Antônio de Carvalho Silva Gueiros, 1950
“O Evangelizador dos Sertões”
Foto: livro “A História da Família
Gueiros” de David Gueiros Vieira.
Neste momento eu convido você para conhecer a biografia do pastor Antônio Gueiros, um dos maiores plantadores de igrejas da nossa região.
Na década de 1880, encontrava-se Francisco de Carvalho Silva Gueiros e família em Garanhuns-PE, onde fora sub-empreiteiro da construção do último trecho
da Ferrovia Sul de Pernambuco, no trecho Recife-Garanhuns. Ao termino da construção da referida ferrovia, rodeado de parentes ricos e poderosos, Francisco Gueiros e Filhos, viviam, no entanto, muito modestamente em Garanhuns, como donos de hospedaria e operadores de uma mercearia.
Esta mercearia em função da liberação dos escravos, em 1888, ficara sem mão – de – obra. A família assim destituída de seus bens de seus “bens” pela Lei Áurea, entrou em crise econômica. Dai em diante, as dificuldades financeiras eram tantas, que Jerônimo Gueiros, em seus poemas, sempre se referia à sua mãe como uma “pobrezinha”. Essa condição de “pobreza” do casal Francisco Gueiros e Rita Francisca Barbosa, vivendo entre parentes ricos e poderosos, marcou profundamente os dois filhos mais novos, Antônio e Jerônimo Gueiros.
Em consequência da Lei Áurea, os dois filhos mais jovens da família – Antônio e Jerônimo – tiveram de pessoalmente assumir o trabalho manual da marcenaria. Tal atividade era algo aviltante para moços brancos, cuja família se orgulhava de ser descendente de “dama de corte portuguesa” e de “nobre holandês”. Essa obrigação de trabalhar com as mãos, ocorria em uma época e em sociedade de mentalidade ainda escravagista, na qual, até meados do século passado – na década de 1940 – os homens de classe média – média e média – baixa, símile aos mandarins chineses, ainda deixavam crescer as unhas dos dedos mindinhos, afim de demonstrar à sociedade em geral que não eram operários, ou que não trabalhavam com as mãos, tal era o horror que as pessoas tinham a esse tipo de trabalho, tido como “vergonhoso”.
Mais ainda, na marcenaria o trabalho era pesadíssimo, e os jovens rapazes não estavam acostumados ao mesmo. As ferramentas eram primitivas: serrotes de mão para serrar toras de madeiras e simples plainas para preparar as tábuas. A madeira era toda de lei: pau-ferro, maçaranduba, angelim e outras mais. O trabalho de tão pesado, deixava os braços dos rapazes doloridos ao ponto que eles mal se aguentavam no final do dia. O Reverendo Antônio Gueiros com lágrimas nos olhos contava aos filhos que aquele fora o trabalho mais árduo que jamais fizera em toda sua vida.
Em 1903, a escola teológica de Martinho de Oliveira – que morrera naquele mesmo ano – passara a ser chamado Seminário Evangélico de Garanhuns. Dr. George Henderlite foi seu primeiro e, por uns tempos, seu único professor. Em 1908, tendo o reverendo Antônio Gueiros terminado seus estudos naquele seminário – e já com 36 anos de idade, casado com três filhos – foi enviado pelo presbitério do Norte, cuja jurisdição ia do Amazonas à Bahia, para a cidade de Belém do Pará.
Belém do Pará ainda no auge do período da produção da borracha era então um importante centro de exportação daquele produto, mas já começa a declinar, com início da queda do preço da borracha no mercado internacional. A estadia do reverendo Antônio Gueiros no Pará, no entanto, foi para ele um dos mais difíceis períodos de sua vida.
A cidade de Belém, apesar de sua opulência, era um antro de pestilência: cheio de malária, febre amarela e hanseníase. No tanto o que mais amedrontava o reverendo Antônio Gueiros a hanseníase, prevalecente em toda Amazônia, e muito comum em Belém do Pará. Vários dos membros da igreja Presbiteriana local sofriam daquela enfermidade, bem como uma das vizinhas do pastor, pessoas essas que tinham o hábito de fazer festinha com os filhos dele. Apesar de o médico norueguês Gerhard Arnuer Hansen ter descoberto, em 1874, o bacilo que causa esta enfermidade, eram ainda totalmente desconhecidos da medicina de então, a etiologia da mesma, e a maneira como ela se propagava, ou mesmo como poderia ser curada, ou arresta.
Para o pastor Antônio Gueiros, que jamais vira o mal de Hansen em Pernambuco, o terror que sentia, de que os filhos viessem a ser infectados por ele, levaram-no a pedir – e até mesmo a implorar – que o presbitério o devolvesse a seu Estado. Voltou a Garanhuns, em 1914, convencido erroneamente de que sua filha Noemi, sua filha mais velha, que aparecera com manchas na pele, fora infectada pela hanseníase. Por essa razão, durante anos a fio, referindo-se à filha em suas orações nos cultos domésticos, ainda implorava: “Senhor, cura tua servazinha”.
Logo que regressara para Garanhuns, o reverendo Antônio Gueiros foi eleito pastor da Igreja Presbiteriana local, e indicado como missionário para o sertão. Começou então sua longa carreira de evangelizador, que durou até 1947, quando foi jubilado. Seu campo de trabalho estendia-se a 300 quilômetros, mais ou menos, chegando ao sul até as cachoeiras de Paulo Afonso, e oeste triunfo e Serra Talhada.
Em suas longas ausências, era substituído no púlpito da Igreja de Garanhuns pelos missionários norte-americanos Dr. George Henderlite, Dr. William Thompson, Dr. George Taylor, Reverendo William Neville, e outros mais, professores do Seminário Presbiteriano de Garanhuns e do Colégio Quinze de Novembro.
Não havia estradas carroçáveis no sertão, nem transporte público de qualquer espécie. Havia apenas “trilhas de boi”, que passavam “como túneis dentro da floresta”, na região da serra, e como tênues veredas, entre os cactos e as plantas xerofílicas nas caatingas do sertão. Cada viagem, feita a cavalo, ou em lombo de mula, era uma aventura.
Lembro-me ainda, dos meus dias de criança, das preparações que se faziam em casa para suas longas viagens. Minha avô Maria de Nazarerth Duarte Furtado, conhecida como “Maroca”, passava toda uma manhã, ou tarde, no preparo de um farnel, típicos dos sertanejos nordestinos daquela época. Este consistia de um saco de “paçoca salgada”, e outro de “paçoca doce”. A primeira era feita de litros e litros de farinha de farinha de mandioca torrada, batida no pilão, com muita carne de sol assada e desfiada, até que se tornava uma massa fina. A paçoca doce era feita também de litros de farinha de mandioca, batida no pilão com açúcar preto, e castanha de caju ou amendoim. Essas “paçocas” eram colocadas em sacos de aniagem, amarrados na sela do cavalo. Essa seria sua alimentação, nas três refeições do dia, durante toda a viagem.
Levava ainda um saco de frutas da estação – limão, laranja, ou romã – como fonte de vitamina C, para prevenir a pelagra. Transportava ainda duas cabaças bem grandes, cheias de água mineral, das fontes de água mineral de Garanhuns, cabaças essas que eram igualmente amarradas uma à outra com uma corda, e penduradas em frente à sela do cavalo. Quase sempre trazia também uma sacola cheia de folhas secas de laranja, de limão, ou de “capim-santo”, para fazer chá com as águas barrentas do sertão, quando acabava a água limpa que levava. Enchia os bolsos de confeitos e balinhas, e depois de um culto doméstico e uma oração, seguia viagem.
Residia em sítio nas encostas de um dos morros de Garanhuns, de modo que o caminho que o levava ao sertão ficava do outro lado do vale. Nós, as crianças, ficávamos então no alpendre da casa esperando até ele despontar na estrada subindo o alto da Boa Vista, a caminho do sertão, lugar este que ele jocosamente chamava de “caixa-prego”. Era sempre um dia grande de tristeza para todos, pois ele era o maior amigo que tínhamos na vida.
No sertão, hospedava-se em casa dos crentes, em geral gente muito pobre, de modo que o farnel às vezes tinha que ser dividido com os próprios hospedeiros, especialmente em épocas de seca. Seu filho Israel Gueiros contava de algumas viagens que fizera, acompanhando o pai, quando descobrira que as balinhas levadas por ele era para serem distribuídas com as criancinhas sertanejas. Estas o esperavam a beirada estrada, com as mãozinhas estendidas gritando: “ Benção seu Tonho”. Ele respondia com o “Deus te abençoe” de sempre, e colocava uma balinha na mão de cada uma, quase todas elas completamente nuas, tal era a pobreza dos sertanejos daquela época.
Sua generosidade com os sertanejos era legendária, e até folclórica. Frequentemente voltava para casa sem as roupas que levava nas viagens, por tê-las doado a algum necessitado. Seus filhos certa vez lhe deram, como presente de Natal, um terno de casimira inglesa, muito bom, a única roupa decente que possuía para subir ao púlpito. No entanto, logo em seguida foi visto tirando-o do corpo, para doá-lo a um sertanejo crente, que ia à capital avistar-se com o governador, e não tinha roupa adequada para ocasião, ia muito além do farnel que levava. Descobrira desde cedo que aquelas paragens, abandonadas pelos governos federal e estadual, eram carentes em tudo: faltava médicos, dentistas, fotógrafos e até mesmo barbeiros. Essas eram atividades que ele podia exercer, mesmo sem estar profissionalmente habilitado, pois a alternativa era de deixar aquelas pessoas à mingua desses serviços. Assim aprendera a arrancar dentes, a fazer obturações simples, a fazer primeiros curativos, a encanar pernas e braços, a tirar retratos e a cortar cabelos.
Sua equipagem, em vista dessas atividades, era acrescida de uma maleta de instrumentos médicos e dentários; levava também tesouras, pentes e navalhas, e uma enorme “câmara obscura” alemã, marca Agfa, dessas que ainda hoje se vêem nas mãos dos fotógrafos ditos “lambe-lambe”, nos subúrbios das grandes cidades. Em casa, montara um quarto escuro, com todos os equipamentos necessário para revelar as chapas que trazia do sertão. Deixou caixas e caixas de chapas de vidro, das fotografias tiradas pelo sertão a fora durante 30 anos de viagens; um acervo documental de valor histórico inestimável. Infelizmente, um de seus herdeiros, não compreendendo seu valor, destruiu essas chapas, utilizando o vidro para fins domésticos.
Ao chegar nas pequenas vilas e cidades do sertão, montava uma cadeira ou caixão alto, na feira, ou em algum lugar público, no qual sentavam seus clientes e “pacientes”. Então lhes cortava os cabelos, arrancava-lhes os dentes, fazia-lhes os curativos que fossem necessários e ainda os fotografava, se assim pediam. Enquanto isso lhes ia pregando o evangelho, e distribuindo folhetos de propaganda evangélica, e trechos da Bíblia.
Essas viagens não eram totalmente livre de perigos. Aquela era uma época de cangaceiro “Lampião” e seu bando, que era apenas um dos muitos bandoleiros que pululavam pelas caatingas. No entanto, nunca nada lhe aconteceu. Contava o Dr. Othoniel Gueiros, amigo de Audálio Tenório, prefeito de Águas Belas e “coiteiro” de Lampião, ter este afirmado que Lampião e seu bando muitas vezes viram o pastor Antônio Gueiros cavalgando pelas veredas do sertão. Quando algum cangaceiro dizia “lá vai o bode velho!, Lampião replicava: “deixem ele passar não bulam com ele, que é um homem de Deus, e amigo do meu amigo Audálio, que é meu coiteiro”. Por essa razão afirmava Audálio, Antônio Gueiros nunca teve de se encontrar com Lampião, face a face, pois este o evita e protegia. Lampião, como se sabe, era um homem devoto e muito religioso. Audálio Tenório era primo afastado dos Gueiros, pelo lado dos cardosos de Águas Belas.
Apenas uma vez o pastor Antônio Gueiros chegou bem perto de ser morto. Esta foi quando o vigário da cidade de Bom Conselho decidira livrar-se do pastor protestante incômodo, contratando assassinos profissionais para matá-lo, quando da sua próxima ida aquela localidade. Sem saber de nada, o reverendo Antônio programou uma viagem para Bom Conselho. Porém, ao chegar no alto da Boa Vista, ainda em Garanhuns, seu cavalo manso de estimação, que andara com ele várias vezes por todo sertão, empacou e recusou-se a continuar a viagem. Como não er pessoa de fazer violências, nem mesmo a um animal, virou a rédea do cavalo e voltou para casa. Algumas horas depois – a galope – chegava um dos presbíteros da Igreja de Bom Conselho. Vinha avisá-lo para não ir aquela cidade naquele dia, pois o vigário contratara cangaceiros para mata-lo, pessoas essas que o mensageiro encontrara, em uma tocaia, a poucos quilômetros da cidade de Garanhuns
Como a famosa mula de Balaão bíblico aquela alimária havia pressentido algum perigo, ou Deus mesmo mandara que ela parasse. Dai em diante, o animal foi chamado de “cavalo santo”, pelas crianças. Era um animal que tinha viajado tantas vezes pelas várias localidades do sertão, que, as vezes, o reverendo Antônio Gueiros, de tão cansado, dormia na sela, e o animal seguia caminho, levando-o para ao próximo pouso, mesmo sem ser conduzido.
Após 1935, as atividades missionárias do reverendo Antônio Gueiros finalmente tiveram de parar. Naquele ano, durante a chamada Intentona Comunista, como será visto abaixo, então, então visitando o Seminário Presbiteriano do Norte, ele foi ferido a bala numa perna, resultando na perda daquele membro. Hoje se sabe ter sido um tiro dado por um dos revolucionários, entrincheirados em uma fábrica ao lado do Seminário. Sua perna gangrenou, ele esteve a beira da morte, naquela época sem penicilina ou antibiótico de qualquer tipo. Depois disso, enfermou do coração, falava-se que fora em consequência da gangrena. Ainda tentou viajar mais uma vez a cavalo pelos sertões, porém, aos 64 anos de idade, e por razões de saúde, foi obrigado a pôr de lado aquela atividade missionária, sem, no entanto, ter tomado providências para que seu campo fosse ocupado por outros Para esse fim, criou uma sociedade missionária, patrocinada pela Igreja Presbiteriana de Garanhuns, que enviou cinco pastores para cobrir todo o campo que ele vinha evangelizando sozinho.
Depois disso, contentava-se a passar os dias caminhando pelo sítio, podando árvores e limpando o mato, sempre seguido de uma velha cachorra loba, chamada “Cratera”, que o adorava. Em 1936, ao final de suas atividades como missionário, deixou pelo menos 62 igrejas e congregações, fundadas ou pastoreadas por ele, que são abaixo indicadas:
No Estado do Pará; Belém, Soure, Bragança e Campo Experimental.
Em Pernambuco: Garanhuns, Inhumas, Gilead, Cachoeira Dantas, Palmeirina, São João, Angelim, Burgos, Tiririca, Catonho, São Pedro, Neves, Fama, Brejão, Brejinho, Maçaranduba, Poço Comprido, Freixeiras de Santa Quitéria, Genipapeiro, Correntes, Lajedo, Entupido, Águas Belas, Buique, Salobro, Jupi, Bom Conselho, Serrinha, São Bento e Cachoeirinha.
Em Alagoas – Mata – Grande, Cana Brava, Bananeiras, Olho dÀgua de Areias, Lagoa Funda, Monte Alegre, São Serafim, Ponto-Alegre, Santa Clara, Rio Branco, Mocambo, Barracão, Baixa Seca, Capiá, Pão de Açúcar, Maravilha, Itapicuru, Cacimba, Pé de Serra de São Pedro, Prata, Barro, Mandaçaia, Piabas, Gatos, Capoeira e Vinte Cinco.
Teve também sob sua jurisdição de Gameleira e Quipapá, em Pernambuco e a igreja de Quebrangulo em Alagoas. Consta que também viajou por uns tempos pelos lados da Serra do Teixeira, no sertão da Paraíba, porém dessas viagens não temos nenhuma documentação escrita. A única notícia que temos das mesmas vêem de sua filha mais velha, a professora Noêmi Gueiros Vieira, então jovem demais para conhecer ou lembrar dos detalhes dessas peregrinações paraibanas.
Após o acidente em 1935, continuou ainda como pastor da Igreja de Garanhuns, até 1947, quando foi jubilado e eleito seu pastor emérito. Faleceu subitamente, em casa no ano de 1951. Na ocasião de sua morte, a cachorra “Cratera”, sua constante companheira por tantos anos, deitou-se debaixo da cama do falecido e uivou até que levaram o corpo para o enterro. Depois disso, o animal permaneceu debaixo da cama, recusando água e comida, em pouco tempo, ela também morreria.
Amado por todos da igreja, e muito respeitado por toda a cidade, o enterro do reverendo Antônio Gueiros foi seguido pela maioria da população de Garanhuns. Sua morte foi lamentada também pelas comunidades católicas e espírita da cidade que, à sua maneira, deram demonstrações de pesar pela mesma. Consta que ao correr a notícia do seu falecimento, os sinos da catedral e de todos os outros templos católicos na cidade passaram a soar o repique fúnebre, só silenciando quando seu corpo foi baixado à cova. Uma singela porém comovente honraria, feita pelo bispo católico local, a esse pastor protestante.
Artigo extraído do Livro A História da Família Gueiros, capítulo XII, de David Gueiros Vieira
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