são oferecidos cursos sobre como evangelizar, utilizam-se publicações ricas e estimulantes sobre o tema, incentiva-se o evangelismo pessoal e em grupos. Enfim, faz-se um vigoroso esforço para alcançar os não-crentes. Porém, tão logo essas pessoas se convertem e são recebidas na igreja, elas são, por assim dizer, esquecidas e caem na rotina da vida da comunidade. Como elas já estão do lado de dentro, entende-se que não mais precisam de tanta atenção. É assim que muitos novos membros depois de algum tempo acabam se decepcionando, perdendo o seu entusiasmo inicial e abandonando a igreja.
Isso mostra a absoluta necessidade de um elemento complementar ao evangelismo, que é o discipulado ou a integração dos novos convertidos. A igreja precisa criar mecanismos pelos quais aqueles que ingressaram na comunidade possam receber um acompanhamento adequado nos primeiros meses e anos de sua vida cristã. Em sua autobiografia recentemente publicada, o Rev. Eber Lenz César, que teve vasta experiência ministerial em vários estados do Brasil e na África do Sul, mostra como as atividades de integração foram importantes nesse sentido.[23]
4.3 Pastoreio
Tanto membros novos quanto antigos também precisam de uma assistência constante e cuidadosa por parte dos pastores e dos presbíteros regentes. Isso faz lembrar a valiosa exortação de Paulo aos líderes da igreja de Éfeso: “Atendei por vós e por todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constitui bispos, para pastoreardes a igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu próprio sangue” (At 20.28). Esse cuidado inclui uma vigilância constante que permita identificar os problemas ainda no seu início, a tempo de serem adequadamente diagnosticados e tratados pastoralmente. Um caso clássico é a repentina ausência dos cultos por uma pessoa ou família. Tal circunstância muitas vezes sinaliza alguma dificuldade que deve ser objeto de uma intervenção rápida por parte dos líderes cristãos. Porém, não somente estas, mas todas as pessoas devem ser objeto de uma constante preocupação e zelo pastoral.
É bem conhecido o exemplo do notável pastor puritano Richard Baxter (1615-1691). No fiel desempenho do seu encargo, esse ministro procurava se encontrar uma vez por ano com cada uma das 800 famílias que compunham a sua congregação na cidade de Kidderminster, a fim de instruí-las e aconselhá-las. Em seu famoso clássico The Reformed Pastor, ele insistiu que os pastores precisam se dedicar à instrução pessoal e particular do rebanho. Disse ele: “É dever inquestionável dos ministros em geral que se disponham à tarefa de instruir e orientar individualmente a todos aqueles que são entregues ao seu cuidado”.[24]
Conclusão
Os líderes cristãos, aí incluídos pastores, presbíteros, diáconos, professores de escola dominical e outros, nunca devem se esquecer de uma importante distinção no que diz respeito à igreja. Por um lado, ela é uma instituição, uma estrutura (organização). Por outro lado, é o conjunto dos fiéis, o corpo de Cristo (organismo). O primeiro aspecto deve servir o segundo, não o contrário. A igreja institucional tem como um de seus propósitos ministrar às necessidades dos fiéis, contribuir para que vivam vidas plenas em Cristo, sem afastar-se da comunidade da fé, mas estando plenamente integrados nela.
Em alguns casos, a evasão de membros pode ser algo sem maiores consequências, como quando alguém deixa uma igreja para filiar-se a outra igualmente bíblica e sólida. Em outras situações, representa uma grande perda para a igreja e para as pessoas envolvidas. Esse tema negligenciado precisa receber maior atenção dos ministros de Deus à medida que desempenham os diferentes deveres do seu encargo. O afastamento de pessoas ou a ameaça de afastamento pode indicar problemas que elas estão enfrentando pessoalmente ou problemas da igreja como um todo. Ambos precisam ser tratados zelosamente, sob a direção do Espírito Santo e o ensino das Escrituras.
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Notas:
[1] Ver: WALKER, Williston. História da igreja cristã. 2 vols. São Paulo: Aste, 1967, vol. 1, p. 136-39; KELLY, J. N. D. Doutrinas centrais da fé cristã. São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 149-51, 163-66.
[2] DOUGLAS, J. D. (ed. geral). The New International Dictionary of the Christian Church. 2ª ed. Grand Rapids: Zondervan, 1978, p. 804.
[3] Ver: ELWELL, Walter A. (ed.). Enciclopédia histórico-teológica da Igreja cristã. Em 1 volume. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 409-412.
[4] LESSA, Vicente Themudo. Anais da 1ª Igreja Presbiteriana de São Paulo (1863-1903). 2ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 224, 322s, 559; FERREIRA,História da Igreja Presbiteriana do Brasil. 2 vols. 2ª ed. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, p. 76.
[5] Ver: LESSA, 2010, p. 144-47; MATOS, Alderi S. Os pioneiros presbiterianos do Brasil (1859-1900): missionários, pastores e leigos do século 19. São Paulo: Cultura Cristã, p. 461-63.
[6] Ver: LÉONARD, Émile-G. O protestantismo brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Aste, 2002, p. 76-79; idem, O iluminismo num protestantismo de constituição recente. São Paulo: Ciências da Religião, 1988. Iluminismo aqui significa o apelo a revelações diretas de Deus.
[7] Diversos pastores escreveram livros ou opúsculos combatendo esses grupos. Por exemplo: Jerônimo Gueiros, “A heresia pentecostal”; Alcides Nogueira, “Heresias sabatistas”.
[8] Atas da Sessão da Igreja Presbiteriana de Guarapuava (1889-1927), 07.05.1921, fl. 168s.
[9] FERREIRA, Júlio A. História da Igreja Presbiteriana do Brasil. 2 vols. 2ª ed. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, vol. 2, p. 202.
[10] FERREIRA, 1992, vol. 2, p. 130. Na mesma página, ele afirma que o Rev. George Landes visitava todo o litoral de Santa Catarina, “já atacado por adventistas”.
[11] Matos, 2004, p. 483.
[12] 1º Livro de Atas da Sessão, Igreja Presbiteriana Unida de São Paulo, 04.01.1906, fl. 175s.
[13] LESSA, 2010, p. 537; O Estandarte, 01.02.1917, p. 11.
[14] LESSA, 2010, p. 183, 359, 433, 533, 563.
[15] CAMPOS, Idauro. Desigrejados: teoria, história e contradições do niilismo eclesiástico. São Gonçalo, RJ: Editora Contextualizar, 2013. Prefácio de Augustus Nicodemus Lopes.
[16] Por exemplo: AGRESTE, Ricardo. Igreja? Tô fora. Santa Bárbara D’Oeste, SP: Socep, 2009; AZEVEDO, Israel Belo de. Gente cansada de igreja. São Paulo: Hagnos, 2010; BARNA, George. Revolução. São Paulo: Abba Press, 2007; BITUN, Ricardo. Mochileiros da fé. São Paulo: Editora Reflexão, 2011; BOMILCAR, Nelson. Os sem-igreja. São Paulo: Mundo Cristão, 2012; BRABO, Paulo. Bacia das almas: confissões de um ex-dependente de igreja. São Paulo: Mundo Cristão, 2009; CÉSAR, Marília de Camargo. Feridos em nome de Deus. São Paulo: Mundo Cristão, 2009; D’ARAÚJO FILHO, Caio Fábio. Aos desigrejados e aos que não sofrem de amnésia e outros textos. Disponível em: www.caiofabio.net; FERNANDES, Carlos. Desigrejados: fenômeno que cresce. Cristianismo Hoje, edição 37, ano 7, 2013, p. 18-25; FERNANDES, Danilo. Série: Desigrejados. Disponível em: www.genizahvirtual.com.br; GOIS, Antônio e SCHWARTSMAN, Hélio. Cresce o número de evangélicos sem ligação com igrejas. Folha de São Paulo, 15 ago. 2011. Disponível em: www1.folha.uol.com.br; JACOBSEN, Wayne e COLEMAN, Dave. Por que você não quer ir à igreja. Rio de Janeiro: Sextante, 2009; KIMBALL, Dan. Eles gostam de Jesus, mas não da igreja. São Paulo: Vida, 2011; KIVITZ, Ed René. Outra espiritualidade: fé, graça e resistência. São Paulo: Mundo Cristão, 2006; LOPES, Augustus Nicodemus. Os desigrejados. Disponível em: http://tempora-mores.blogspot.com.br; LOPES, Augustus Nicodemus. O que estão fazendo com a igreja: ascensão e queda do movimento evangélico brasileiro. São Paulo: Mundo Cristão, 2008; RODRIGUES, Denise dos Santos. Os sem religião nos censos brasileiros: sinal de uma crise de pertencimento institucional. Belo Horizonte: Horizonte, v. 10, n. 20, out.-dez. 2012, p. 1130-1153; ROMEIRO, Paulo. Decepcionados com a graça: esperanças e frustrações no Brasil neopentecostal. São Paulo: Mundo Cristão, 2005; VIOLA, Frank e BARNA, George. Cristianismo pagão. São Paulo: Abba Press, 2008; idem, Reimaginando a igreja. Brasília: Editora Palavra, 2009; WAGNER, Glenn. Igreja S/A: dando adeus à igreja-empresa e recuperando o sentido da igreja-rebanho. São Paulo: Vida, 2003; YANCEY, Philip. Alma sobrevivente. São Paulo: Mundo Cristão, 2004; idem, Igreja: por que me importar? São Paulo: Vida Nova, 2008; ZÁGARI, Maurício. Decepcionados com a igreja. Cristianismo Hoje, 2010. Disponível em: www.cristianismohoje.com.br.
[17] CAMPOS, 2013, p. 33-50.
[18] CAMPOS, 2013, p. 51-87.
[19] Campos aborda em capítulos separados os seguintes exemplos: o montanismo, os pais do deserto, o donatismo, Pedro de Bruys e Henrique de Lausanne, Hugo Speroni, Joaquim de Fiore, os anabatistas, os quakers, os darbistas e o cristianismo arreligioso de Dietrich Bonhoeffer.
[20] CAMPOS, 2013, p. 177-189.
[21] CAMPOS, 2013, p. 189.
[22] Ver, por exemplo: BRAGA, Erasmo. The Republic of Brazil: A Survey of the Religious Situation. Londres: World Dominion Press, 1932, p. 96.
[23] CÉSAR, Éber Lenz. Vida de pastor: lembranças de uma jornada. Rio de Janeiro: Imprimindo Conhecimento, 2014, p. 156. Ver: MOORE, Waylon B.Integração segundo o Novo Testamento. Rio de Janeiro: Juerp, 1990.
[24] BAXTER, Richard. Manual pastoral do discipulado. São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 27. Ver também ELLIFF, Jim. A cura de almas. In: ARMSTRONG, John (Org.). O ministério pastoral segundo a Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 151-171.
Autor: Rev. Alderi Souza de Matos - tem o grau de Doutor em Teologia (Th.D.) pela Escola de Teologia da Universidade de Boston. É professor de teologia histórica no CPAJ e historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil.
Fonte: Fides Reformata, Volume XIX, número 1, 2014, págs. 21-33.
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