.
Por Leland Ryken
Mesmo as pessoas que sabem pouco sobre os Puritanos usam a frase “ética Puritana do trabalho” com confiança. Para a maioria, entretanto, é simplesmente um rótulo de múltiplo alcance para cobrir toda uma classe de males correntes: a síndrome do vício de trabalhar, trabalho escravizador, competitividade, culto do sucesso, materialismo e o culto da pessoa auto-realizada.
O “Background”: Divisão Entre Sagrado e Secular
Para entender as atitudes Puritanas em relação ao trabalho, devemos ver o pano de fundo contra o qual estavam reagindo. Durante séculos, foi costume dividir tipos de trabalho nas duas categorias, “sagrado” e “secular”. O trabalho sagrado era realizado por membros de uma profissão religiosa. Todos os outros tipos de trabalho carregavam o estigma de serem seculares.
Esta divisão entre o trabalho sagrado e o secular pode reportar-se ao Talmude Judaico. Uma das orações, obviamente escrita do ponto de vista do escriba, é como segue:
Eu te agradeço, ó Senhor, meu Deus, por me haveres dado minha porção com aqueles que se assentam à casa do saber, e não com aqueles que se assentam pelas esquinas das ruas; pois eu cedo trabalho, e eles cedo trabalham; eu cedo labuto nas palavras da Torah, e eles cedo labutam nas coisas sem importância. Eu me afadigo, e eles se afadigam; eu me afadigo e lucro com isso, e eles se afadigam sem beneficio. Eu corro, e eles correm; eu corro em direção à vida por vir, e eles correm em direção ao abismo da destruição.
A mesma divisão de trabalho em categorias de sagrado e secular tornou-se uma característica principal do catolicismo romano medieval. A atitude foi formulada já no quarto século por Eusébio, que escreveu:
Dois modos de vida foram dados pela lei de Cristo à sua igreja. Um está acima da natureza e além do viver humano comum… Inteira e permanentemente separado da vida habitual comum da humanidade, dedica-se somente ao serviço de Deus… Tal é então a forma perfeita da vida cristã. E o outro, mais humilde, mais humano, permite aos homens… ter mentalidade para a lavoura, para o comércio e os outros interesses mais seculares do que a religião… E um tipo de grau secundário de piedade é atribuído a eles.
Esta dicotomia sagrado-secular foi exatamente o que os Puritanos rejeitaram como ponto de partida para sua teoria do trabalho.
A Santidade de Todos os Tipos Legítimos de Trabalho
Foi Martinho Lutero, mais do que qualquer outro, que derrubou a noção de que clérigos, monges e freiras engajavam-se em trabalho mais santo do que a dona de casa e o comerciante. Calvino rapidamente acrescentou seu peso ao argumento.
Como os reformadores, os Puritanos igualmente rejeitaram a dicotomia sagrado-secular. William Tyndale disse que se olhamos externamente “há uma diferença entre lavar louças e pregar a palavra de Deus; mas no tocante a agradar a Deus, nenhuma em absoluto”. Essa rejeição da dicotomia entre trabalho sagrado e secular teve implicações de longo alcance.
Primeiro, considera toda tarefa de valor intrínseco e integra toda vocação com a vida espiritual de um cristão. Torna todo trabalho conseqüencial, fazendo-o arena para glorificação e obediência a Deus e expressão do amor pessoal (através do serviço) ao seu próximo.
A convicção Puritana quanto à dignidade de todo trabalho tem também o importante efeito de santificar o comum. John Cotton disse isto sobre a habilidade da fé cristã de santificar a vida e o trabalho comuns:
A fé… encoraja um homem em seu chamado por mais simples e difícil que seja… A tais empregos simples um coração carnal não sabe como submeter-se; mas agora a fé havendo-nos convocado, se requer algum emprego simples, encoraja-nos nele. Assim a fé dispõe-se a abraçar qualquer serviço simples que faz parte do seu chamado, no qual um coração carnal ficaria envergonhado de ser visto.
William Perkins declarou que as pessoas podem servir a Deus “em qualquer espécie de chamado, embora seja apenas varrer a casa ou guardar ovelhas”. Nathaniel Mather disse que a graça de Deus “espiritualiza toda ação”; mesmo as mais simples, como “um homem amar sua mulher e filho”, tornam-se “atos graciosos”, e o “seu comer e beber são atos de obediência e, portanto, acham-se em grande conta aos olhos de Deus”.
Os Puritanos revolucionaram as atitudes em relação ao trabalho diário quando levantaram a possibilidade de que “cada passo e aspecto do seu ofício é santificado”. O objetivo era servir a Deus, não simplesmente no trabalho no mundo, mas através do trabalho.
O Conceito Puritano de Chamado
Uma segunda forte afirmação dos Puritanos, além de declarar a santidade de todos os tipos de trabalho, foi que Deus chama cada pessoa para a sua vocação. Todo cristão, diziam os Puritanos, tem um chamado (1 Co 7.17). Segui-lo é obedecer a Deus. O efeito importante desta atitude é que ela torna o trabalho uma forma de corresponder a Deus.
Para começar, a ênfase Puritana em tais doutrinas como Eleição e Providência tornou fácil afirmarem que cada pessoa tem um chamado em relação ao trabalho. William Perkins, em seu clássico Treatise of The Vocations or Callings of Men (Tratado de Vocações ou Chamados dos Homens), escreveu:
Uma vocação ou chamado é um certo tipo de vida, ordenado e imposto ao homem por Deus, para o bem comum… Toda pessoa de todo grau, estado, sexo ou condição, sem exceção, deve ter algum chamado pessoal e particular em que caminhar.
Um efeito do conceito Puritano de chamado é fazer do trabalhador um mordomo que serve a Deus. Deus, de fato, é aquele que designa às pessoas as suas tarefas. Nesta perspectiva, o trabalho deixa de ser impessoal. Além do mais, sua importância não repousa em si; o trabalho é antes um meio pelo qual uma pessoa vive sua relação pessoal com Deus.
Um outro resultado prático da doutrina do chamado cristão é que leva ao contentamento pessoal no trabalho. Cotton Mather escreveu que:
um cristão deveria seguir sua ocupação com contentamento… É o favor singular de Deus a um homem que este possa atender à sua ocupação com contentamento e satisfação… Seu negócio neste assunto está entravado com quaisquer dificuldades ou inconveniências? O contentamento sob essas dificuldades não é parte pequena da sua homenagem àquele Deus que o colocou onde você está.
Se todos têm um chamado, como as pessoas podem saber para o quê foram chamadas? Os Puritanos desenvolveram uma metodologia para determinar seu chamado; não mistificaram o processo. Richard Steele, de fato, declarou que Deus raramente chama as pessoas diretamente “nos últimos dias”, e que qualquer um que alega ter tido uma revelação de Deus “deve produzir dons e qualificações extraordinárias, a menos que não passe de presunção e engano”.
Os Puritanos preferiam confiar em tais coisas como “os dotes e inclinações internos”, “circunstâncias externas que podem levar… a um curso de vida em vez de outro”, o conselho de “pais, guardiões e, em alguns casos, magistrados”, e “a natureza, a educação e os dons… adquiridos”. Eles também criam que se as pessoas estivessem no chamado certo, Deus as equiparia para realizar seu trabalho: “Quando Deus me convoca para uma posição, ele me dá alguns dons para aquela posição”.
Sobre o assunto de escolha da vocação, Milton, que desde a infância teve um forte chamado para ser poeta, escreveu que “a natureza de cada pessoa deveria ser especialmente observada e não desviada noutra direção, porque Deus não pretende todas as pessoas para uma só coisa, mas cada uma para seu próprio trabalho”.
Os Puritanos acreditavam na lealdade a um chamado. Uma vocação não era para ser assumida nem abandonada levianamente. Enquanto os Puritanos em geral não criam que uma pessoa nunca pudesse legitimamente mudar de ocupação, eram claramente cautelosos quanto à prática. William Perkins falou de “uma perseverança nos bons deveres” e alertou contra “ambição, inveja, impaciência”, acrescentando que “a inveja… quando vemos outros colocados em melhores chamados e condições do que nós… é um pecado comum, e a causa de muita dissensão na comunidade”.
Para resumir, a idéia Puritana de chamado cobria um conjunto de idéias correlatas: a providência de Deus em arranjar tarefas humanas, trabalho como resposta de um mordomo a Deus, contentamento com as tarefas pessoais e lealdade à vocação pessoal. Estas idéias foram admiravelmente captadas na exortação de John Cotton de “servir a Deus no seu chamado, e fazê-lo com regozijo, fidelidade e uma mentalidade celeste”.
A Motivação e as Recompensas do Trabalho
Desde a época em que Benjamin Franklin proferiu seus provérbios experientes sobre a riqueza como o objetivo do trabalho até nosso próprio século, quando gigantes industriais têm reivindicado que o seu sucesso era prova de que eram os eleitos de Deus, nossa cultura tem visto o trabalho primordialmente como o caminho para as riquezas e posses. Essa ética do trabalho secularizada tem sido atribuída aos Puritanos e a seu precursor Calvino, e tem sido aceita como um axioma de que a ética Puritana baseia-se na riqueza como a recompensa máxima pelo trabalho e a prosperidade como um sinal de santidade.
Mas é nisso que os Puritanos realmente criam? As recompensas do trabalho, de acordo com a teoria puritana, eram morais e espirituais, isto é, o trabalho glorificava a Deus e beneficiava a sociedade. Ao ver o trabalho como uma mordomia para com Deus, os Puritanos abriram o caminho para uma nova concepção das recompensas do trabalho, como no comentário de Richard Steele: “Vocês trabalham para Deus, que certamente os recompensará para contentamento do seu coração”. Que essas recompensas eram primariamente espirituais e morais é abundantemente claro nos comentários Puritanos.
William Perkins afirmou que:
o principal fim das nossas vidas… é servir a Deus no serviço aos homens nos afazeres de nossos chamados… Alguns homens talvez dirão: O quê, não devemos labutar nos nossos chamados para manter nossas famílias? Respondo: isso deve ser feito; mas esse não é o escopo e a finalidade de nossas vidas. A verdadeira finalidade de nossas vidas é prestar serviço a Deus no serviço ao homem.
Quanto às riquezas que devem vir do trabalho, elas “podem nos capacitar para aliviarmos nossos irmãos necessitados e promover boas obras para a igreja e o Estado” (Richard Baxter).
De acordo com John Cotton, “a fé não pensará que teve um chamado satisfatório a menos que sirva não somente para seu próprio proveito, mas também para o proveito de outros homens” .
O que é notável com respeito a tais frases é a integração entre Deus, a sociedade e o “ego” que convergem no exercício do chamado pessoal. O interesse próprio não é totalmente negado, mas é definitivamente minimizado nas recompensas do trabalho.
Ao manter sua visão dos fins morais e espirituais do trabalho, os Puritanos extraíram a conclusão lógica de que esses mesmos objetivos deveriam governar a escolha pessoal de uma vocação. Richard Baxter instou:
Escolha aquele emprego ou chamado no qual você pode ser mais útil a Deus. Não escolha aquele no qual possa ser mais rico ou ilustre no mundo, mas aquele no qual possa fazer maior bem e melhor escapar de pecar. Quando dois chamados igualmente conduzem ao bem público, e um deles tem a vantagem das riquezas, e o outro é mais vantajoso à alma, o último deve ser preferido.
O complemento desta ênfase nas recompensas morais e espirituais do trabalho é a freqüente denúncia de pessoas que usam o trabalho para gratificar ambições egoístas. Contrário ao que muitos pensam, a idéia da pessoa “auto-realizada” não atraía os Puritanos, se por “auto-realizada” queremos dizer pessoas que alegam ter sido bem-sucedidas por seus próprios esforços e que ostensivamente gratificam suas inclinações materialistas com o dinheiro que ganham.
Baxter falou desdenhosamente da auto-exaltação: “Cuidem para que, sob a pretensão de diligência no seu chamado, não sejam inclinados à mentalidade terrena e a cuidados excessivos ou cobiçosos planos de prosperar no mundo”. “Cada homem por si, e Deus por nós todos”, escreveu Perkins, “é vil e diretamente contra o propósito de todo chamado”. Ele, então, acrescentou:
Profanam suas vidas e chamados os que os aplicam à aquisição de honras, prazeres, benefícios, comodidades do mundo etc., pois assim vivemos para outro fim diferente do que Deus indicou, e desse modo servimos a nós mesmos, e, por conseguinte, nem servimos a Deus nem aos homens.
Sucesso é bênção de Deus, não algo conquistado
O Puritanismo e o calvinismo mais comumente consideravam o trabalho como o meio pelo qual as pessoas conquistam seu próprio sucesso e riqueza? É normalmente afirmado que sim, mas procuro em vão pela substanciação da afirmativa. O calvinismo não ensina uma ética de autoconfiança, como ensina nossa ética moderna do trabalho. É, ao contrário, uma ética da graça: quaisquer recompensas tangíveis advindas do trabalho são o dom da graça de Deus.
Calvino mesmo havia negado que o sucesso material é sempre o resultado do trabalho. Era Benjamin Franklin, e não os primeiros protestantes, que tinha a confiança que “cedo dormir e cedo levantar tornam um homem saudável, abastado e sábio”.
De acordo com George Swinnock, o homem de negócios bem-sucedido nunca pode dizer que seus próprios esforços foram responsáveis pelo seu sucesso; muito embora os humanos façam a sua parte ativa, “não há a menor roda na engrenagem da natureza que não dependa de Deus para seu movimento a cada instante”.
É verdade que o estilo de vida Puritano, uma mistura de diligência e frugalidade, tendia a fazer as pessoas relativamente prósperas, ao menos parte do tempo. A coisa importante, porém, é como os Puritanos viam sua riqueza. A atitude Puritana era de que riqueza era um bem social, não uma propriedade pessoal – um dom de Deus, não o resultado de esforço humano somente ou um sinal da aprovação de Deus.
Na ética Puritana, a virtude de trabalho dependia quase completamente dos motivos pelos quais as pessoas o realizavam.
Moderação no Trabalho
Uma última herança que os Puritanos legaram na sua visão de trabalho foi a necessidade de um senso de moderação. Eles tentaram em teoria manter uma posição intermediária entre os extremos da ociosidade ou preguiça por um lado e escravismo ao trabalho por outro. Na prática, possivelmente erraram na direção do excesso de trabalho.
Há um ponto no qual a moderna interpretação da ética Puritana está correta – que os Puritanos escarneciam do ócio e louvavam a diligência. Baxter expôs sua rudeza usual na questão da ociosidade: “É suíno e pecaminoso não trabalhar”. Robert Bolton chamou a ociosidade de “a própria ferrugem e o câncer da alma”.
Mesmo a “espiritualidade” não era desculpa alguma para a ociosidade na visão dos Puritanos. Thomas Shepard tinha o seguinte conselho para um zelote religioso que reclamava que os pensamentos religiosos o distraíam enquanto estava no trabalho:
Como é pecado nutrir pensamentos mundanos quando Deus lhe designou um trabalho em empregos espirituais e celestiais, assim é, em alguns aspectos, tão grande pecado fazer-se distrair por pensamentos espirituais quando Deus lhe põe a trabalhar em empregos… civis.
Parte da repulsa Puritana contra a ociosidade por um lado e o louvor ao trabalho por outro era a convicção de que o trabalho era uma ordenança da criação e, portanto, uma necessidade para o bem-estar humano. “Adão na sua inocência tinha todas as coisas à sua disposição”, escreveu William Perkins, “no entanto, Deus o ocupou num chamado”.
Mas a ética Puritana não levaria inevitavelmente à síndrome do trabalho excessivo? Não, de acordo com os Puritanos. Eles tentaram equilibrar sua diligência com restrições definidas contra o excesso de trabalho. “Cuidado com muitos negócios ou com o planejá-lo demais ou desordenadamente”, advertiu John Preston. Philip Stubbes advertiu que “todo cristão está comprometido pela consciência diante de Deus” a não permitir que “seus cuidados imoderados” ultrapassem “os limites da verdadeira santidade”.
Sobre o assunto de “fazer bicos”, Richard Steele alegou que uma pessoa não deve “acumular dois ou três chamados meramente para aumentar suas riquezas”.
Trabalhar com zelo, mas não dar sua própria alma pelo trabalho era aquilo pelo que lutavam. John Preston expressou-se desta forma:
Você deve lidar com as coisas no mundo e não se corromper por elas, tendo afeições puras, mas quando você tem cobiça desordenada por qualquer coisa, então ela profana seu espírito.
Sumário
Para um resumo da doutrina de trabalho dos Puritanos, fazemos bem em voltar ao épico de John Milton, Paradise Lost (Paraíso Perdido). Milton incorporou muito do que os Puritanos criam sobre o trabalho em seu retrato da vida de perfeição de Adão e Eva, no Jardim do Éden. Milton repetidamente enfatizou que o trabalho no Paraíso não era apenas agradável, mas também necessário.
Não há melhor sumário da ética Puritana do trabalho do que estas palavras de Adão para Eva em Paradise Lost:
O homem tem seu trabalho diário de corpo ou mente.
Designado, o que declara sua dignidade,
E a estima do céu em todos os seus caminhos.
Podemos vislumbrar aqui a crença Puritana sobre Deus como aquele que chama as pessoas a realizar tarefas, sobre a dignidade do trabalho, sobre como a atitude apropriada dirigida aos objetivos do trabalho pode transformar toda tarefa em atividade sagrada.
***
Fonte: Santos no mundo – Os puritanos como realmente eram, Leland Ryken, Ed. Fiel, 1992.
Nenhum comentário:
Postar um comentário