“Ora, em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma só maneira de falar. Sucedeu que, partindo eles do Oriente, deram com uma planície na terra de Sinar; e habitaram ali. E disseram uns aos outros: Vinde, façamos tijolos e queimemo-los bem. Os tijolos serviram-lhes de pedra, e o betume, de argamassa. Disseram: Vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre cujo tope chegue até aos céus e tornemos célebre o nosso nome, para que não sejamos espalhados por toda a terra. Então, desceu o SENHOR para ver a cidade e a torre, que os filhos dos homens edificavam; e o SENHOR disse: Eis que o povo é um, e todos têm a mesma linguagem. Isto é apenas o começo; agora não haverá restrição para tudo que intentam fazer. Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que um não entenda a linguagem de outro. Destarte, o SENHOR os dispersou dali pela superfície da terra; e cessaram de edificar a cidade” (Gênesis 11.1-8).
A tecnologia deixou sua marca na cultura ocidental e se tornou um sistema que circunda o mundo. Basta suprimir a tecnologia e toda a nossa cultura se desmorona. A palavra “tecnologia” vem do grego, e significa em termos bem amplos o estudo ou a aplicação da técnica ou da arte. É usada pra descrever a aplicação do conhecimento técnico e científico e a produção de processos e materiais com este conhecimento. Devemos à tecnologia as máquinas, processos, métodos e materiais que facilitam a nossa vida e nos ajudam na resolução dos problemas que encontramos. Fica claro, portanto, porque somos tão dependentes dela.
O que eu gostaria de lembrar nesta postagem é que a tecnologia é fruto da ciência moderna, que por sua vez procedeu da visão cristã do mundo. Já vimos este ponto em postagens anteriores. A cosmovisão cristã nos fala da criação do mundo e do homem à imagem de Deus e defende que o alvo maior da ciência e consequentemente da tecnologia é ser instrumento para o bem do homem e para a glória de Deus.
Na cosmovisão cristã, a tecnologia é um instrumento pelo qual o ser humano cumpre sua missão dada por Deus de conquistar o mundo, dominá-lo e usá-lo para seu proveito e do próximo. A tecnologia tem trazido muitas bênçãos para a humanidade. Menciono aqui algumas delas, enumeradas por Egbert Schuurman (Religião e Tecnologia, 2006):
A expectativa de vida aumentou.
A canalização de esgotos e os sistemas de tratamento de água melhoram o ambiente.
A mecanização, a automação e a robotização aliviaram os seres humanos do árduo trabalho manual e repetitivo.
Tratamentos médicos que curam doenças.
A fome de muitos foi abrandada.
Os modernos meios de comunicação nos proporcionam amplas informações e a possibilidade da educação à distância de milhares de pessoas ao mesmo tempo.
Todavia, por causa da propensão inata do ser humano ao mal, existem perigos e desafios por detrás do uso da tecnologia. Aquilo que deveria ser um instrumento do bem de todos acaba sendo usado de maneira errada.
No trecho bíblico que lemos no início desse post temos o relato bíblico da construção da torre de Babel. Embora para muitos se trate de uma lenda, os cristãos oriundos da Reforma protestante e que permanecem fiéis aos seus princípios, consideram o relato como histórico. E dele podemos aprender algumas coisas.
Desde cedo na sua história o ser humano aprendeu a usar a tecnologia para conseguir seus desejos e construir seu mundo. Aqui no caso, conforme o relato de Gênesis, aprendeu como construir cidades, edifícios, torres. As descobertas arqueológicas mostram que a tecnologia é quase tão antiga quanto nossa raça.
Também desde cedo o ser humano começou a usar a tecnologia como instrumento para propósitos egoístas. O alvo dos construtores da torre de Babel era simplesmente deixar o seu nome para a posteridade. No entanto, Deus havia mandado que eles se espalhassem por toda a terra, que a colonizassem e civilizassem. Num desafio claro à orientação divina, usaram seus conhecimentos técnicos para erigir um monumento à autonomia humana.
A avaliação de Deus quanto ao que estava acontecendo estava correta: “isto é só o começo – agora não haverá mais limites para o que os homens planejam fazer.” A história mostra quão acertada foi a avaliação divina. Cada vez mais o homem supera limites e estende as fronteiras do conhecimento e da tecnologia e nem sempre para buscar o bem do próximo e garantir um futuro melhor para a humanidade.
Fica claro, portanto, que a tecnologia não é neutra. Aliás, nem poderia ser, pois sua mãe, a ciência, também não é. Por “neutra,” queremos dizer isenta de preconceitos ideológicos. É evidente que nem uma e nem a outra estão livres da infiltração e da influência de ideologias, uma vez que cientistas e técnicos são seres humanos movidos por pressupostos que antecedem suas pesquisas.
Aqui é importante mencionar o trabalho do famoso filósofo francês Jacques Ellul, que dedicou boa parte de seus esforços para mostrar que a tecnologia moderna representa uma ameaça à liberdade humana e se constitui, em si mesma, uma religião. Ele declara no sua obra clássica, The Technological Bluff (1990): “a técnica é neutra; a tecnologia traz ideologias por detrás”.
A tecnologia tem a ver com o controle do mundo, concebido como um enorme mecanismo onde tudo pode ser ponderado e mensurado. Ela representa a possibilidade de dar forma à realidade segundo nossos anseios. Não há limites religiosos ou éticos para a busca desse controle. O limite é aquilo que é possível.
A tecnologia também se propõe a trazer a prosperidade e o bem estar do ser humano, garantindo o seu futuro – e isso mesmo ao preço da natureza e do próprio homem. Em seu livro Religião e Tecnologia (2006), Egbert Schuurman, pensador holandês, lamenta que não é somente o homem que é ameaçado pela tecnologia, mas a natureza também é explorada e a sociedade humana é desintegrada. Segundo ele, fala-se de ameaças nucleares de armas ou outros resíduos radioativos das centrais nucleares, do esgotamento dos recursos naturais, da extinção de muitas espécies vegetais e animais, o desmatamento, assoreamento e desertificação – com a perda de solos e de alimentos ricos – o esgotamento da camada de ozônio, a emissão de gases de escape com consequências de longo alcance para a vida e clima, a destruição rápida e em larga escala e a poluição da natureza, e a ameaça acelerada da superestimação de técnicas de manipulação genética, tendo como desdobramento a possibilidade técnica da clonagem e manipulação genética de seres humanos, etc.
Existe também o risco de que a tecnologia se torne a religião do homem moderno. David Noble fala da tecnologia como uma religião, em que o homo tecnicus se comporta como Deus, criando e resolvendo os problemas e assegurando o futuro (The Religion of Technology, 1997). Isto porque a tecnologia é vista como a solução para todos os problemas e doenças do homem. Sua tendência é colocar a ideia de um Deus que intervém para fora do círculo da realidade. Quem precisa dele, quando a tecnologia resolve nossos problemas e assegura nosso futuro?
Nossa geração tem crescido sob o domínio da tecnologia em todas as áreas da vida. O impacto se faz através da mídia de todos os tipos, do estilo de vida, da sociedade em geral e da cultura. É um paradigma cultural. É um tipo de estrutura dentro da qual muitas pessoas pensam e agem.
Ela tem um significado normativo. As razões, valores e normas da nossa cultura e sociedade são derivados dela. Assim, ela também forma uma estrutura ética. A tecnologia tem marcado cada vez mais o desenvolvimento do Ocidente, deixando sua marca também na atual globalização, e gerando materialismo, egoísmo, desejo de controle e poder, falta de sensibilidade para com as pessoas e a natureza.
Como resultado da absolutização do pensamento tecnológico, grande parte da realidade foi perdida. O que não se enquadra no modelo tecnológico é desconsiderado ou esquecido. A geração atual cresce, então, sob o relativismo absoluto e acaba elegendo a tecnologia como referencial utilitarista. O materialismo e pragmatismo dos nossos dias acabam entrando na mistura, deixando-nos com uma cultura dominada por uma visão técnico-utilitarista de mundo.
Entendo que a tarefa dos educadores e desenvolvedores da tecnologia, especialmente aqueles que professam a fé cristã, não é deixar nossa geração à mercê dessas influências tecnológicas, sociais e éticas. A tendência para o mal inerente na humanidade certamente penderá a balança para o lado errado.
A visão cristã de mundo serve de fundamento para uma educação sólida, relevante, atenta para as questões atuais e para a tomada de decisões equilibradas e sensatas. O cristianismo vê o ser humano como tendo sido criado por Deus, à sua imagem, e colocado no mundo de Deus, para viver para sua glória e para fazer o bem ao seu próximo. Vê também que a humanidade sempre tem escolhido caminhos que a afastam de Deus e que nos afastam uns dos outros, por causa de nossa sede de poder. Vê também que os recursos que Deus nos deu são poderosos para fazer o bem, se cuidarmos de usá-los corretamente.
Uma visão cristã da tecnologia prioriza as necessidades básicas da humanidade, como vencer a fome e as doenças, promover o conhecimento e a educação. Da mesma forma, assume responsabilidade ecológica, que leve à busca de tecnologias que não destruam o meio ambiente. Também, coloca o foco na busca de soluções para os problemas fundamentais do homem, como fome, doença, trabalho árduo, sofrimento, ignorância e falta de educação, sem se deixar dominar pelas demandas do mercado e pelo domínio econômico. O foco são as pessoas e não o lucro.
Na visão cristã de mundo, a tecnologia deveria ser uma serva da humanidade e não sua dominadora. Não ser uma religião, mas um instrumento. Desta forma, deveria contribuir para que as pessoas conheçam melhor a si mesmas e assim, a Deus.
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O grande desafio das escolas, colégios e universidades confessionalmente cristãs é preparar profissionais que, além de competentes em suas respectivas áreas de conhecimento, sejam igualmente guiados pelos referenciais morais e éticos da visão cristã de mundo.
Postado por Augustus Nicodemus Lopes.
Sobre os autores:
Dr. Augustus Nicodemus (@augustuslopes) é atualmentepastor da Primeira Igreja Presbiteriana de Goiânia, vice-presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana doBrasil e presidente da Junta de Educação Teológica da IPB.
O Prof. Solano Portela prega e ensina na Igreja Presbiteriana de Santo Amaro, onde tem uma classe dominical, que aborda as doutrinas contidas na Confissão de Fé de Westminster.
O Dr. Mauro Meister (@mfmeister) iniciou a plantação daIgreja Presbiteriana da Barra Funda.
Fonte: O Tempora, O Mores
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