Calvino Contra o Natal? Cristãos Contra o Natal!
Como bem observou o Augustus, em seu último post, o impossível está
acontecendo: temos um movimento crescente de “Cristãos Contra o Natal”! A
chamada “festa máxima da cristandade” está sob ataque cerrado de vários flancos
e desta vez a luta é interna! Multiplicam-se os textos e os
posicionamentos não apenas contra as características eminentemente comerciais
do feriado (esse viés sempre foi um legítimo campo de batalha dos cristãos),
mas somos alertados que o Natal não é nada mais do que um feriado pagão
assimilado pela igreja medieval, e que persiste no campo evangélico apenas por
desconhecimento do seu histórico. Essa origem, além da exploração comercial,
inviabilizaria a sua observância religiosa pelos cristãos sendo fútil a
tentativa de se resgatar o conceito abrigado no desgastado chavão do
“verdadeiro sentido do Natal” (postei algo
sobre isso em 20 de dezembro de 2005).
A literatura já nos brindou com alguns exemplos de personagens que não gostavam
do Natal. Temos Charles Dickens, no livro Um Conto de Natal (teria
sido melhor traduzido como “Um Cântico de Natal”),[1] trazendo a história de Ebenezer
Scrooge, durante um período de festividades natalinas. Scrooge era
um homem rico, não ligava para ninguém; desprezava as crianças pobres; era
avarento e egoísta. Teve, entretanto, um sonho no qual empobrece, modificando
sua atitude para com a data. A mensagem de Dickens é que a “essência” do Natal
conseguiu derreter aquele coração endurecido. Outro personagem famoso é o Grinch –
da pena do escritor Dr. Seuss, que publicava seus contos em rimas. Ele
escreveu Como Grinch Roubou o Natal,[2] que virou, anos atrás, um filme com
o ator Jim Carey. A história retrata Grinch como uma criatura mal-humorada que
tem o coração bem pequeno. Ele odeia o Natal – pois não consegue ver ninguém
demonstrando felicidade – e planeja roubar todos os presentes e ornamentos para
impedir a celebração do evento em uma aldeia perto de sua moradia. Para seu espanto,
a celebração ocorre de qualquer maneira. A mensagem de Seuss é que a “essência”
do Natal não estava nos presentes ou nos ornamentos – transcendia tudo isso.
Obviamente os “Cristãos Contra o Natal” não têm relação com qualquer desses
personagens, ou com aquele outro, registrado nas páginas das Escrituras
Sagradas, que também odiou o Natal – o Rei Herodes,[3] mas parece que está virando moda
termos cristãos contra o Natal. Além das razões relacionadas
com as origens e da distorção comercial já mencionada, temos cristãos que
apresentam algumas razões teológicas firmadas em suas convicções do que seria
ou não apropriado ao culto e celebrações na Igreja de Cristo.
Cristãos Reformados Contra o Natal!
No campo reformado, principalmente entre presbiterianos e batistas
históricos, os argumentos contra o Natal são ampliados com uma veia histórica.
Pretende-se provar que a verdadeira teologia da reforma e, principalmente, os
reformadores e seus seguidores próximos, foram avessos à celebração do Natal.
Argumenta-se que a celebração do Natal fere o “princípio regulador do culto”,
defendido pela ala reformada da igreja. Conseqüentemente, se desejamos ser
seguidores da reforma, teríamos que, coerentemente, rejeitar a celebração desta
data. Nessa linha de entendimento, muitos artigos têm sido escritos[4] presumindo uma linha uniforme de
pensamento nos teólogos reformados e correntes denominacionais reformadas no
que diz respeito à rejeição da comemoração do Natal. Normalmente, também, o
raciocínio se estende a outras datas celebradas no seio da cristandade, tais
como a páscoa, que seriam igualmente condenáveis no calendário cristão. Por
vezes, a defesa apaixonada deste ponto de vista tem resultado em dissensões e
desarmonia no seio da igreja, ou de demonstração de um espírito de
superioridade espiritual e auto-justiça, com críticas mordazes e ferinas aos
que não se convenceram do embasamento teológico, histórico ou bíblico para a
rejeição.
Deixando de lado a questão das origens – se elas têm a força de determinar a
correção de uma observância religiosa – o que seria um ensaio à parte, será que
a opinião dos reformadores foi sempre uniforme com relação à celebração do
Natal e de outras datas importantes ao cristianismo? Será que houve sempre
tanta harmonia assim, nas denominações reformadas, com relação à rejeição da
comemoração do Natal resultando nessa tradição monolítica? Será que Calvino,
realmente, se posicionou contra o Natal? Será que procede o que me escreveu uma
vez um irmão reformado, dizendo que a rejeição do Natal seria “coerente
com a fé cristã bíblica e reformada, principalmente com a posição presbiteriana
histórica, a partir de Calvino e Knox”?
Calvino Contra o Natal?
A primeira coisa que temos a observar é que essa hipotética concordância entre
Calvino e Knox não existiu. Nem há uma visão monolítica, sobre a questão, no
seio reformado histórico, como muitos pretendem transmitir. Aquele irmão, em
sua carta, desafiava: “por favor cite uma fonte primaria de onde Calvino
aprova o Natal ou recomenda o mesmo”.
Bom, se é isso que vai ajudar, vamos a ela: uma das fontes primárias é uma
carta de Calvino ao pastor da cidade de Berna, Jean Haller, de 2 de janeiro de
1551 (Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters, editadas por
Jules Bonnet, traduzida para o inglês por David Constable; Grand Rapids: Baker
Book House, 1983, 454 páginas; reprodução de Letters of John Calvin(Philadelphia:
Presbyterian Board of Publication, 1858). Nela, Calvino escreveu: “Priusquam
urbem unquam ingrederer, nullae prorsus erant feriae praeter diem Dominicum. Ex
quo sum revocatus hoc temperamentum quae sivi, ut Christi natalis celebraretur”.
Para alguns, isso bastaria para resolver a questão, mas para o resto de nós –
entre os quais me incluo, a versão ao vernáculo é necessária. Possivelmente,
uma tradução razoável para o português, seria (agradecimentos ao Rev. Elias
Medeiros): “Antes da minha chamada à cidade, eles não tinham nenhuma
festa exceto no dia do Senhor. Desde então eu tenho procurado moderação afim de
que o nascimento de Cristo seja celebrado”.
Uma outra carta, de março de 1555, para os Magistrados (Seigneurs) de
Berna, que aderentemente eram contra a celebração do Natal, diz o
seguinte: “Quanto ao restante, meus escritos testemunham os meus
sentimentos nesses pontos, pois neles declaro que uma igreja não deve ser
desprezada ou condenada porque observa mais festivais do que outras. A recente
abolição de dias de festas resultou apenas no seguinte: não se passa um ano sem
que haja algum tipo de briga e discussão; o povo estava dividido ao ponto de
desembainharem as suas espadas” (mesma fonte). No contexto, Calvino
parece indicar que os oficiais que haviam abolido a celebração tinham boas
intenções de eliminar a idolatria (vamos nos lembrar da situação histórica),
mas parece igualmente claro que ele indica que, se a definição estivesse em
suas mãos teria agido de forma diferente.
Historicamente, Knox e a igreja a Igreja Escocesa seguiram a opinião dos
oficiais de Genebra. Ou seja, em seu contexto histórico de se dissociar de tudo
que era catolicismo, reforçou a abolição das festividades, nas igrejas. Mas não
esqueçamos que ele também rejeitou instrumentos musicais, cânticos, e várias
outras formas de adoração – os “Reformados Contra o Natal” estão dispostos a
segui-lo em tudo, como parâmetro infalível?
Ocorre que Calvino é sempre apontado como uma força instigadora e radical, na
gestão de Genebra. Na realidade, entretanto, ele agiu, em muitos casos (como no
incidente de Serveto) como um pólo de moderação e encaminhamento, mas nem
sempre sua opinião prevaleceu. O governo de Genebra era conciliar e fazia valer
a visão da maioria. Por exemplo, o Rev. Hérmisten Maia Pereira da Costa aponta
que a persuasão de Calvino era a de que a Santa Ceia devia ser celebrada
semanalmente, enquanto que nas cidades de Berna e Genebra, no máximo era
celebrada quatro vezes por ano. Calvino deu até o que poderíamos chamar de um
“jeitinho reformado” ou de um “jogo de cintura” notável. Hérmisten cita: “Calvino
procurou atenuar a severidade destes decretos fazendo arranjos para que as
datas da comunhão variassem em cada igreja da cidade, provendo assim
oportunidade para a comunhão mais freqüente do povo, que podia comungar em uma
igreja vizinha” [William D. Maxwell, El Culto Cristiano: sua evolución
y sus formas, p. 140-141] Costume este que se tornou comum na Escócia. [Cf.
William D. Maxwell, El Culto Cristiano: sua evolución y sus formas, p. 141].
Hérmisten aponta também que em Genebra os magistrados determinaram que a Ceia
fosse celebrada no Natal, na Páscoa, no Pentecostes e na Festa das Colheitas
[Vd. John Calvin, “To the Seigneurs of Berne”, John
Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), nº 395, p. 163.
Vd. também: William D. Maxwell, El Culto Cristiano: sua evolución y sus
formas, p. 141]. A conclusão óbvia é a citada pelo Hérmisten: “As cinco festas
da Igreja Reformada eram: Natal, Sexta-Feira Santa, Páscoa, Assunção e
Pentecostes” (Cf. Charles W. Baird, A Liturgia Reformada: Ensaio histórico, p.
28)]. Podemos dizer que não havia, na essência da questão, celebração do Natal,
em Genebra?
A suposta unidade monolítica e histórica dos reformados, sobre esta questão das
celebrações de festividades do chamado “calendário cristão” é mais um mito do
que verdade. Ousaríamos rotular o Sínodo de Dordrecht (Dordt) de
“não reformado” – justamente de onde extraímos os Cinco Pontos do Calvinismo
(em 1618)? Pois bem, em 1578, temos a seguinte decisão: “...
considerando que outros dias festivos são observados pela autoridade do
governo, como o Natal e o dia seguinte, o dia seguinte à Páscoa, e o dia
seguinte ao de Pentecostes, e, em alguns lugares, o Dia de Ano Novo e o Dia da
Ascensão, os ministros deverão empregar toda a diligência para prepararem
sermões nos quais eles, especificamente, ensinarão a congregação as questões
relacionadas com o nascimento e ressurreição de Cristo, o envio do Espírito
Santo, e outros artigos de fé direcionados a impedir a ociosidade”. Assim,
as igrejas reformadas procedentes do ramo holandês comemoram várias dessas
datas até em dose dupla (incluindo o dia seguinte). Augustus mencionou não
somente este trecho, mas adicionou a admissão dessa visão na Confissão
de Fé de Westminster (Cap. 21) e na Confissão Helvética (XXIV).
Não ve, igualmente, dano na celebração do Natal, um outro ícone
reformado, Turretin (1623-1687)[5]. Ou seja, a rejeição do Natal, atualmente
“ressuscitada”, não tem o respaldo histórico-teológico que pretende ter.
Obviamente todos esses referenciais históricos são importantes, mas o que firma
a nossa convicção é a Palavra de Deus e nela aprendemos que a questão
das origens não determina a propriedade, ou
não, de uma coisa ou situação, mas sim a atitude de fédo
utilizante. Isso pode ser extraído de um estudo de 1 Coríntios 8.1-13; ou
examinando como os artefatos e itens preciosos, surrupiados pelos Israelitas
dos Egípcios (imediatamente antes do Êxodo), muitos dos quais com certeza
utilizados em cultos e festividades pagãs, foram utilizados em consagração
total (e sem restrições) no Tabernáculo (Ex 35 a 39). Das Escrituras, podemos inferir,
possivelmente, que Jesus participou de celebrações de festividades que não
procediam das determinações explícitas da Lei Mosaica, mas que refletiam
ocorrências históricas importantes na história do Povo de Deus – como as festas
de Purim[6] eHanucah[7] – deixando implícita a propriedade
dessas celebrações, como algo que, provém “de fé”, não sendo, portanto,
pecado. Romanos 14 e 15 trazem considerações sobre tais questões, demonstrando
a necessidade da consciência pura, ao lado da preocupação com os irmãos na fé,
para que procuremos “as coisas que servem para a paz e as que contribuem
para a edificação mútua”. É lá igualmente que lemos (14.15): “Um faz
diferença entre dia e dia, mas outro julga iguais todos os dias; cada um esteja
inteiramente convicto em sua própria mente”. Se Deus decidiu não
disciplinar condenatoriamente a questão, não o façamos nós.
Um Feliz Natal Reformado a todos!
[1] Charles
Dickens, Um Conto de Natal (S. Paulo: Rideel, 2003), 32 pp.
[2] Dr. Seuss,
Como Grinch Roubou o Natal (S. Paulo: Companhia das Letrinhas, 2000), 64 pp.
[3] Mt 2.1-18.
Herodes, conhecido como “o Grande” e “Rei dos Judeus”, nasceu em 73 a.C. Filho
de Antipater II – era da região chamada induméia e foi indicado pelo imperador
romano Júlio César como “governador da Judéia”.
[4] Veja, por
exemplo, Brian Schwertley e seu artigo “The Regulative Principle of Worship and
Christmas”, postado, entre outros sites, em:http://www.swrb.com/newslett/actualnls/CHRISTMAS.htm (acessado em
18.12.2003).
[5] Turretin
admite as celebrações de dias especiais pelas igrejas, desde que estes não
sejam impostos por elas como matéria de fé, ou considerados mais santos do que
os demais. Referindo-se à censura de igrejas que haviam escolhido não celebrar
o Natal e outras datas, sobre outras igrejas cristãos, ele escreve: “não
podemos aprovar o julgamento rígido daqueles que acusam essas igrejas de
idolatria” (Institutes of Elenctic Theology (Philipsburg, NJ: Presbyterian
& Reformed, 1994), vol 2 p. 100.
[6] Possivelmente
a festividade relatada em João 5 – relacionada com os incidentes narrados no
livro de Ester.
[7] Ou “Chanukah”
– festividade originada na época dos Macabeus, em celebração ao livramento
físico do Povo Judeu. Jesus estava em Jerusalém na época da celebração (João
10.23-30).
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