“Vimos até
este momento que a atividade econômica já era bem ativa mesmo antes de Calvino
nascer. Tanto o comércio local como de longa distância e também as Cruzadas
necessitavam de crédito e utilizaram o empréstimo a juros, disto se
aproveitaram muito bem os banqueiros. Vimos também, que a Igreja de Roma, mesmo
que condenando a prática do empréstimo a juros, em muitas situações ela não só
autorizava como também os realizavam. A Igreja mantinha negócios com os
banqueiros, pois estes cuidavam dos seus interesses por toda a Europa. Seu
envolvimento nos negócios financeiros e com os usurários era tão grande que ela
criou o Purgatório a fim de salvá-los da perdição eterna, e também, poder
assim, arrecadar mais alguns valores.
Pudemos
observar também que este assunto sempre esteve em questão, muitos Doutores da
Igreja trataram sobre o assunto, sendo que a maioria sempre condenou tal
prática, o que não foi muito observada por seus lideres posteriores. Mas também
pudemos notar que alguns entendiam que, devido aos tempos serem diferentes
daqueles em que os doutores se situavam, não viam problemas em autorizar os
empréstimos a juros, como é o caso de Erasmo.
Pudemos notar
a posição de Lutero, criado dentro da Igreja de Roma, vendo seus erros e
abusos, se manifestou contrário ao empréstimo a juros. Para Lutero os
empréstimos deveriam ser realizados desde que houvesse alguma sobra, para que,
ao emprestar, não ficasse fazendo conta deste dinheiro, se o tomador devolver,
muito bem, se não, não nos faria falta. Ele entende que o problema está no
interior do homem, no seu desejo de ostentação, que leva o homem a gastar mais
do que possui.
Ao falarmos de
Calvino, vimos como foi sua educação, o meio em que viveu, seu pensamento
central, onde todas as nossas atitudes devem glorificar a Deus e também em prol
da nossa comunidade. Vimos também o que disse sobre a importância do homem
exercer sua vocação através do trabalho, e que este mesmo homem deve ter uma
vida frugal, sem extravagâncias. Só pelo que já vimos poderíamos tirar algumas
conclusões. Porém estaremos tratando neste momento sobre seu pensamento quanto
ao empréstimo a juros.
Os Fatos
Históricos - Calvino nasceu no início do século XVI, onde “o mundo do
comércio havia se expandido assustadoramente com a descoberta das Américas;
bem, como com a abertura de novas rotas comerciais”. Isto provocou uma grande
mudança, não só na atividade econômica da Europa, como na vida das pessoas,
pois, “o aumento no suprimento de ouro e a abundância de moedas tinham
produzido uma inflação que se espalhou por toda parte. O novo comércio parecia
estar tornando o pobre mais pobre ainda”. Como comenta Biéler:
O
descobrimento do Novo Mundo canalizou para a Europa ouro em quantidade para
fecundar inúmeras indústrias e para multiplicar as trocas comerciais. Os
antigos quadros corporativos não podiam mais conter nem orientar essa
transbordante atividade. Nascia, assim, um capitalismo não controlado e que se
desenvolvia rapidamente fora dos antigos centros urbanos de produção. Ao mesmo
tempo que gerava o aumento vertiginoso do custo de vida, esse desenvolvimento
econômico produzia a depreciação da mão-de-obra, o que provocava a
proletarização rápida das cidades e dos campos. Acumulavam-se grandes fortunas
e seu número se multiplicava ao mesmo tempo que proliferavam as massas
miseráveis.Mas o que isto importa a Calvino? Sua preocupação era apenas
dedicar-se aos estudos. Mas, quando por necessidade de repouso, decide passar
apenas uma noite em Genebra, é instado por Farel a ajudá-lo a promover a
reforma religiosa nesta cidade, a isto Calvino argumenta: “Sou acanhado e
tímido. […] Uma sala de estudos é o lugar para mim. Sou um homem de letras. […]
Não pode exigir isso de mim”. – ao que respondeu Farel – “Digo-te, em nome de
Deus Todo-poderoso, que estás apresentando os teus estudos como pretexto. Deus
te amaldiçoará se não nos ajudares a levar adiante o Seu trabalho”. Era para
ser apenas uma noite, agora já são quase dois anos de permanência até ser
expulso da cidade, para posteriormente, rogarem seu retorno, para dali sair
apenas para a glória celestial.
Esta cidade
transformou este homem, que transformou esta cidade. Agora ele se preocupa com
os acontecimentos e se manifesta sempre que for necessário. Como nos mostra
Wallace: Ele era tão ousado em condenar a “face inaceitável” do novo sistema
comercial estabelecido quanto outros pregadores de seus dias. Ele mesmo poderia
descrever a vida de um mercador como “muito semelhante à vida de uma
prostituta”, cheia de truques e armadilhas e enganos, e “muitas artimanhas
novas e desconhecidas a fim de ganhar dinheiro”. Porém ele reconhecia que no
século 16 não poderia haver nenhum movimento de retorno a uma sociedade agrária
primitiva “ideal”. Calvino aproveitou uma única oportunidade que lhe fora dada
para poder transformar esta cidade. Calvino não era cidadão de Genebra, ao
menos até poucos anos antes de sua morte, portanto não tinha direito a votar e
nem de ser votado, assim, as mudanças que ocorreram em Genebra não foram
implantadas por Calvino, ele influenciou, mas quem realmente implantou foram os
conselhos que administravam a cidade. Entendamos melhor os fatos: Os habitantes
de Genebra eram divididos em três tipos de categorias. Os cidadãos “eram
aqueles que haviam nascido (e foram subsequentemente batizados) na cidade e
eram filhos de pais que eram citoyens. O corpo diretivo o Petit Consiel – era
inteiramente composto por cidadãos”.239 Uma segunda categoria eram os
bourgeois, que eram os “habitantes da cidade que possuíam (ou tinham condições
de adquirir ou de outro modo negociar) o privilegiado título”. Estes poderiam
votar e serem votados para os outros dois conselhos: os dos sessenta e dos
duzentos. E, uma última categoria, a dos estrangeiros “que eram residentes
legais, com nenhum direto de voto, de portar armas ou de assumir qualquer posto
público na cidade”, estes só poderiam se tornar pastores ou dar aulas, mesmo
assim, “somente em razão da ausência praticamente absoluta de outras pessoas,
que fossem nascidas em Genebra e estivem qualificadas para desempenhar tais
funções”. Calvino se encontrava nesta situação.
De 1550 a 1560
a população de Genebra quase dobrou, isto devido ao “grande número de
refugiados protestantes que buscavam refúgio lá”. Muitos destes refugiados
possuíam profissões, alguns tiveram que deixar tudo para trás, outros vieram
com suas riquezas. Como nos relata Wallace a respeito de um escrito de Calvino:
O Empréstimo a Juros Como visto, o empréstimo já era uma realidade nos
tempos de Calvino, e o comércio necessita cada vez mais de crédito. Em Genebra
os grandes comerciantes, que dispunham de capital, abriam a outros comerciantes
créditos, sob a forma de empréstimo a juros. Assim, o capital e o crédito se
tornaram fundamentais para o avanço da economia.
Mas capital
e crédito são indispensáveis; o financista não é um pária, mas um parceiro
útil da sociedade; e emprestar a juros, contanto que a taxa seja razoável e os
empréstimos aos pobres sejam gratuitos, não é per se mais extorsivo que
quaisquer outras transações econômicas sem as quais os negócios humanos não
podem ser levados avante. Biéler ao comentar sobre a necessidade evidente de
crédito nesta época nos fala que “toda indústria um pouco vultuosa reclama
capital agora; o pedido de crédito se torna por toda parte de tal modo
imperioso que se organiza a despeito de entraves morais que ainda encontra”.
Estes entraves a que ele se refere é a posição da Igreja de Roma que ainda
reprova os empréstimos a juros, mas, como visto anteriormente, em muitos casos
ela permitia.
Com efeito, em
1532, de novo a Universidade de Paris reprova o empréstimo a juros. A Igreja
não cessou de condená-lo em seu princípio, se bem que o tenha admitido sob a
forma da sociedade em comandita a comportar riscos e indenização. Mas, os
soberanos espanhóis, Carlos V e Philippe II, por melhores católicos que fossem,
são os primeiros a reconhecer-lhe a legitimidade, sob a condição de que não
exceda 12%; Henrique VIII faz o mesmo, fixando-lhe a taxa máxima em 10%(1545).
Dessa forma, a
discussão quanto à prática do empréstimo a juros não era coisa nova, Biéler nos
relata que “em Genebra, o empréstimo a juros foi praticado desde muito tempo
antes da Reforma”, isto nos esclarece que, o empréstimo a juros, era praticado
bem antes de Calvino, e isto, com o aval da Igreja, que protegia aos
emprestadores, assim, continua Biéler dizendo: “Um artigo das franquias,
confirmadas pelo bispo Adhemar Fabri, em 1387, diz expressamente; não se pode
inquietar os emprestadores, nem sequestrar, nem tomar-lhes os bens, nem deles
fazer inventário”, e mais: Não obstante, as ordenanças da Igreja se opõem a
eles formalmente. Em 1179, o Concílio Geral de Latrão ameaça de excomunhão aos
usuários manifestos e lhes recusa sepultamento cristão, se morrerem neste pecado.
Em 1273, Gregório X ordena os soberanos banirem, dentro de três meses, a todos
os usuários estrangeiros em seus Estados. E em 1312, Clemente V condena os
estatutos municipais que autorizam o empréstimo a juros. Também, quando, em
1444, os cidadãos de Genebra querem sejam confirmadas pelo papa Felix V,
administrador do bispado, as franquias de sua cidade, os artigos referentes à
usura são supressos por sua ordem. O empréstimo a juros nem por isso cessa de
ser praticado como por toda parte, aliás, e não tarda a obter a proteção do
Duque de Sabóia, que bem depressa compreende todo o lucro que pode daí auferir.
Algo que sempre foi praticado, mesmo que condenado pela Igreja, se bem que
muitas vezes era por ela autorizado e praticado, porque então não regulamentá-lo?
Não controlá-lo? Talvez pelas vantagens que eram obtidas, não seria
interessante torná-lo comum. “É Calvino o primeiro dos teólogos cristãos a
exonerar o empréstimo a juros do opróbrio moral e teológico que a Igreja havia
feito pesar sobre ele até então”, pois, “a vasta expansão do mercado
monetário exigia uma nova avaliação da proibição do empréstimo de dinheiro a
juro”. Porém não se pode atribuir a ele a justificação integral do capitalismo
liberal. “Suas concepções sobre as riquezas e seus fins sociais levam-no a
exigir uma regulamentação assaz estrita do empréstimo a juros; tinha ele
pressentido profeticamente a gama de males sociais a que o liberalismo puro
deveria conduzir”.
A postura de
Calvino que, por um lado, se mostra “revolucionária na história da teologia e
estimulante para a vida econômica, não deixa de ser restritiva em muitos
aspectos, de outro”. Ele consegue, das autoridades que mantenham a taxa de juro
lícito primitivamente fixado em 5% ao ano, e depois a 6,66% ao ano, uma taxa relativamente
baixa para a época. O objetivo dele era de “impedir que se desenvolvesse de
imediato o empréstimo a juro em Genebra e que nela aparecessem os emprestadores
profissionais, a quem o Reformador é estritamente oposto”. Em face disto nos
diz Biéler: O dito referido desta época: Não se vai a Genebra para ganhar
dinheiro, mas para perdê-lo, se explica, mercê das causas mencionadas acima,
porque se não acham reais banqueiros em Genebra durante a segunda metade toda
do século XVI. Calvino, escrevendo em 1547, observou que muitos desses
refugiados haviam sido forçados a deixar para trás seus bens e base na
experiência de habilidosos refugiados franceses e italianos e no capital,
fornecido por astutos banqueiros comerciais italianos. […] As feiras de Genebra,
que já haviam sido ponto de distribuição para as mercadorias italianas, na
Europa ocidental, tornaram-se, nesse momento, o centro de uma rede de
distribuição para os itens produzidos em Genebra.
Assim, Calvino
não se mostra desfavorável à atividade financeira, mas, preocupado com a
parcela da população mais carente, ele se manifesta contra toda prática ou
atividade que possa prejudicar a parcela mais pobre da população. “Busca, sem
afrouxamento, salvaguardar sempre um justo equilíbrio entre o surto econômico e
a justiça social”. Neste sentido, Calvino vai ensinar que o dinheiro é o meio
que Deus usa para prover o sustento do homem e de seus semelhantes. As riquezas
devem ser utilizadas para o benefício também da sociedade, e não só em causa
própria.
Referindo-se à
Escritura, o reformador ensina que os bens materiais são os instrumentos de
providência de Deus. O dinheiro, enquanto representa esses bens, é o meio do
qual Deus se serve para proporcionar ao homem o que é necessário para o
sustento de sua existência e da de seus companheiros. A riqueza é colocada à
disposição do homem para que organize sua vida e a da sociedade da qual é
solidariamente responsável. Para Calvino, diferentemente de Aristóteles e São
Tomás de Aquino, que entendiam que o uso do dinheiro era apenas como meio de
troca, o dinheiro é uma mercadoria, portanto, ele é produtivo, desde que seja
usado com o objetivo de promover a economia através da indústria e do comércio,
e não, se usado para socorrer as necessidades de alguém. Assim, o dinheiro só
tem caráter produtivo se for usado como investimento.
No fundo da
atitude economicamente positiva de Calvino, apesar de todas as suas restrições
morais, encontramos a ideia de que o próprio dinheiro é mercadoria e que,
portanto, ele é tão produtivo quanto qualquer mercadoria. Neste sentido,
Calvino adota o ponto de vista de uma economia moderna, aquela em que o
empréstimo de produção, ou empréstimo de empresa, precede ao empréstimo de
consumo. Sem perceber ainda todas as suas consequências, Calvino pressente a
importância da noção de aplicação. O dinheiro não frutifica espontaneamente,
mas pode frutificar se for investido.
Calvino
preocupado com o comportamento que, a partir de suas declarações, alguns
poderiam tomar, a fim de justificarem os abusos e a usura, ele faz então a
distinção entre o EMPRÉSTIMO DE CONSUMO E O EMPRÉSTIMO DE PRODUÇÃO. Para
Calvino “o primeiro [empréstimo de consumo] que não é senão um
empréstimo de assistência, improdutivo para o devedor, não faz jus a nenhuma
remuneração” – já quanto ao empréstimo de produção ele nos diz – “com o
segundo chamado também de empréstimo de aplicação, o devedor, acrescentando-lhe
seu trabalho, vai poder alcançar novo ganho, donde ser legítimo remunerá-lo”.
Calvino
entendia que a Bíblia, ao falar sobre o empréstimo a juro, estava tratando dos
desejos humanos que são desenfreados por lucro. Assim, a Bíblia condena a usura
e seus abusos. Ela não está tratando do empréstimo de produção. Ela condena a
usura quando o empréstimo é dado para socorrer alguém, como também reconhece
como sinal verdadeiro de fé quando o empréstimo é gratuito.
Que diz a
Bíblia, segundo Calvino? Encontramos nela a imagem realista de uma humanidade
ávida de lucro. É essa a razão, diz Calvino, por que a Bíblia condena a usura e
todos os seus abusos. Ela acentua com igual ênfase, porém, o empréstimo
desinteressado.
O Reformador,
porém, não aprova a cobrança de juros de forma desenfreada e ao bem querer
daqueles que emprestam dinheiro. Ele mostra através da Bíblia que esta condena
a busca desenfreada dos lucros, ou seja, Calvino compreende que o sentido está
no coração, no sentimento das pessoas pelo desejo de ficar rico.
Comprova ele
que a Bíblia não proíbe formalmente o empréstimo a juros, condena ela, porém,
as tendências naturais do homem de outra coisa não buscar senão o seu interesse
próprio, de tardar em assistir aos outros, de esperar recompensa por seu
serviço. Deus, pelo contrário, exige uma caridade ativa e desinteressada. Vejamos,
agora o que ele fala em seus comentários de alguns textos da Bíblia. Comentando
o Texto de 1ª Timóteo capítulo 6 versos 9 e 10 ele nos diz que o problema não
são as riquezas, mas o apego a elas, e também dos males que este apego pode
provocar, chegando até ao homicídio: Não são as riquezas em si a causa dos
males que Paulo menciona aqui, mas o profundo apego a elas, mesmo quando a
pessoa seja pobre. […] E é especialmente verdade no tocante à vil avidez por
lucros, que não há males que este não produza farta e diariamente: incontáveis
fraudes, falsidades, perjúrio, impostura, extorsão, crueldade, corrupção
judicial, contendas, ódio, envenenamentos, homicídios e toda sorte de crimes. Comentando
o Salmo 15 versículo 5, ele condenava aqueles que queriam ludibriar usando
outros nomes a fim de disfarçar a usura praticada: Nesse versículo Davi
prescreve aos santos a não oprimirem seu próximo com usura, nem a forçá-lo a
aceitar suborno em favor de causas injustas. Com respeito à primeira cláusula,
como Davi parece condenar todo e qualquer gênero de usura, em geral e sem
exceção, o próprio nome tem sido por toda parte detestado. Os homens astutos,
porém, têm inventado nomes ilusórios sob os quais ocultam os vícios; e,
acreditando poderem escapar com tais artifícios, têm despojado com maior
excesso do que se tivessem emprestado com usura franca e declarada. Deus,
contudo, não se deixará enganar nem permitirá qualquer imposição das pretensões
sofísticas e falsas. Ele julga o fato pelo prisma da realidade. Ele condena,
ainda, o desejo por lucro em prejuízo da outra parte, onde a equidade não é
respeitada.
Não há pior
espécie de usura do que aquele modo injusto de fazer barganhas, quando a equidade
é desrespeitada de ambos os lados. Lembremo-nos, pois, de que toda e qualquer
barganha em que uma parte injustamente se empenha por angariar lucro pelo
prejuízo da outra parte, seja que nome lhe demos, é aqui condenada. Condenava,
também, o usurário e cita Cato que comparava a usura ao homicídio.
Com respeito à
usura, é raríssimo encontrar no mundo um usurário que não seja ao mesmo tempo
um extorquidor e viciado ao lucro ilícito e desonroso. Consequentemente, Cato
desde outrora corretamente colocava a prática da usura e o homicídio na mesma
categoria de criminalidade, pois o objetivo dessa classe de pessoas é sugar o
sangue de outras pessoas. Também condenava aqueles que, ao invés de trabalhar,
vivem às custas do trabalho dos outros.
É também algo
muito estranho e deprimente que, enquanto todos os demais homens obtêm sua
subsistência por meio do trabalho, enquanto os cônjuges se fatigam em suas
ocupações diárias e os operários servem à comunidade com o suor de sua fronte,
e os mercadores não só se empenham em variados labores, mas também se expõem a
muitas inconveniências e perigos – os agiotas se deixam levar por vida fácil
sem fazer coisa alguma, recebendo tributo do labor de todas as outras pessoas.
Além disso, sabemos que, geralmente, não são os ricos que são empobrecidos por
sua usura, e, sim, os pobres, precisamente quem deveria se aliviado. Ele
demonstrava ainda, o perigo de condenarmos, ou de liberarmos a usura, devido às
intenções humanas.
Se condenarmos
tudo sem qualquer distinção, há o risco de que muitos, por se encontrarem em
tal circunstância, achando que o pecado deve ser exposto, para onde quer que se
volvam, não sejam entregues a extremo desespero e se lancem de ponta cabeça a
todo gênero de usura, sem escolha ou discriminação. Por outro lado, sempre que
concordamos que alguma coisa se pode licitamente fazer nesta área, muitos vão
viver a rédeas soltas, crendo que lhes foi concedido a liberdade de praticar a
usura sem controle ou moderação. Em primeiro lugar, pois, acima de tudo
aconselharia meus leitores a se precaverem de engenhosamente inventar
pretextos, pelos quais tirem proveito de seus semelhantes, e para que não
imaginem que qualquer coisa pode ser-lhes lícita, quando para outros é grave e
prejudicial. Citando, Levítico 25. 35-36, ele comentou que a proibição da usura
se deve ao fato de que os pobres não fossem oprimidos, mas quando o empréstimo
é praticado sem a intenção de oprimir, quando é feito para alguém que não está
passando por necessidade, alguém que irá fazer render mais ainda do que foi
emprestado, neste caso a usura não é ilícita.
Vemos que o
propósito pelo qual a lei foi elaborada consistia em que os homens não
oprimissem cruelmente os pobres, os quais devem, antes, receber simpatia e
compaixão. Essa foi, na verdade, uma parte da lei judicial que Deus destinara
aos judeus em particular; mas ela é um princípio comum de justiça que se
estende a todas as nações e a todas as épocas, para que sejamos guardados de
despojar e devorar os pobres que estão em aflição e necessidade. Desse fato
segue-se que o lucro que obtém alguém que empresta seu dinheiro no interesse
lícito, sem fazer injúria a quem quer que seja, não está incluído sob o epíteto
de usura ilícita.E também, que a regra a qual devemos seguir é a da equidade,
se agirmos assim, pouco será necessário tratar.
Em suma, uma
vez que tenhamos gravada em nossos corações a regra da equidade que Cristo
prescreve em Mateus: “Portanto, tudo quanto quereis que os homens vos façam,
fazei-lhes também o mesmo” [7.12], não será necessário entrar em longa
controvérsia em torno da usura. Ele demonstrou com clareza o perigo de se
praticar a usura, pois, “a prática do juro tem quase sempre estes dois
companheiros inseparáveis: crueldade e a arte de ludibriar”, desta forma, os
que a praticam, não são vistos por ele com bons olhos, assim, “bem raro é ver
um homem de bem e, ao mesmo tempo, usurário”.
Como, pois,
não era possível que ocorresse um empréstimo onde não ocorria a cobrança de
juros, Calvino deu sua opinião quando e em quais circunstâncias os juros
poderiam ser cobrados. Segundo o Reformador, a prática dos juros podia ser
realizada quando o tomador se mostrava indisposto a pagar no prazo fixado o
empréstimo tomado.
Se o que toma
emprestado, por má vontade, não reembolsa no prazo fixado. Se um mau pagador
tergiversa e prolonga o termo com prejuízo de seu credor, seria admissível que
sua esperteza e má fé lhe derivassem proveito com haver lesado? Certamente,
creio, ninguém negará que deva ele pagar usura da soma, para ressarci-lo das
perdas sofridas. A isso se chama juros, mas, para mim, é tudo a mesma coisa. E,
se o tomador do empréstimo for auferir ganhos com o valor emprestado, entende
que, neste caso, é justo que o emprestador tenha também algum lucro, é a isto
Calvino que vai chamar de empréstimo produtivo.
Se o
empréstimo é produtivo, destinado a fazer render um bem. Este gênero de
empréstimo, Calvino acentua, no momento quando o surto econômico da Europa vai
crescendo, torna-lhe mais frequente dia após dia. Se um homem rico e bem
situado, querendo comprar uma boa granja, toma emprestada de seu vizinho parte
da soma, por que o que empresta não poderá auferir certo lucro da renda, até
onde haja contribuído com o seu dinheiro? Muitos casos semelhantes ocorrem
todos os dias, aos quais, no que tange à equidade, os juros não são piores que
uma barganha. Por fim, Biéler comenta acerca do desejo de Calvino com relação à
usura: […] Calvino declara que não desejaria que se creia que sua intenção é
favorecer a prática da agiotagem; quanto a si, bem que preferiria que o próprio
termo fosse abolido do mundo, em razão das misérias que ela engendra.
Reconhecendo, porém, que se trata, na vida econômica de então, de coisa de
grande importância, não se sente com autoridade de condená-la com fazer a
Bíblia dizer o que não diz, além do que comportam as próprias palavras de Deus.
Deixa, então a cargo da consciência de cada um, admoestando porém, que teremos
de dar conta de nossos atos a Deus.
Em conclusão,
diz Calvino, não há lei alguma, casuística nenhuma, que poderá estabelecer um
limite entre o que é lícito e o que o não é. Só a regra eterna da caridade e da
justiça que decorre da fé em Jesus Cristo servirá a cada um de norma, em se
lembrando que é diante de Deus, não perante os homens, que terá finalmente de
prestar conta de seus atos.
Calvino e a
Limitação às Taxas de Juros - Sendo, pois, Calvino contrário à prática dos
juros, principalmente daqueles que, ao invés de trabalhar, queriam ganhar dinheiro
ás custas dos outros. Conforme Biéler citando Calvino, diz: “não aprovo, se
alguém propõe fazer do ganho de juros verdadeira profissão”. Mas, reconhecendo
que lhe é impossível aboli-lo, mostra em quais situações é permitido a cobrança
de juros. Entretanto, compreende que tal prática podia levar os homens a agir
de forma cruel e mesquinha, com sentimentos egoístas, fez então, várias
restrições a tal prática.
Em primeiro
lugar, Calvino declarou que não se deve tirar proveito da miséria de alguém.
“Que se não cobrem juros do pobre e que ninguém seja coagido, quando em
aperturas por indigência ou afligido de calamidade”.
Em segundo
lugar, ele argumentou que não se devia usar da prática do empréstimo, sem antes
suprir as próprias necessidades e as dos necessitados. “[…] aquele que dá
em empréstimo não seja de tal modo interessado no ganho, que deixe de atender
aos deveres necessários, nem tão preocupado em colocar seu dinheiro em mão
seguras, que desconsidere os irmãos pobres”.
Em terceiro
lugar, que usasse das mesmas condições que gostaria que usassem com ele.
“[…] que nada intervenha que não se conforme à equidade natural e, se a coisa
se examina segundo a regra de Cristo, isto é, o que quereis que vos façam os
homens.”
Em quarto
lugar, que só se cobre juros desde que o tomador ganhou mais do que lhe foi
emprestado. “Que aquele que toma emprestado faça outro tanto ou mais de
ganho com o dinheiro emprestado”. Em quinto lugar, que os costumes e hábitos do
meio em que vivemos não sejam usados como argumento para a cobrança de juros.
“que não estimemos o costume vulgar e recebido que é que nos seja lícito, […]
pelo contrário, que tomemos como regra uma só, a Palavra de Deus”.
Em sexto
lugar, que tenhamos consciência que os juros incidem sobre o custo de vida da
população, e não apenas no proveito de quem toma emprestado. “que não
levemos em conta somente o proveito particular daquele com quem entabolamos
negócio, mas ainda consideremos o que é expediente para o público”.
Em sétimo
lugar, que se considere o que preceitua as leis existentes, embora seja melhor
reger-se pelas da equidade. “que não se exceda a medida que as leis
públicas da região ou do lugar concedem, embora isto nem sempre baste, […]. É,
pois, de mister preferir equidade que cerceie o que exceder o justo limite.”
De acordo
com o pensamento do Reformador, a taxa de juros deve ser estipulada de acordo
com o juízo moral e espiritual do emprestador, pois, o juro irá sempre incidir
sobre o consumidor. “Com perspicácia que vai muito além da ciência
econômica de seu tempo, Calvino observa que a taxa de juros tem certa
incidência sobre o custo de vida e que os juros são pagos, em última instância
e em sua maior parte, pelo próprio consumidor”.
E que não se
deve basear somente pelo meio em que vive e nem pela lei civil. Para o
Reformador, o cristão deve se basear no Evangelho e no seu comportamento diante
de Deus, e ainda que tal condição impossibilite o tomador de trabalho e de ter
liberdade sobre sua vida.
Qual, porém, a
taxa normal? Calvino insiste no fato de que não há regra objetiva para fixá-la.
O que deve ser determinante é o juízo espiritual e moral do emprestador, se ele
é um cristão autêntico. Sua determinação será ditada pela justiça e pela
caridade, compreendidas como o entende o Evangelho e medida pelas necessidades
do próximo. […] Não somente, pois, não se pode fixar uma taxa uniforme que
estabeleceria o limite abaixo do qual seria legítimo o juro, mas é ainda
preciso ter-se em conta o fato de que um crente não está aprovado diante de
Deus, se contente se mostra com as diretrizes ou normas em vigor no meio em que
vive, ou com a taxa sancionada pela lei civil.[…] Em definitivo, a só regra
determinante hão de ser o amor e o bem do próximo tal como no-lo revela e
ensina Jesus Cristo no Evangelho. Tão exigente é este amor que jamais poderia o
emprestador, para fazer valer seus direitos a ser remunerado ou reembolsado,
privar alguém das suas possibilidades de trabalho ou obter um poder discricionário
sobre sua vida privada. Portanto, a taxa de juros não deve ser abusiva, deve
ser justa, independentemente das condições propostas pela lei. De acordo com o
pensamento de Calvino, antes de se aplicar uma taxa de juro, deve-se avaliar o
motivo do empréstimo, e o emprestador deve ter a consciência de que ele está a
emprestar para seu semelhante feito á imagem de Deus. Mesmo em uma transação
financeira devemos manifestar a glória de Deus.”
—
Fonte:
MAURICIO DE CASTRO E SOUZA: “O
EMPRÉSTIMO A JUROS EM JOÃO CALVINO”. (Dissertação apresentada à Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Ciências da Religião. Orientadora: Profª Drª Márcia Mello Costa De
Liberal). São Paulo, 2006.
Nota:
A imagem inserida no texto não se
inclui na referida tese.
As notas e referências
bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na
citada obra.
O texto postado é apenas um dos
muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla
do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
Disponível digitalmente no site: Domínio
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