quinta-feira, 16 de agosto de 2018

O Cristão e a Política: Da Administração Política




Série Política Reformada

1. DA NECESSIDADE E IMPORTÂNCIA DE FOCALIZAR-SE O PODER CIVIL E SUA RELAÇÃO COM O PODER ESPIRITUAL

Com efeito, uma vez que já previamente declaramos o duplo governo no homem e dentre esses um que foi posto na alma, ou no homem interior, e que visa à vida eterna, o que discorremos em outro lugar com suficiente amplitude, é chegado aqui o lugar onde dissertaremos um pouco acerca também do outro, a saber, o que diz respeito apenas ao estabelecimento da justiça civil e a justiça exterior dos costumes. Ora, ainda que o teor desta consideração pareça ser em natureza distinto da doutrina espiritual da fé, o qual me propuz haver de tratar, contudo o andamento da matéria mostrará que com razão tenho que enfrentá-la, mais ainda, sou impelido pela necessidade a fazer isso, especialmente porque, de uma parte, homens dementes e bárbaros tentam furiosamente subverter esta ordem divinamente estabelecida; de outra, porém, os aduladores dos príncipes, exaltando-lhes desmedidamente o poder, não duvidam opô-la ao domínio do próprio Deus. A menos que se resista a um e outro desses dois males, a integridade da fé perecerá. Acrescenta-se a isto que nos é coisa muito útil para permanecer no temor de Deus saber quão imensa é sua benignidade nesta parte ao prover tão bem o gênero humano, a fim de que com isso nos sintamos mais estimulados a servi-lo para dar testemunho de que não lhe somos ingrato.

     De princípio, antes que entremos na própria matéria, deve-se levar em conta aquela distinção por nós anteriormente estabelecida, de sorte que, a um tempo, não misturemos imprudentemente, o que comumente sucede a muitos, estas duas coisas que têm natureza inteiramente diversa. Porque, quando ouvem que no evangelho se promete uma liberdade que, segundo se diz, não reconhece a nenhum rei e a nenhum magistrado, antes, pelo contrário, visa somente a Cristo, não podem compreender qual é o fruto de sua liberdade enquanto vêem alguma autoridade sobre eles. Por isso, julgam que nada pode estar a salvo, a menos que o mundo inteiro adote uma nova forma, na qual não existam juízes, nem leis, nem magistrados, nem outras coisas semelhantes com que estimam que sua liberdade é cortada.

     Mas quem sabe discernir entre o corpo e a alma, entre esta vida presente e transitória, e aquela vida futura e eterna, não terá dificuldade em entender que o reino espiritual de Cristo e a ordem civil são coisas muitíssimo distintas entre si. E visto ser uma loucura judaica buscar e incluir o reino de Cristo sob os elementos deste mundo, nós, refletindo melhor ser um fruto espiritual o que a Escritura claramente ensina, fruto que se colhe do benefício de Cristo, nos lembramos ainda mais de conter dentro de seus limites toda esta liberdade que nele nos é prometida e oferecida. Ora, por que é que o próprio Apóstolo, que ordena que nos postemos firmes, não nos sujeitando ao jugo da servidão [Gl 5.1], em outro lugar veda que os servos estejam anciosos quanto a seu estado [1Co 7.21], senão porque a liberdade espiritual pode persistir muito bem lado a lado com a sujeição política? Além disso, neste sentido devem ser tomadas estas afirmações suas: “No reino de Deus não há judeu nem grego, nem macho nem fêmea, nem servo nem livre” [Gl 3.28]; de igual modo: “Não há judeu nem grego, nem incircuncisão nem circuncisão, bárbaro, cita, servo, livre; pelo contrário, Cristo é tudo em todos” [Cl 3.11]. Afirmações com as quais significa que não importa em que condição estejas entre os homens, sob as leis de que país vivas, uma vez que o reino de Cristo está mui longe de se situar nessas coisas.

2. O REINO DE DEUS E O GOVERNO CIVIL, EMBORA DISTINTOS EM NATUREZA E FUNÇÃO, NÃO SE EXCLUEM MUTUAMENTE, NEM SÃO INCOMPATÍVEIS ENTRE SI

     Apesar disso, esta distinção não serve para que tenhamos a ordem social como uma coisa imunda e que não é pertinente aos cristãos. É verdade que os espíritos utópicos e fanáticos, que não buscam senão uma licença desenfreada, falam dessa maneira atualmente e afirmam que, posto que já morremos em Cristo para os elementos deste mundo e já fomos trasladados ao reino de Deus entre os habitantes do céu, é coisa ignóbil e vil para nós e indigna de nossa excelência nos ocuparmos dessas preocupações imundas e profanas concernentes aos negócios deste mundo, dos quais os cristãos devem afastar-se o máximo possível. A que propósito, dizem eles, servem leis sem juízos e tribunais? Todavia, que o homem cristão tem a ver com os próprios juízos? Com efeito, se não é lícito matar, a que nos servem leis e juízos?      Mas, como há pouco chamamos a atenção dizendo que este gênero de governo é distinto daquele reino espiritual e interior de Cristo, devemos também saber que de forma alguma é contrário a ele. Ora, este reino espiritual começa justamente aqui na terra em nós uma certa prelibação do reino celeste, e de certo modo auspicia nesta vida mortal e passageira a bem-aventurança imortal e incorruptível. Mas o objetivo do governo temporal é manter e conservar o culto divino externo, a doutrina e religião em sua pureza, o estado da Igreja em sua integridade, levar-nos a viver com toda justiça, segundo o exige a convivência dos homens durante todo o tempo que vivermos entre eles, instruir-nos numa justiça social, fomentar a harmonia mútua, manter e conservar a paz e tranqüilidade comuns, coisas essas que reconheço serem supérfluas, se o reino de Deus, como ora se acha entre nós, extingue a presente vida.

     Se, pelo contrário, for a vontade de Deus que, enquanto aspiramos à verdadeira piedade, peregrinemos sobre a terra, enquanto suspiramos por nossa verdadeira pátria; e se, além do mais, tais auxílios nos forem necessários para nossa jornada, aqueles que querem privar aos homens delas, os querem impedir que sejam homens. Ora, a respeito do que alegam, que deve haver na Igreja de Deus tal perfeição que façam as vezes de quantas leis demandem, tal imaginação é uma insensatez, pois jamais poderá existir tal perfeição em qualquer sociedade humana. Pois, como tão grande é a insolência dos réprobos, tão contumaz sua impiedade, que mal se deixa coibir pela extrema severidade das leis, que esperamos que eles façam, se vêem sua improbidade patentear-se em impune desbragamento, os quais nem pela força se deixam compelir para que não procedam mal?

3. NATUREZA E FUNÇÃO DO GOVERNO CIVIL, MESMO EM REFERÊNCIA À RELIGIÃO, E SUA TRÍPLICE ORDEM DE ELEMENTOS A CONSIDERAR-SE: MAGISTRADOS, LEIS E POVO
Mas, quando for mais oportuno falaremos da operação do governo civil em seu devido lugar. Agora queremos que seja entendido apenas isto: é desumana barbárie cogitar que esta ordem seja exterminada, cuja necessidade não é menor entre os homens do que a do pão, da água, do sol e do ar; e sua dignidade, certamente, é até muito mais eminente. Pois atenta não apenas para aquilo que todos os homens respiram, comem, bebem e sejam mantidos confortáveis, ainda que certamente abranja a todas estas coisas, enquanto provê que vivam juntos; insisto, contudo, que se deve atentar não só para isso, mas também que a idolatria, os sacrilégios contra o nome de Deus, as blasfêmias contra sua verdade e outras ofensas da religião não emerjam publicamente e se espalhem entre o povo, para que não se perturbe o sossego público; que cada um possua o que é propriamente seu; que os homens mantenham entre si transações justas; que se cultive honestidade e modéstia entre eles; enfim, que entre os cristãos subsista a expressão pública da religião, seja a humanidade firmemente estabelecida entre os homens.

     Ninguém se perturbe crendo que estou agora a atribuir ao governo dos homens o cuidado de corretamente estabelecer-se a religião, que acima pareço haver posto além do arbítrio de homens, visto que, aqui em nada diferente do que disse antes, estou permitindo ao homens que elaborem a seu arbítrio leis quanto à religião e ao culto de Deus, quando aprovo uma ordem civil que faça com que a verdadeira religião, que está contida na lei de Deus, não seja abertamente e por sacrilégios públicos impunemente violada e conspurcada. Mas, ajudados pela própria perspicuidade da disposição, os leitores compreenderão melhor qual é o consenso de toda a matéria da administração política, se examinarmos suas partes, separada e minuciosamente. De fato suas partes são três: o magistrado, que é o defensor e guardião das leis; as leis, segundo as quais ele governa; o povo, que é regido pelas leis e obedece ao magistrado. Vejamos, pois, em primeiro lugar, quanto à própria função do magistrado, se porventura seja vocação legítima e aprovada por Deus, de que natureza é o ofício, quão grande é o poder; em seguida, de que leis um governo cristão deva ser constituído; então, finalmente, que benefício resulte das leis ao povo, que se deva obediência ao magistrado.

Por João Calvino
Institutas, Volume IV – Capítulo XX

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