sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Calvino e o Empréstimo a Juros

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“Vimos até este momento que a atividade econômica já era bem ativa mesmo antes de Calvino nascer. Tanto o comércio local como de longa distância e também as Cruzadas necessitavam de crédito e utilizaram o empréstimo a juros, disto se aproveitaram muito bem os banqueiros. Vimos também, que a Igreja de Roma, mesmo que condenando a prática do empréstimo a juros, em muitas situações ela não só autorizava como também os realizavam. A Igreja mantinha negócios com os banqueiros, pois estes cuidavam dos seus interesses por toda a Europa. Seu envolvimento nos negócios financeiros e com os usurários era tão grande que ela criou o Purgatório a fim de salvá-los da perdição eterna, e também, poder assim, arrecadar mais alguns valores.
Pudemos observar também que este assunto sempre esteve em questão, muitos Doutores da Igreja trataram sobre o assunto, sendo que a maioria sempre condenou tal prática, o que não foi muito observada por seus lideres posteriores. Mas também pudemos notar que alguns entendiam que, devido aos tempos serem diferentes daqueles em que os doutores se situavam, não viam problemas em autorizar os empréstimos a juros, como é o caso de Erasmo.
Pudemos notar a posição de Lutero, criado dentro da Igreja de Roma, vendo seus erros e abusos, se manifestou contrário ao empréstimo a juros. Para Lutero os empréstimos deveriam ser realizados desde que houvesse alguma sobra, para que, ao emprestar, não ficasse fazendo conta deste dinheiro, se o tomador devolver, muito bem, se não, não nos faria falta. Ele entende que o problema está no interior do homem, no seu desejo de ostentação, que leva o homem a gastar mais do que possui.
Ao falarmos de Calvino, vimos como foi sua educação, o meio em que viveu, seu pensamento central, onde todas as nossas atitudes devem glorificar a Deus e também em prol da nossa comunidade. Vimos também o que disse sobre a importância do homem exercer sua vocação através do trabalho, e que este mesmo homem deve ter uma vida frugal, sem extravagâncias. Só pelo que já vimos poderíamos tirar algumas conclusões. Porém estaremos tratando neste momento sobre seu pensamento quanto ao empréstimo a juros.
Os Fatos Históricos - Calvino nasceu no início do século XVI, onde “o mundo do comércio havia se expandido assustadoramente com a descoberta das Américas; bem, como com a abertura de novas rotas comerciais”. Isto provocou uma grande mudança, não só na atividade econômica da Europa, como na vida das pessoas, pois, “o aumento no suprimento de ouro e a abundância de moedas tinham produzido uma inflação que se espalhou por toda parte. O novo comércio parecia estar tornando o pobre mais pobre ainda”. Como comenta Biéler:
O descobrimento do Novo Mundo canalizou para a Europa ouro em quantidade para fecundar inúmeras indústrias e para multiplicar as trocas comerciais. Os antigos quadros corporativos não podiam mais conter nem orientar essa transbordante atividade. Nascia, assim, um capitalismo não controlado e que se desenvolvia rapidamente fora dos antigos centros urbanos de produção. Ao mesmo tempo que gerava o aumento vertiginoso do custo de vida, esse desenvolvimento econômico produzia a depreciação da mão-de-obra, o que provocava a proletarização rápida das cidades e dos campos. Acumulavam-se grandes fortunas e seu número se multiplicava ao mesmo tempo que proliferavam as massas miseráveis.Mas o que isto importa a Calvino? Sua preocupação era apenas dedicar-se aos estudos. Mas, quando por necessidade de repouso, decide passar apenas uma noite em Genebra, é instado por Farel a ajudá-lo a promover a reforma religiosa nesta cidade, a isto Calvino argumenta: “Sou acanhado e tímido. […] Uma sala de estudos é o lugar para mim. Sou um homem de letras. […] Não pode exigir isso de mim”. – ao que respondeu Farel – “Digo-te, em nome de Deus Todo-poderoso, que estás apresentando os teus estudos como pretexto. Deus te amaldiçoará se não nos ajudares a levar adiante o Seu trabalho”. Era para ser apenas uma noite, agora já são quase dois anos de permanência até ser expulso da cidade, para posteriormente, rogarem seu retorno, para dali sair apenas para a glória celestial.
Esta cidade transformou este homem, que transformou esta cidade. Agora ele se preocupa com os acontecimentos e se manifesta sempre que for necessário. Como nos mostra Wallace: Ele era tão ousado em condenar a “face inaceitável” do novo sistema comercial estabelecido quanto outros pregadores de seus dias. Ele mesmo poderia descrever a vida de um mercador como “muito semelhante à vida de uma prostituta”, cheia de truques e armadilhas e enganos, e “muitas artimanhas novas e desconhecidas a fim de ganhar dinheiro”. Porém ele reconhecia que no século 16 não poderia haver nenhum movimento de retorno a uma sociedade agrária primitiva “ideal”. Calvino aproveitou uma única oportunidade que lhe fora dada para poder transformar esta cidade. Calvino não era cidadão de Genebra, ao menos até poucos anos antes de sua morte, portanto não tinha direito a votar e nem de ser votado, assim, as mudanças que ocorreram em Genebra não foram implantadas por Calvino, ele influenciou, mas quem realmente implantou foram os conselhos que administravam a cidade. Entendamos melhor os fatos: Os habitantes de Genebra eram divididos em três tipos de categorias. Os cidadãos “eram aqueles que haviam nascido (e foram subsequentemente batizados) na cidade e eram filhos de pais que eram citoyens. O corpo diretivo o Petit Consiel – era inteiramente composto por cidadãos”.239 Uma segunda categoria eram os bourgeois, que eram os “habitantes da cidade que possuíam (ou tinham condições de adquirir ou de outro modo negociar) o privilegiado título”. Estes poderiam votar e serem votados para os outros dois conselhos: os dos sessenta e dos duzentos. E, uma última categoria, a dos estrangeiros “que eram residentes legais, com nenhum direto de voto, de portar armas ou de assumir qualquer posto público na cidade”, estes só poderiam se tornar pastores ou dar aulas, mesmo assim, “somente em razão da ausência praticamente absoluta de outras pessoas, que fossem nascidas em Genebra e estivem qualificadas para desempenhar tais funções”. Calvino se encontrava nesta situação.
De 1550 a 1560 a população de Genebra quase dobrou, isto devido ao “grande número de refugiados protestantes que buscavam refúgio lá”. Muitos destes refugiados possuíam profissões, alguns tiveram que deixar tudo para trás, outros vieram com suas riquezas. Como nos relata Wallace a respeito de um escrito de Calvino: O Empréstimo a Juros Como visto, o empréstimo já era uma realidade nos tempos de Calvino, e o comércio necessita cada vez mais de crédito. Em Genebra os grandes comerciantes, que dispunham de capital, abriam a outros comerciantes créditos, sob a forma de empréstimo a juros. Assim, o capital e o crédito se tornaram fundamentais para o avanço da economia.
Mas capital e crédito são indispensáveis; o financista não é um pária, mas um parceiro útil da sociedade; e emprestar a juros, contanto que a taxa seja razoável e os empréstimos aos pobres sejam gratuitos, não é per se mais extorsivo que quaisquer outras transações econômicas sem as quais os negócios humanos não podem ser levados avante. Biéler ao comentar sobre a necessidade evidente de crédito nesta época nos fala que “toda indústria um pouco vultuosa reclama capital agora; o pedido de crédito se torna por toda parte de tal modo imperioso que se organiza a despeito de entraves morais que ainda encontra”. Estes entraves a que ele se refere é a posição da Igreja de Roma que ainda reprova os empréstimos a juros, mas, como visto anteriormente, em muitos casos ela permitia.
Com efeito, em 1532, de novo a Universidade de Paris reprova o empréstimo a juros. A Igreja não cessou de condená-lo em seu princípio, se bem que o tenha admitido sob a forma da sociedade em comandita a comportar riscos e indenização. Mas, os soberanos espanhóis, Carlos V e Philippe II, por melhores católicos que fossem, são os primeiros a reconhecer-lhe a legitimidade, sob a condição de que não exceda 12%; Henrique VIII faz o mesmo, fixando-lhe a taxa máxima em 10%(1545).
Dessa forma, a discussão quanto à prática do empréstimo a juros não era coisa nova, Biéler nos relata que “em Genebra, o empréstimo a juros foi praticado desde muito tempo antes da Reforma”, isto nos esclarece que, o empréstimo a juros, era praticado bem antes de Calvino, e isto, com o aval da Igreja, que protegia aos emprestadores, assim, continua Biéler dizendo: “Um artigo das franquias, confirmadas pelo bispo Adhemar Fabri, em 1387, diz expressamente; não se pode inquietar os emprestadores, nem sequestrar, nem tomar-lhes os bens, nem deles fazer inventário”, e mais: Não obstante, as ordenanças da Igreja se opõem a eles formalmente. Em 1179, o Concílio Geral de Latrão ameaça de excomunhão aos usuários manifestos e lhes recusa sepultamento cristão, se morrerem neste pecado. Em 1273, Gregório X ordena os soberanos banirem, dentro de três meses, a todos os usuários estrangeiros em seus Estados. E em 1312, Clemente V condena os estatutos municipais que autorizam o empréstimo a juros. Também, quando, em 1444, os cidadãos de Genebra querem sejam confirmadas pelo papa Felix V, administrador do bispado, as franquias de sua cidade, os artigos referentes à usura são supressos por sua ordem. O empréstimo a juros nem por isso cessa de ser praticado como por toda parte, aliás, e não tarda a obter a proteção do Duque de Sabóia, que bem depressa compreende todo o lucro que pode daí auferir. Algo que sempre foi praticado, mesmo que condenado pela Igreja, se bem que muitas vezes era por ela autorizado e praticado, porque então não regulamentá-lo? Não controlá-lo? Talvez pelas vantagens que eram obtidas, não seria interessante torná-lo comum. “É Calvino o primeiro dos teólogos cristãos a exonerar o empréstimo a juros do opróbrio moral e teológico que a Igreja havia feito pesar sobre ele até então”, pois, “a vasta expansão do mercado monetário exigia uma nova avaliação da proibição do empréstimo de dinheiro a juro”. Porém não se pode atribuir a ele a justificação integral do capitalismo liberal. “Suas concepções sobre as riquezas e seus fins sociais levam-no a exigir uma regulamentação assaz estrita do empréstimo a juros; tinha ele pressentido profeticamente a gama de males sociais a que o liberalismo puro deveria conduzir”.
A postura de Calvino que, por um lado, se mostra “revolucionária na história da teologia e estimulante para a vida econômica, não deixa de ser restritiva em muitos aspectos, de outro”. Ele consegue, das autoridades que mantenham a taxa de juro lícito primitivamente fixado em 5% ao ano, e depois a 6,66% ao ano, uma taxa relativamente baixa para a época. O objetivo dele era de “impedir que se desenvolvesse de imediato o empréstimo a juro em Genebra e que nela aparecessem os emprestadores profissionais, a quem o Reformador é estritamente oposto”. Em face disto nos diz Biéler: O dito referido desta época: Não se vai a Genebra para ganhar dinheiro, mas para perdê-lo, se explica, mercê das causas mencionadas acima, porque se não acham reais banqueiros em Genebra durante a segunda metade toda do século XVI. Calvino, escrevendo em 1547, observou que muitos desses refugiados haviam sido forçados a deixar para trás seus bens e base na experiência de habilidosos refugiados franceses e italianos e no capital, fornecido por astutos banqueiros comerciais italianos. […] As feiras de Genebra, que já haviam sido ponto de distribuição para as mercadorias italianas, na Europa ocidental, tornaram-se, nesse momento, o centro de uma rede de distribuição para os itens produzidos em Genebra.
Assim, Calvino não se mostra desfavorável à atividade financeira, mas, preocupado com a parcela da população mais carente, ele se manifesta contra toda prática ou atividade que possa prejudicar a parcela mais pobre da população. “Busca, sem afrouxamento, salvaguardar sempre um justo equilíbrio entre o surto econômico e a justiça social”. Neste sentido, Calvino vai ensinar que o dinheiro é o meio que Deus usa para prover o sustento do homem e de seus semelhantes. As riquezas devem ser utilizadas para o benefício também da sociedade, e não só em causa própria.
Referindo-se à Escritura, o reformador ensina que os bens materiais são os instrumentos de providência de Deus. O dinheiro, enquanto representa esses bens, é o meio do qual Deus se serve para proporcionar ao homem o que é necessário para o sustento de sua existência e da de seus companheiros. A riqueza é colocada à disposição do homem para que organize sua vida e a da sociedade da qual é solidariamente responsável. Para Calvino, diferentemente de Aristóteles e São Tomás de Aquino, que entendiam que o uso do dinheiro era apenas como meio de troca, o dinheiro é uma mercadoria, portanto, ele é produtivo, desde que seja usado com o objetivo de promover a economia através da indústria e do comércio, e não, se usado para socorrer as necessidades de alguém. Assim, o dinheiro só tem caráter produtivo se for usado como investimento.
No fundo da atitude economicamente positiva de Calvino, apesar de todas as suas restrições morais, encontramos a ideia de que o próprio dinheiro é mercadoria e que, portanto, ele é tão produtivo quanto qualquer mercadoria. Neste sentido, Calvino adota o ponto de vista de uma economia moderna, aquela em que o empréstimo de produção, ou empréstimo de empresa, precede ao empréstimo de consumo. Sem perceber ainda todas as suas consequências, Calvino pressente a importância da noção de aplicação. O dinheiro não frutifica espontaneamente, mas pode frutificar se for investido.
Calvino preocupado com o comportamento que, a partir de suas declarações, alguns poderiam tomar, a fim de justificarem os abusos e a usura, ele faz então a distinção entre o EMPRÉSTIMO DE CONSUMO E O EMPRÉSTIMO DE PRODUÇÃO. Para Calvino “o primeiro [empréstimo de consumo] que não é senão um empréstimo de assistência, improdutivo para o devedor, não faz jus a nenhuma remuneração” – já quanto ao empréstimo de produção ele nos diz – “com o segundo chamado também de empréstimo de aplicação, o devedor, acrescentando-lhe seu trabalho, vai poder alcançar novo ganho, donde ser legítimo remunerá-lo”.
Calvino entendia que a Bíblia, ao falar sobre o empréstimo a juro, estava tratando dos desejos humanos que são desenfreados por lucro. Assim, a Bíblia condena a usura e seus abusos. Ela não está tratando do empréstimo de produção. Ela condena a usura quando o empréstimo é dado para socorrer alguém, como também reconhece como sinal verdadeiro de fé quando o empréstimo é gratuito.
Que diz a Bíblia, segundo Calvino? Encontramos nela a imagem realista de uma humanidade ávida de lucro. É essa a razão, diz Calvino, por que a Bíblia condena a usura e todos os seus abusos. Ela acentua com igual ênfase, porém, o empréstimo desinteressado.

O Reformador, porém, não aprova a cobrança de juros de forma desenfreada e ao bem querer daqueles que emprestam dinheiro. Ele mostra através da Bíblia que esta condena a busca desenfreada dos lucros, ou seja, Calvino compreende que o sentido está no coração, no sentimento das pessoas pelo desejo de ficar rico.
Comprova ele que a Bíblia não proíbe formalmente o empréstimo a juros, condena ela, porém, as tendências naturais do homem de outra coisa não buscar senão o seu interesse próprio, de tardar em assistir aos outros, de esperar recompensa por seu serviço. Deus, pelo contrário, exige uma caridade ativa e desinteressada. Vejamos, agora o que ele fala em seus comentários de alguns textos da Bíblia. Comentando o Texto de 1ª Timóteo capítulo 6 versos 9 e 10 ele nos diz que o problema não são as riquezas, mas o apego a elas, e também dos males que este apego pode provocar, chegando até ao homicídio: Não são as riquezas em si a causa dos males que Paulo menciona aqui, mas o profundo apego a elas, mesmo quando a pessoa seja pobre. […] E é especialmente verdade no tocante à vil avidez por lucros, que não há males que este não produza farta e diariamente: incontáveis fraudes, falsidades, perjúrio, impostura, extorsão, crueldade, corrupção judicial, contendas, ódio, envenenamentos, homicídios e toda sorte de crimes. Comentando o Salmo 15 versículo 5, ele condenava aqueles que queriam ludibriar usando outros nomes a fim de disfarçar a usura praticada: Nesse versículo Davi prescreve aos santos a não oprimirem seu próximo com usura, nem a forçá-lo a aceitar suborno em favor de causas injustas. Com respeito à primeira cláusula, como Davi parece condenar todo e qualquer gênero de usura, em geral e sem exceção, o próprio nome tem sido por toda parte detestado. Os homens astutos, porém, têm inventado nomes ilusórios sob os quais ocultam os vícios; e, acreditando poderem escapar com tais artifícios, têm despojado com maior excesso do que se tivessem emprestado com usura franca e declarada. Deus, contudo, não se deixará enganar nem permitirá qualquer imposição das pretensões sofísticas e falsas. Ele julga o fato pelo prisma da realidade. Ele condena, ainda, o desejo por lucro em prejuízo da outra parte, onde a equidade não é respeitada.
Não há pior espécie de usura do que aquele modo injusto de fazer barganhas, quando a equidade é desrespeitada de ambos os lados. Lembremo-nos, pois, de que toda e qualquer barganha em que uma parte injustamente se empenha por angariar lucro pelo prejuízo da outra parte, seja que nome lhe demos, é aqui condenada. Condenava, também, o usurário e cita Cato que comparava a usura ao homicídio.
Com respeito à usura, é raríssimo encontrar no mundo um usurário que não seja ao mesmo tempo um extorquidor e viciado ao lucro ilícito e desonroso. Consequentemente, Cato desde outrora corretamente colocava a prática da usura e o homicídio na mesma categoria de criminalidade, pois o objetivo dessa classe de pessoas é sugar o sangue de outras pessoas. Também condenava aqueles que, ao invés de trabalhar, vivem às custas do trabalho dos outros.
É também algo muito estranho e deprimente que, enquanto todos os demais homens obtêm sua subsistência por meio do trabalho, enquanto os cônjuges se fatigam em suas ocupações diárias e os operários servem à comunidade com o suor de sua fronte, e os mercadores não só se empenham em variados labores, mas também se expõem a muitas inconveniências e perigos – os agiotas se deixam levar por vida fácil sem fazer coisa alguma, recebendo tributo do labor de todas as outras pessoas. Além disso, sabemos que, geralmente, não são os ricos que são empobrecidos por sua usura, e, sim, os pobres, precisamente quem deveria se aliviado. Ele demonstrava ainda, o perigo de condenarmos, ou de liberarmos a usura, devido às intenções humanas.
Se condenarmos tudo sem qualquer distinção, há o risco de que muitos, por se encontrarem em tal circunstância, achando que o pecado deve ser exposto, para onde quer que se volvam, não sejam entregues a extremo desespero e se lancem de ponta cabeça a todo gênero de usura, sem escolha ou discriminação. Por outro lado, sempre que concordamos que alguma coisa se pode licitamente fazer nesta área, muitos vão viver a rédeas soltas, crendo que lhes foi concedido a liberdade de praticar a usura sem controle ou moderação. Em primeiro lugar, pois, acima de tudo aconselharia meus leitores a se precaverem de engenhosamente inventar pretextos, pelos quais tirem proveito de seus semelhantes, e para que não imaginem que qualquer coisa pode ser-lhes lícita, quando para outros é grave e prejudicial. Citando, Levítico 25. 35-36, ele comentou que a proibição da usura se deve ao fato de que os pobres não fossem oprimidos, mas quando o empréstimo é praticado sem a intenção de oprimir, quando é feito para alguém que não está passando por necessidade, alguém que irá fazer render mais ainda do que foi emprestado, neste caso a usura não é ilícita.
Vemos que o propósito pelo qual a lei foi elaborada consistia em que os homens não oprimissem cruelmente os pobres, os quais devem, antes, receber simpatia e compaixão. Essa foi, na verdade, uma parte da lei judicial que Deus destinara aos judeus em particular; mas ela é um princípio comum de justiça que se estende a todas as nações e a todas as épocas, para que sejamos guardados de despojar e devorar os pobres que estão em aflição e necessidade. Desse fato segue-se que o lucro que obtém alguém que empresta seu dinheiro no interesse lícito, sem fazer injúria a quem quer que seja, não está incluído sob o epíteto de usura ilícita.E também, que a regra a qual devemos seguir é a da equidade, se agirmos assim, pouco será necessário tratar.
Em suma, uma vez que tenhamos gravada em nossos corações a regra da equidade que Cristo prescreve em Mateus: “Portanto, tudo quanto quereis que os homens vos façam, fazei-lhes também o mesmo” [7.12], não será necessário entrar em longa controvérsia em torno da usura. Ele demonstrou com clareza o perigo de se praticar a usura, pois, “a prática do juro tem quase sempre estes dois companheiros inseparáveis: crueldade e a arte de ludibriar”, desta forma, os que a praticam, não são vistos por ele com bons olhos, assim, “bem raro é ver um homem de bem e, ao mesmo tempo, usurário”.
Como, pois, não era possível que ocorresse um empréstimo onde não ocorria a cobrança de juros, Calvino deu sua opinião quando e em quais circunstâncias os juros poderiam ser cobrados. Segundo o Reformador, a prática dos juros podia ser realizada quando o tomador se mostrava indisposto a pagar no prazo fixado o empréstimo tomado.
Se o que toma emprestado, por má vontade, não reembolsa no prazo fixado. Se um mau pagador tergiversa e prolonga o termo com prejuízo de seu credor, seria admissível que sua esperteza e má fé lhe derivassem proveito com haver lesado? Certamente, creio, ninguém negará que deva ele pagar usura da soma, para ressarci-lo das perdas sofridas. A isso se chama juros, mas, para mim, é tudo a mesma coisa. E, se o tomador do empréstimo for auferir ganhos com o valor emprestado, entende que, neste caso, é justo que o emprestador tenha também algum lucro, é a isto Calvino que vai chamar de empréstimo produtivo.
Se o empréstimo é produtivo, destinado a fazer render um bem. Este gênero de empréstimo, Calvino acentua, no momento quando o surto econômico da Europa vai crescendo, torna-lhe mais frequente dia após dia. Se um homem rico e bem situado, querendo comprar uma boa granja, toma emprestada de seu vizinho parte da soma, por que o que empresta não poderá auferir certo lucro da renda, até onde haja contribuído com o seu dinheiro? Muitos casos semelhantes ocorrem todos os dias, aos quais, no que tange à equidade, os juros não são piores que uma barganha. Por fim, Biéler comenta acerca do desejo de Calvino com relação à usura: […] Calvino declara que não desejaria que se creia que sua intenção é favorecer a prática da agiotagem; quanto a si, bem que preferiria que o próprio termo fosse abolido do mundo, em razão das misérias que ela engendra. Reconhecendo, porém, que se trata, na vida econômica de então, de coisa de grande importância, não se sente com autoridade de condená-la com fazer a Bíblia dizer o que não diz, além do que comportam as próprias palavras de Deus. Deixa, então a cargo da consciência de cada um, admoestando porém, que teremos de dar conta de nossos atos a Deus.
Em conclusão, diz Calvino, não há lei alguma, casuística nenhuma, que poderá estabelecer um limite entre o que é lícito e o que o não é. Só a regra eterna da caridade e da justiça que decorre da fé em Jesus Cristo servirá a cada um de norma, em se lembrando que é diante de Deus, não perante os homens, que terá finalmente de prestar conta de seus atos.
Calvino e a Limitação às Taxas de Juros - Sendo, pois, Calvino contrário à prática dos juros, principalmente daqueles que, ao invés de trabalhar, queriam ganhar dinheiro ás custas dos outros. Conforme Biéler citando Calvino, diz: “não aprovo, se alguém propõe fazer do ganho de juros verdadeira profissão”. Mas, reconhecendo que lhe é impossível aboli-lo, mostra em quais situações é permitido a cobrança de juros. Entretanto, compreende que tal prática podia levar os homens a agir de forma cruel e mesquinha, com sentimentos egoístas, fez então, várias restrições a tal prática.
Em primeiro lugar, Calvino declarou que não se deve tirar proveito da miséria de alguém. “Que se não cobrem juros do pobre e que ninguém seja coagido, quando em aperturas por indigência ou afligido de calamidade”.
Em segundo lugar, ele argumentou que não se devia usar da prática do empréstimo, sem antes suprir as próprias necessidades e as dos necessitados. “[…] aquele que dá em empréstimo não seja de tal modo interessado no ganho, que deixe de atender aos deveres necessários, nem tão preocupado em colocar seu dinheiro em mão seguras, que desconsidere os irmãos pobres”.
Em terceiro lugar, que usasse das mesmas condições que gostaria que usassem com ele. “[…] que nada intervenha que não se conforme à equidade natural e, se a coisa se examina segundo a regra de Cristo, isto é, o que quereis que vos façam os homens.”
Em quarto lugar, que só se cobre juros desde que o tomador ganhou mais do que lhe foi emprestado. “Que aquele que toma emprestado faça outro tanto ou mais de ganho com o dinheiro emprestado”. Em quinto lugar, que os costumes e hábitos do meio em que vivemos não sejam usados como argumento para a cobrança de juros. “que não estimemos o costume vulgar e recebido que é que nos seja lícito, […] pelo contrário, que tomemos como regra uma só, a Palavra de Deus”.
Em sexto lugar, que tenhamos consciência que os juros incidem sobre o custo de vida da população, e não apenas no proveito de quem toma emprestado. “que não levemos em conta somente o proveito particular daquele com quem entabolamos negócio, mas ainda consideremos o que é expediente para o público”.
Em sétimo lugar, que se considere o que preceitua as leis existentes, embora seja melhor reger-se pelas da equidade. “que não se exceda a medida que as leis públicas da região ou do lugar concedem, embora isto nem sempre baste, […]. É, pois, de mister preferir equidade que cerceie o que exceder o justo limite.”
De acordo com o pensamento do Reformador, a taxa de juros deve ser estipulada de acordo com o juízo moral e espiritual do emprestador, pois, o juro irá sempre incidir sobre o consumidor. “Com perspicácia que vai muito além da ciência econômica de seu tempo, Calvino observa que a taxa de juros tem certa incidência sobre o custo de vida e que os juros são pagos, em última instância e em sua maior parte, pelo próprio consumidor”.
E que não se deve basear somente pelo meio em que vive e nem pela lei civil. Para o Reformador, o cristão deve se basear no Evangelho e no seu comportamento diante de Deus, e ainda que tal condição impossibilite o tomador de trabalho e de ter liberdade sobre sua vida.
Qual, porém, a taxa normal? Calvino insiste no fato de que não há regra objetiva para fixá-la. O que deve ser determinante é o juízo espiritual e moral do emprestador, se ele é um cristão autêntico. Sua determinação será ditada pela justiça e pela caridade, compreendidas como o entende o Evangelho e medida pelas necessidades do próximo. […] Não somente, pois, não se pode fixar uma taxa uniforme que estabeleceria o limite abaixo do qual seria legítimo o juro, mas é ainda preciso ter-se em conta o fato de que um crente não está aprovado diante de Deus, se contente se mostra com as diretrizes ou normas em vigor no meio em que vive, ou com a taxa sancionada pela lei civil.[…] Em definitivo, a só regra determinante hão de ser o amor e o bem do próximo tal como no-lo revela e ensina Jesus Cristo no Evangelho. Tão exigente é este amor que jamais poderia o emprestador, para fazer valer seus direitos a ser remunerado ou reembolsado, privar alguém das suas possibilidades de trabalho ou obter um poder discricionário sobre sua vida privada. Portanto, a taxa de juros não deve ser abusiva, deve ser justa, independentemente das condições propostas pela lei. De acordo com o pensamento de Calvino, antes de se aplicar uma taxa de juro, deve-se avaliar o motivo do empréstimo, e o emprestador deve ter a consciência de que ele está a emprestar para seu semelhante feito á imagem de Deus. Mesmo em uma transação financeira devemos manifestar a glória de Deus.”
Fonte:
MAURICIO DE CASTRO E SOUZA: “O EMPRÉSTIMO A JUROS EM JOÃO CALVINO”. (Dissertação apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião. Orientadora: Profª Drª Márcia Mello Costa De Liberal). São Paulo, 2006.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domíni

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