Por Antognoni Misael
Um dos assuntos, talvez, menos abordados por uma comunidade seja escatologia - o estudo das últimas coisas. Contudo, apesar de muitos cristãos não terem um posicionamento convicto quanto a qual corrente escatológica crer, nota-se na maioria destes simplórios uma tendência a serem dispensacionalistas[1], mesmo sem saberem que são.Vamos aos Porquês.
1) Porque uma das maiores propagadoras da corrente escatológica dispensasionalista foi a Bíblia New Scofield, comentada pelo teólogo estadunidense Cyrus Ingerson Scofield. Na segunda metade do século passado esta Bíblia foi muito divulgada no meio protestante e nela continha todo arquétipo dispensacionalista, o qual difundiu a ideia da literalidade das passagens bíblicas-escatológicas e das várias dispensações que a humanidade passa, ou passaria. Para Scofield, as dispensações são “um período durante o qual o homem é testado com relação à sua obediência a alguma revelação específica da vontade de Deus”.
2) Porque o cinema reabasteceu essa crença no dispensacionalismo. Sim, isto devido a Left Behind, o famoso “Deixados Para Trás” o qual deixou muita gente “para trás” mesmo no quesito coerência bíblica (inclusive eu que já fui um dispensacionalista). Estes filmes, resultantes de uma série de livros que vendeu mais de 70 milhões de exemplares publicada em mais de 34 idiomas, narram os últimos dias na terra após o arrebatamento da igreja, conforme doutrina desenvolvida no século XIX pelo ministro anglicano John Nelson Darby.
A doutrina dispensacionalista é recente. Apenas na segunda metade do século XIX John Nelson Darby passou a difundir esta corrente. Isto é, os principais expoentes da teologia reformada, de Agostinho a Spurgeon, oscilaram entre “pré-milenistas”, “pós-milenistas”, e amilenistas, mas não dispensacionalistas!
Veremos aqui alguns pontos da visão dispensacionalista a fim de concluirmos que nada mais coerente do que deixar as dispensações bem para trás:
a) Os dispensacionalistas creem na literalidade das escrituras e rejeitam verdade básicas do Novo Testamento, como por exemplo, a chegada do Reino de Deus. Deste modo as profecias veterotestamentárias que se cumpriram em Cristo são rejeitadas. Veja o que diz Herman Hoyt, um dispensacionalista contemporâneo:
“Este princípio claramente declarado é o de tomar as Escrituras em seu sentido literal e normal, entendendo que isso se aplica a toda Bíblia. Isto significa que o conteúdo histórico da Bíblia deve ser tomado literalmente; a matéria doutrinária deve ser igualmente interpretada desta forma; a informação moral e espiritual também segue este padrão; e o material profético deve ser igualmente entendido desse modo”.
Outro defensor desta corrente, o Pr. Marcos Granconato (recém-conhecido dos internautas e famoso por sua forma dura, e às vezes pitorescas, de defender algumas vertentes da teologia) chegou a dizer em sua rede social que “(...) esse modelo, (...) está livre de montagens artificiais, construídas na base da tradição, da fidelidade confessional cega e da hermenêutica espiritualista”.
Bem, será se a tradição cristã, no que tange a teologia dos principais teólogos reformadores, tem montagens artificiais e fidelidade confessional cega? Vamos as problematizações abaixo.
* Por que Jesus espiritualizou o Reino de Deus? Vejamos como nós, que rejeitamos o dispensacionalismo, pensamos.
Apesar do termo “Reino de Deus” não ser encontrado no Antigo Testamento, o pensamento de que Deus é rei está presente especificamente em Salmos e nos profetas. Ele é visto como rei em Israel (Dt 33.5; Sl 84.3; 145.1) e em toda a terra (Sl 29.10; Sl 47.2; Sl 96.10; 97.1). Portanto, neste quesito os dispensacionalistas ainda aguardam a implantação de um reino literal de Jesus na terra! Isto é, para esta corrente o reino chegado, na pessoa de Jesus, ainda não é o reino prenunciado no Antigo Testamento.
“Se, porém, eu expulso os demônios, pelo Espírito de Deus, certamente é chegado o reino de Deus sobre vós” (Mt 12.28).
Vamos pensar um pouco mais... Por que será que para os dispensacionalistas o reino de Jesus não chegara ainda? Segundo eles, seria porque que Cristo ofereceu tal reino aos judeus de sua época, mas eles rejeitaram, e portanto, a igreja é um parênteses na história que precede o retorno do Filho a terra para finalmente reinar em Israel literalmente com os judeus por um período de Mil anos e só depois disso tudo, partir para o estado eterno.
Você pode estar me perguntando: é sério que eles creem nisso? Sim. Eles conseguem crer assim.
b) Você acredita na doutrina da depravação total? (...) “que todos se extraviaram e destituídos estão da glória de Deus” (Rm 3.23) sendo impossível ao homem responder positivamente a Deus, sem que Ele antes opere sobrenaturalmente em cada ser? Se sim, como você conceberia a ideia de Deus passar a história toda testando a obediência do homem? Ora, não seria um contrassenso Deus continuar testado o homem, cujo seu estado natural passa a ser de rebelião contra ele? O homem foi reprovado! Deus não esperava mais nada da humanidade para providenciar a redenção de sua Criação. Em Gn 3.15 Deus faz uma promessa de restauração, sustenta-a e concretiza na Cruz. Esqueçam os testes! Deus conheceu nosso fracasso como humanidade, tanto é que imolou seu filho no madeiro, antes da fundação do mundo (Ap 13.8).
c) Dispensacionalistas crêem que Deus tem dois povos, e não só UM POVO. Veja só, enquanto os dispensacionalistas ainda fazem divisão entre judeus e gentios no que diz respeito aos planos e decretos de Deus, o apóstolo Paulo declara de forma clara “que o muro de divisão que anteriormente dividia judeus e gentios foi removido permanentemente por Cristo” (Ef 2.14-15).No Antigo Testamento Deus já expressara que Seu desejo era que a nação de Israel fosse luzeiro para todas as nações da terra (Gn 12.3) a fim de alcançar todos os povos.
“Anunciai entre as nações a sua Glória e entre todos os povos as suas maravilhas” (Sl 96.3).
E mais, em outras passagens o apóstolo Paulo reafirma que o verdadeiro Israel de Deus salvo não são os de linhagem étnica-racial israelita, mas os que pela fé estão em Cristo.
"Pois nem a circuncisão é coisa alguma, nem a incircuncisão, mas o ser nova criatura. E, a todos quantos andarem de conformidade com esta regra, paz e misericórdia sejam sobre eles e sobre o Israel de Deus". (Gl 6.15-16)
Em outras palavras, o verdadeiro judeu não é aquele que fez a circuncisão da carne, e sim aquele que fez a circuncisão do coração (Rm 2.28-29)
d) Os dispensacionalistas acreditam que haverá um futuro reino milenar. Milênio para os dispensacionalistas seria um período literal de mil anos expressos em Apocalipse 20 e que será inaugurado com o arrebatamento parcial da igreja – parcial, pois os dispensacionalistas acreditam que Cristo vem por etapas - e a prisão de satanás que precederão um longo período de paz, prosperidade e evangelização mundial.
Vejamos os grandes problemas desta interpretação de Apocalipse 20.
* Não faz sentido interpretar os mil anos de Apocalipse 20 como anos literais! Isto porque o livro de Apocalipse não é um livro descritivo, mas em sua grande maioria simbólico. Números são utilizados na Bíblia como significados de perfeição (nº 7), imperfeição (nº6), totalidade (nº 10). Se Mil anos forem literais, então a chave, corrente, o dragão e tudo no texto também deixariam de ser figuras simbólicas e passariam a ser literais.
* “Mil anos” é uma expressão simbólica que demarca um tempo total e incerto entre a primeira vinda de Cristo e o Seu retorno para implantação do reino eterno.
* Satanás não será preso como esperam os dispenscionalistas. Ele já está preso! Como comprovamos isso? A vinda de Cristo ao mundo nos colocou entre uma tensão conhecida pelos teólogos de “já e ainda não”, isto é, Cristo implanta o seu Reino já, mas ainda não, plenamente. Portanto, com a descida do Filho ao mundo satanás foi preso. Mas, o que seria estar preso? Será que o diabo está literalmente acorrentado ou encarcerado em algum cubículo? Claro que não! Prisão de satanás significa dizer que o seu poder foi restringido e a sua atuação não está “mais tão livre” como antes, uma vez que agora a igreja recebera poder contra toda ação maligna.
“Também eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela" [Mateus 16.18]
Mas, onde podemos diagnosticar que satanás realmente foi preso com a vinda de Cristo? Veja:
“Ninguém pode entrar na casa do valente para roubar-lhe os bens, sem primeiro amarrá-lo; e só então lhe saqueará a casa” [Marcos 3.27] Nesta parábola fica claro que Jesus está se referindo a satanás no que diz respeito ao valente. O valente foi amarrado!! Aqui, mais do que nunca nós concluímos que não faz sentido algum aquele jargão, muito usado pelos pentecostais, “tá amarrado”. Ora, dizer isso ante uma situação adversa no intuito de amarra satanás é vão. Cristo amarrou-o. Limitou-o.
Outro verso que bíblico que corrobora para esta certeza encontra-se em Colossenses 2.15:“ E, despojando os principados e potestades, os expôs publicamente e deles triunfou em si mesmo”.
A palavra despojar significa desarmar. Imagine um guerreiro que se arma com espada e escudo e avança para matar seu oponente. Agora pense no adversário que arranca a espada e o escudo deste guerreiro. Assim Cristo fez com satanás na Cruz! Ele humilhou-o e reduziu todo o seu “poder de ataque”. Ora, isto não significa que antes Deus não tivesse tamanho domínio, mas significa dizer que agora, através do evento da vinda de Cristo e a sua crucificação Satanás este domínio se dá plenamente ao passo que Deus concede autoridade ao seu povo e expande o seu Reino.
e) O dispensacionalismo crê que quando se iniciar o período de Grande Tribulação, o qual sucede a primeira vinda de Cristo, mesmo sem a pregação do Evangelho na terra e sem a presença intencional do Espírito Santo, alguns crentes nominais que ficaram ainda poderão ser salvos ao não negarem o nome de Jesus e resistirem a marca da besta, por méritos próprios e baseados, talvez, em uma espécie de um senso teológico de “essa é minha última chance”.
Ora, este talvez seja um dos pontos mais difíceis de serem harmonizados com a soteriologia bíblica. Afinal, como ser salvo pela Graça, mediante a fé, sem receber diretamente de Deus este dom?
E aí. Dispensa ou não?
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[1] Dispensacionalismo é uma abordagem teológica da Bíblia que divide a história sacra em várias eras específicas ou dispensações, sendo que em cada uma delas Deus lida com as pessoas de um modo diferente. A última dessas dispensações, dizem eles, será o Reino de mil anos de Cristo sobre a terra durante o milênio. Pré-tribulacionismo é a posição que diz que a Igreja será arrebatada e levada para o céu antes da grande tribulação que precede o milênio. [Anthony Hoekeman]
Texto produzido a partir dos comentários escatológicos de Anthony Hoekeman, Wayne Gruden, William Hendriksen, Hernandes Dias Lopes .
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Fonte: Candiêro Teológico.
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Fonte: Candiêro Teológico.
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