Buscas por unidade refletem o espírito dos Evangelhos ou se tratam de ecumenismo? Como proceder diante deste dilema?
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Esse é um tema muito doloroso e difícil de debater. É difícil porque temos simpatia pessoal por muitos irmãos e irmãs católicos romanos. Temos muitas coisas em comum e estamos cercados por inúmeros inimigos. Não é de admirar que a “queda livre” de nossa cultura nos atraia para o universo da religiosidade, sobretudo para aqueles que levam a religião a sério, como é o caso dos católicos romanos devotos. O cristianismo, porém, não prega um evangelho de salvação de culturas decadentes. Ele não é mero teísmo, apologética filosófica, notáveis catedrais e mitos românticos da “cristandade”. Isso pouca relação tem com a verdadeira fé. No fim das contas, o cristianismo só é genuíno — e, portanto, importante e relevante — quando prega o evangelho fielmente até os confins da terra.
Ao se manifestarem depois do Concílio Vaticano II, os teólogos católicos podem ser muito pacíficos e conciliadores na comunicação com os protestantes, ao contrário do que muitos haviam sido anteriormente. Mas, conforme disse o cardeal jesuíta Avery Dulles, um dos principais elaboradores do documento Evangelicals and Catholics Together [Evangélicos e católicos juntos]: “Tivemos o cuidado de seguir os ensinamentos do Concílio Vaticano II […] não somos teólogos católicos diferentes dos outros” (Christianity Today, 27 Apr. 1998, p. 21).
Em décadas recentes, muitos teólogos católicos (especialmente estudiosos do Novo Testamento) fizeram muito para fomentar o entendimento entre as duas tradições e, em muitos casos, defenderam realmente a interpretação evangélica das passagens mais relevantes. Contudo, a abertura iniciada pelo Concílio Vaticano II não abordou as condenações do Concílio de Trento. Pronunciamentos recentes revogaram a excomunhão dos reformadores, mas não a de seus ensinos. Isso ajudou a criar um ambiente que abriu as portas para o protestantismo liberal invadir as fileiras católicas. Enquanto o Concílio de Trento pelo menos defendia a necessidade da fé em Cristo para a salvação, o conceito de “cristão anônimo” de Karl Rahner — a ideia de que até um ateu pode ser salvo se for moralmente reto — tornou-se um verdadeiro dogma no concílio mais recente.
Desde o Concílio Vaticano II, surgiram (e deveriam ter sido aproveitadas) muitas oportunidades para o diálogo. Todavia, a doutrina evangélica da justificação não é simplesmente uma formulação que trata de como alguém pode se tornar aceito diante de Deus; ela é a proclamação acerca de como uma pessoa é aceita diante de Deus. É verdade que diferentes igrejas cristãs — tendo em vista as mais variadas considerações de ordem nacional, geográfica, cultural e linguística — chegarão a formulações distintas da mesma verdade. Mas, quando deparamos com a questão fundamental a respeito de como somos salvos, não há espaço para confusão nem para concessões em nome da harmonia.
Roma responde que somos salvos pela graça mais obras. Igrejas genuinamente apostólicas respondem conforme Paulo: “Mas, se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não seria graça” (Rm 11.6).
Sejam protestantes históricos os envolvidos com o acordo de 1998 entre a Federação Luterana Mundial e o Vaticano, sejam os evangélicos que sustentam um entendimento comum do evangelho que deixe suspensa a questão de como alguém é justificado, a ordem bíblica para buscar unidade visível da igreja implica unidade no evangelho. E, se o evangelho ainda é a mensagem de que Deus justifica o ímpio, não se pode abrir mão dessa boa notícia para construir a unidade da igreja sobre qualquer outro fundamento.
Não há aqui espaço para nos sentirmos superiores. Oficialmente, Roma nunca tolerou a heresia pelagiana. Contudo, essa parece ser a marca do protestantismo americano, com sua visão otimista da natureza humana. Segundo o pesquisador e estatístico George Barna, 77% dos americanos que professam ser evangélicos acreditam que o ser humano é basicamente bom, e 84% concordam com a afirmação de que “Deus ajuda aqueles que ajudam a si mesmos” (What Americans believe, p. 89). Por incrível que pareça, Charles Finney, avivalista do século 19 reverenciado por muitos evangélicos, negou a doutrina do pecado original e até mesmo a necessidade de uma expiação substitutiva, declarando que a doutrina “da justificação por uma justiça imputada é [em si mesma] outro evangelho” (Systematic theology; edição em português: Teologia sistemática [São Paulo: CPAD, 2004].
Hoje em dia, os termos “pecado” e “graça” são muitas vezes substituídos pelos termos “disfunção” e “recuperação”. Assim, não podemos criticar Roma se não apontarmos o flagrante pelagianismo da religião americana popular. Mesmo nas igrejas evangélicas conservadoras, muitas vezes não há um esclarecimento objetivo sobre a justificação; ela está ausente dos sermões, da liturgia, do louvor e do ensino. Até nas igrejas que se consideram herdeiras da Reforma protestante, atividades triviais colocam em segundo plano a proclamação do ofício salvífico de Cristo de Gênesis a Apocalipse.
Portanto, o que ainda separa católicos romanos e protestantes? Absolutamente nada, a não ser que definamos o termo evangélico doutrinariamente. Se os evangélicos já não pensam evangelicamente, tendo deixado para trás os princípios formais e materiais da Reforma, não é preciso mais nada a não ser elementos burocráticos para alcançar a unidade. Podemos ter uma paz fácil a nenhum custo a não ser o de perder a possibilidade de dar testemunho fiel do evangelho à nossa geração.
Em vez de tentar forjar uma falsa unidade, sacrificando a única base sobre a qual a verdadeira unidade pode ser construída, será que não podemos desenvolver um debate, com a ajuda da igreja, cujo objetivo seja fomentar maior compreensão e cooperação? No contexto atual, tanto o protestantismo quanto o catolicismo romano necessitam de nova reforma. Ainda que não concordemos com tudo o que diz o teólogo católico Johann Baptist Metz, suas palavras são impactantes:
Falar sobre a Reforma e torná-la não apenas um elemento de recordação, mas, sobretudo, um objeto de esperança, ou melhor, um incentivo à mudança — mudança para todos nós, incluindo eu mesmo, como católico — significa uma coisa: precisamos trazer o questionamento e a consciência que inspiraram a Reforma para a época atual […] Muitos teólogos que escrevem sobre a Reforma afirmam que, nos dias de hoje, a questão primordial de Lutero acerca de um Deus gracioso dificilmente pode ser compreendida pelo homem moderno, muito menos ser comunicada como algo relevante para sua vida. Para eles, esse assunto diz respeito a outra época, não ao mundo contemporâneo. Eu não concordo com essa posição de maneira nenhuma. A questão central da Reforma — como podemos alcançar a graça — é absolutamente primordial para a solução dos nossos problemas mais graves […] A segunda Reforma diz respeito a todos os cristãos; deve vir sobre nós, sobre as duas grandes igrejas do nosso cristianismo (The emergent church, p. 48-50).
Será que essa conquista está fora do alcance da soberania do Espírito de Deus? Com Cristo, em oração, respondemos: “Isso é impossível para os homens, mas para Deus tudo é possível” (Mt 19.26). Contudo, enquanto a proibição oficial — não sobre indivíduos, mas sobre o próprio evangelho — não for revogada por Roma, os evangélicos devem continuar testemunhando fielmente das declarações exclusivas do único Rei da igreja, considerando essas deturpações impedimentos incontornáveis a quaisquer acordos que envolvam pontos cruciais. Enquanto oramos pela unidade e trabalhamos em prol de um maior entendimento, é importante também não deixar de “lutar pela fé entregue aos santos de uma vez por todas” (Jd 3).
Por Michael Horton
Publicado originalmente no site Tu Porém.
Imagem: Reprodução
Publicado originalmente no site Tu Porém.
Imagem: Reprodução
Extraído e adaptado da obra “Evangélicos, Católicos e os Obstáculos à Unidade“, de Michael Horton, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2017, pp. 56-61. Traduzido por Abner Arrais e Ubevaldo G. Sampaio.
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