A Igreja Medieval em grave necessidade de reforma
Encontramos a Igreja Católica, no ápice da idade média (séculos 13 a 15), com a maioria das práticas litúrgicas, incorporadas do paganismo, já institucionalizadas dentro da estrutura eclesiástica. O cenário está sendo preparado pelo Senhor da História para a Reforma do Século XVI. A religião foi transformada de uma devoção consciente a Deus, baseada no que conhecemos de Deus pelas Escrituras e exercitada pelas diretrizes da sua Palavra; no misticismo subjetivo, baseado em tradições humanas, exercitado em práticas obscuras.
A Igreja, que deveria aproximar as pessoas cada vez mais de Deus e de sua Palavra, na prática afasta os fiéis da religião verdadeira. Os rituais e a liturgia são realizados em uma língua desconhecida (Latim). Os seguidores são sujeitos a uma hierarquia estranha à Bíblia, na qual os administradores maiores se preocupavam mais com o jogo político do que com a situação espiritual dos fiéis. Aqueles que se dedicavam mais ao estudo da palavra, em vez de estarem próximos dos fiéis, conscientes de suas lutas, necessidades e pecados, isolam-se em mosteiros. Novas estruturas monásticas são formadas e multiplicam sua influência. Os poucos escritos refletem um misticismo que enaltece a trindade, mas, ao mesmo tempo, apresentam uma ênfase mística que os distanciam da realidade.
Outras cabeças pensantes da Igreja, em vez de procurar um retorno à teologia das Escrituras, embarcam num intelectualismo que pretende explicar de forma palatável à razão humana os mistérios de Deus – esses também distanciam a Igreja e sua hierarquia de sua missão e daqueles que a seguem em busca espiritual sincera ou por conveniência. Certamente, fica cada vez mais evidente que o caminho da reforma está sendo preparado por Deus. A Igreja está deteriorada em seu íntimo – os problemas aparecem. O remanescente fiel ficará mais evidente e desabrochará no tempo apontado por Deus.
Estudando a situação da igreja nesse período, identificamos três erros dignos de destaque e que servem de alerta para os nossos dias.
1. O perigo do deslumbramento com o mundo – a sede de aceitação e poder
A Sede do poder – A Igreja já vinha sendo caracterizada pela sede do poder e por seu envolvimento com o mundo político. Na era medieval os exemplos de envolvimento intenso com o poder político se multiplicaram.
No ápice do poder da igreja medieval, o papa que deteve maior poder foi Inocêncio III (1198-1216). Ele controlava tanto a Igreja Católica como o Império. Humilhou o rei Felipe Augusto, da França, interditando todo o país, forçando-o a receber de volta sua esposa divorciada, que havia apelado ao Papa. A seguir, humilhou o Rei João, da Inglaterra, numa disputa sobre a indicação do arcebispo de Canterbury. Mais uma vez interditou um país e convidou o rei Felipe, da França, a invadir a Inglaterra se o Rei João se recusasse a aceitar os seus termos. Mais ou menos na mesma época, interferiu na Germânia (Atual Alemanha), definindo a sucessão imperial naquele país, utilizando as tropas francesas como forma de pressão.
Em 1215 Inocêncio III convocou o Quarto Concílio Laterano (não confundir com Luterano), no qual algumas doutrinas estranhas à Palavra de Deus foram formalizadas, como por exemplo: a obrigação de uma confissão auricular anual; a doutrina da transubstanciação (que afirma que o pão e o vinho da comunhão não somente simbolizam, mas milagrosamente se transformam no corpo e no sangue de Cristo); e a terminologia do sacrifício da missa (uma vez que o corpo de cristo era repetidamente quebrado a cada liturgia).
Esse é apenas um exemplo de como a liderança maior da igreja tomou interesse muito mais pelo poder e pelo envolvimento político, do que pela saúde espiritual dos fiéis. Pior ainda, quando esses líderes se voltavam para ações na esfera religiosa, era no sentido de promover a incorporação de práticas estranhas no seio da Igreja – feriam ainda mais a ortodoxia já combalida. A Igreja ia se desenvolvendo com uma língua estranha, distanciada do povo, e com práticas cada vez mais pagãs em sua liturgia.
A lição para nós – Aceitação social e proximidade do poder têm sido constantes inimigos da pureza doutrinária que deve marcar a igreja verdadeira. Esse é uma característica não só da igreja medieval, mas também dos nossos dias. A ânsia por aceitação vem, muitas vezes, às custas de princípios e de nossa identidade. Como cristãos, perdemos com freqüência grandes oportunidades de marcar presença pelo testemunho, como sal da terra (Mt 5.13), mas capitulamos perante as pressões do poder. Muitos dos nossos políticos chamados de “evangélicos” têm tido um comportamento reprovável e posturas éticas que envergonham e trazem condenação até dos descrentes. No meio de um mundo que é maldade, a Palavra de Deus nos aponta à manutenção dos padrões de justiça de Deu: “Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem” (Rm 12.21).
Em adição, devemos estar alertas para não trazermos práticas estranhas à Palavra de Deus ao seio de nossa liturgia. Óleos santos, peças de roupa, pentes benzidos, cerimônias diversas (soar de trombetas, pão e água, cultos na montanha) – como se essas coisas tivessem poder espiritual em si, constituem uma violação a uma adoração em espírito e em verdade, como nos comanda a Palavra. Por isso Paulo nos adverte, em 2 Co 11.3: “Mas temo que, assim como a serpente enganou a Eva com a sua astúcia, assim também sejam de alguma sorte corrompidos os vossos entendimentos e se apartem da simplicidade e da pureza que há em Cristo”.
2. O perigo do isolamento
O ápice do Monasticismo – Apesar dos mosteiros e conventos terem surgidos entre o 3 o e o 6 o século da Era Cristã, foi na idade média que eles atingiram o seu auge, com o desenvolvimento de várias ordens monásticas. A ordem dos Agostinianos foi fundada entre 1233 e 1244. Os Beneditinos, trazendo uma tradição do terceiro século, foram reformados com o trabalho de Bernardo de Clairvaux (1090-1153). Os dominicanos foram formalmente estabelecidos por uma bula papal de 1216 e se organizaram definitivamente em torno de 1221. Os Carmelitas, constituídos de peregrinos à terra santa, se juntaram no monte Carmelo (daí o nome), para viver “a vida do profeta Elias”, em torno de 1191. Os Franciscanos se organizaram pelo trabalho de Francisco de Assis, em 1223, desenvolvendo-se em vários ramos independentes, como o dos Capuchinhos. E assim foi, neste período, com várias outras ordens de menor importância. Praticamente a única ordem monástica que não surgiu neste período foi a dos Jesuítas, formada em 1540 – na onda da Contra-Reforma.
Qual o problema com o Monasticismo? Poderíamos dizer que aqueles que eram mais devotos e estudiosos da Palavra, possivelmente desencantados com o estado da Igreja e seu envolvimento com os regentes temporais e com a política, procuraram isolamento. Essa medida, aparentemente correta, fez com que esse tipo de liderança deixasse de interagir com os fiéis. Além de privar os seguidores de um direcionamento maior, o isolamento fez com que perdessem o contato com a realidade e com os problemas do dia-a-dia. A vida vivida no mosteiro não somente era artificial, mas representava um tipo de Cristianismo estranho às Escrituras. Asceticismo – ou seja, a rejeição de tudo que é material, é uma identificação errada do que é o mal verdadeiro (Cl 2.21). O pecado jaz no íntimo das pessoas (Sl 51.5) e não é a intensa meditação ou isolamento que irá purificar o nosso ser. Nem tão pouco será a vida espartana, penitências ou sacrifícios inúteis, os quais podem ter até “aparência de piedade” (2 Tm 3.5), mas não podem expiar o nosso pecado. O lado irônico do isolamento e do Monasticismo é que dando a aparência de uma aproximação de Cristo, contribuiu para o estabelecimento de uma religião humana, de salvação pelas obras, pela privação, pelo sofrimento – uma religião que fechou-se, tornando-se um fim em si mesma.
A Lição para nós – Essa tendência, de isolamento, está sempre presente no campo Cristão. É saudável estarmos sempre juntos, em ambiente de igreja, mas às vezes levamos isso ao extremo. Desaprendemos a nos comunicar com o mundo. Esquecemos nossa missão. Passamos a falar com “jargões evangélicos” – palavras que soam estranhas ou desconhecidas àqueles a quem deveríamos estar comunicando as boas novas da salvação. Nossa preocupação é muito maior com encontros, acampamentos, do que na organização de uma ação eficaz de evangelização. Jesus disse que não pedia ao Pai que fôssemos tirados deste mundo (Jo 17.15). Aqui fomos colocados para interagir saudavelmente com a sociedade, transformando-a, reformando-a, purificando-a, sendo verdadeiramente luz do mundo (Mt 5.14). Aprendamos com essa era obscura da igreja, na qual o isolamento dos que eram mais fiéis terminou por descaracterizar de vez a sua doutrina e mensagem.
3. O perigo dos extremos – Racionalismo vs. Misticismo
Escolasticismo – É na Idade Média, em paralelo ao isolamento do monasticismo, que vários intelectuais, no seio da Igreja, deslancham aquilo que ficou conhecido como escolasticismo. Apesar do termo ser difícil de definir, podemos considerá-lo como uma referência ao período, na idade média, no qual surgiram inúmeros escritos que apelavam consideravelmente para a razão humana, no sentido de estabelecer e provar as bases da religião. Representam uma tentativa de harmonizar filosofia com teologia, procurando demonstrações racionais de verdades teológicas. Nomes como Anselmo (1033-1109) e Abelardo (1079-1142) são considerados como co-fundadores do movimento; Pedro Lombardo (+/- 1164) um representante importante e Tomás de Aquino (1227-1274) o seu expoente máximo – com o seu tratado Summa Theologica. João Duns Scotus (1226-1308) e Guilherme de Ockam (1280-1349), são também escritores importantes desse período.
Contemporâneos de uma igreja cambaleante em sua ortodoxia e prática – deslumbrada pelo poder e pelo mundanismo, os Escolásticos procuravam restaurar o cerne doutrinário da instituição. Erraram em depender ao extremo do racionalismo; em desconhecer a profundidade e gravidade do pecado que afeta a capacidade de raciocinar corretamente sobre as coisas espirituais (Rm 1.22). Na realidade, deixaram de lado o ensinamento bíblico da depravação total das pessoas. Achavam que a fé era racionalmente explicável, esquecendo-se que aprouve a Deus salvar pela “loucura” da pregação. (1 Co 1.21). Apesar dos Escolásticos, às vezes, confrontarem o poder temporal dos Papas, eles serviram também para sistematizar muitas doutrinas Católico Romanas estranhas às Escrituras, como relíquias, culto às imagens, purgatório, o sistema hierárquico e a estrutura sacramental de salvação pelas obras. Inúmeras páginas foram escritas com justificativas racionais para a utilização dessas práticas. Os Reformadores do Século 16 encontraram, em função dos Escolásticos, ampla documentação dos desvios doutrinários que eficazmente combateram.
O Misticismo – Misticismo é um termo meio vago que cobre amplos pontos de vista e abordagens à prática religiosa. Em muitas situações, misticismo não pode ser dissociado com muita clareza da prática correta da religião. Por outro lado, várias manifestações do misticismo são radicais, extremas e bastante distanciadas da ortodoxia verdadeira. Uma definição genérica de misticismo seria: “qualquer postura, coisa ou situação que nos leva ao contato com a realidade existente além dos cinco sentidos”. De uma forma ou de outra, o misticismo sempre esteve presente na igreja. Na igreja primitiva, manifestou-se com intensidade nos Montanistas, e nos nossos dias encontra grande expressão em muitas igrejas evangélicas, independentemente das barreiras denominacionais.
Na Idade Média, situado no outro extremo do Escolasticismo, no meio dessa Igreja conturbada, temos o desenvolvimento do misticismo no seio do isolamento monástico. Como se procurassem um afastamento da abordagem racionalista, muitos passaram a escrever obras puramente devocionais. Refletindo um desejo de se elevar acima das agruras deste mundo, almejavam uma aproximação imediata com a pessoa de Deus. Objetivavam atingir a certeza da salvação e chegar à verdade não pela dedução lógica, mas pela experiência. Muitos podem ter sido crentes sinceros, enfatizando o amor e a aproximação com Deus.
Os místicos nunca foram considerados hereges e a igreja medieval, na realidade, os encorajou, como um contra-ponto ao Escolasticismo. Em função do seu caráter subjetivo, o misticismo enfatizou consideravelmente, além de uma postura pessoal de devoção, a questão dos sonhos, visões e outras formas de revelação que seriam utilizadas por Deus em paralelo às Escrituras. Estiveram também presentes, posteriormente, no meio da Reforma, quando Lutero confrontou uma comunidade que ficou conhecida como “Os Profetas de Zwickau” indicando que o Espírito Santo falava pela objetividade das Escrituras.
Tomás à Kempis (1380-1471) – Nascido na Alemanha e criado na Holanda, este místico foi um dos grandes exemplos desse período, lido e prezado tanto por católicos como por protestantes. Tomás ocupou toda a sua vida em três atividades: copiar a Bíblia (lembrem-se que, naquela época, não havia imprensa); meditação devocional; e escrever vários livros. Ficou, entretanto, conhecido por apenas um desses, intitulado “A Imitação de Cristo”. Escrito originalmente em Latim, em quatro volumes, foi traduzido depois para várias línguas. Existem mais de 2000 edições conhecidas deste livro que até o teólogo Charles Hodge classificou como “...a pérola do misticismo germânico-holandês”. Um outro teólogo protestante escreveu: “... o que torna este livro aceitável a todos os Cristãos, é a ênfase suprema colocada sobre Cristo e a possibilidade de comunhão imediata com ele e com Deus”.
Entretanto, ao lado dos elogios pelo seu caráter devocional e pela exaltação que faz da pessoa de Cristo, é possível perceber que foi escrito por um Católico Romano. No livro encontramos referências à adoração e ao conceito católico romano dos “santos” (por exemplo, no Livro 1, cp. 18, lemos sobre “... os santos que possuíam a luz da perfeição e da religião verdadeira”. No cp. 19, lemos que em certas ocasiões “... a intercessão dos santos deve ser ferventemente implorada”). Existe também a aceitação da doutrina do purgatório (por exemplo, no Livro 1, cp. 21, lemos que deveríamos viver uma vida de trabalho e sofrimento “... se considerássemos em nossos corações as dores futuras do inferno ou do purgatório”).
Na melhor das hipóteses, o livro é contraditório, como no exemplo a seguir: de um lado indica o mérito das obras (Livro 2, Cp. 12, “... nosso mérito e progresso consistem não nos muitos prazeres, mas no suportar de muitas aflições e sofrimentos”), enquanto que em outro trecho fala da inutilidade delas (Livro 3, cp. 4, “considere seus pecados com desprazer e tristeza e nunca pense de você mesmo como sendo alguém, por causa de suas boas obras”). Em adição aos aspectos romanos, a ênfase do livro é colocada em uma vida de isolamento como sendo o ideal do cristão, em vez do envolvimento sadio com a criação em uma vida de testemunho e proclamação das verdades divinas.
A lição para nós – A religião verdadeira alimenta o ser humano em sua totalidade. Quando a prática do cristianismo não está corrompida, há satisfação tanto para o corpo como para a alma. A idéia de que existe mérito no sofrimento ou no isolamento, não é Bíblica, mas provém de um conceito de que, de uma forma ou de outra, operamos a nossa própria salvação. O misticismo existe desenfreado em nossos dias e não como uma característica saudável da igreja, mas como um problema em seu seio. De uma certa forma, ele ocorre como uma reação à ortodoxia morta, ou a um intelectualismo estéril, como aconteceu na idade média. Entretanto, no cômputo final, apesar de parecer uma ênfase em ações e posturas piedosas, ou a uma vida de devoção intensa e real, o Misticismo desvia os nossos olhos de Cristo; concentra a atenção nos nossos méritos, nas coisas que fazemos ou que deixamos de fazer; nos objetos aos quais atribuímos valor espiritual; ou nas formas de comunicação com Deus que são estranhas à Palavra e à suficiência das Escrituras.
Conclusão
Podemos aprender muito com a situação da Igreja na Idade média. Ela foi progressivamente se afastando de Cristo, não somente pelo mundanismo crescente e pela incorporação de práticas pagãs; como também por um isolacionismo intenso e igualmente contraditório à sua missão.
Como anda a nossa igreja? Como caminha a nossa religiosidade? Como se encontra a nossa vida devocional? Estamos nos achegando a Deus, em devoção sincera, através de Cristo, pelo poder do Espírito Santo – desejosos de fortalecer o nosso testemunho em um mundo hostil? Ou estamos fabricando um tipo peculiar de religião que atende os nossos anseios místicos, ou a nossa sede intelectual, mas que nos afasta cada vez mais dos caminhos que deveríamos percorrer? Meditemos no que Deus quer de nós,como expressa Mq 6.6-8, verificando que a prática da justiça e o amor à benevolência não são compatíveis com uma vida estéril ou distanciada do mundo em que ele nos colocou.
Autor: Solano Portela
Fonte: [ Site do autor ]
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