sexta-feira, 30 de setembro de 2011

CINCO PECADOS QUE AMEAÇAM OS CALVINISTAS



Por Solano Portela
Parte 1 - O PECADO DO ORGULHO

Definindo Orgulho Espiritual
O primeiro pecado que procuraremos examinar é o pecado do orgulho espiritual. Poderíamos definir o orgulho espiritual como sendo uma atitude de desprezo aos outros irmãos. Seria abrigar a sensação de se achar possuidor de uma visão superior. Seria o desenvolvimento de uma atitude de rejeição do aprendizado, contrária à humildade que Deus requer dos seus servos. Seria achar que se é conhecedor de uma faceta de compreensão que os demais irmãos ainda não alcançaram.

A Tendência de se Criar uma Hierarquia dos Salvos

A natureza humana pecadora carrega para o seio da comunidade cristã o orgulho espiritual sob diversas formas. Uma tendência sempre latente na Igreja através da história foi a de subdividir a dicotomia estabelecida pela Bíblia, na divisão das pessoas. Com relação ao posicionamento perante o criador, todos estão subdivididos em salvos ou perdidos; crentes ou descrentes; os que receberam a fé por dom de Deus ou aqueles sem fé que se encontram no caminho da perdição.
Ocorrências ao Longo da História da Igreja
O renitente orgulho espiritual tem gerado muitos movimentos dentro da Igreja que acrescentam uma terceira categoria de pessoas, no que diz respeito ao status espiritual dos homens perante Deus: os sobrenaturalmente agraciados com um fenômeno fora do comum, que difere e está além do ato soberano de Deus da salvação.
Se fizermos uma rápida viagem ao longo da história da igreja, veremos que estamos confrontando uma das mais sérias demonstrações da natureza humana caída e que Satanás sutilmente traz, em ondas intermitentes, ao seio da igreja para perturbar o relacionamento dos fiéis.
Os Gnósticos e o Orgulho Espiritual na Igreja Neotestamentária
Mesmo no início de sua história neotestamentária, a Igreja experimentou uma “cristianização” da heresia secular gnóstica, que afirmava certos patamares de conhecimento serem misteriosamente propriedade de uns poucos. Esses protognósticos “cristãos” do primeiro século cresceram e tornaram-se uma força destrutiva dentro das igrejas.
No segundo século da era cristã o movimento gnóstico já havia atingido “grandes proporções”.(4) Os gnósticos dividiam os crentes entre os que possuíam conhecimento espiritual apenas rudimentar e aqueles que possuíam o verdadeiro conhecimento (gnosis), velado aos demais. Encontramos presente a tríplice divisão: (1) os descrentes, (2) os crentes rudimentares e (3) os crentes iluminados.
Os Alegoristas e o Orgulho Espiritual
No terceiro século os alegoristas dividiram os crentes entre aqueles que entendiam o sentido mais espiritual e profundo das passagens e aqueles que não conseguiam penetrar além do significado literal do texto. Orígenes, grande expoente da Escola de Alexandria, mas um dos proponentes do alegorismo, ensinava, na realidade, que a Palavra de Deus possuía três sentidos: (1) o sentido comum, histórico—inteligível aos de mente simples; (2) o sentido espiritual—que se constituía na alma das Escrituras; e (3) o sentido perfeito—que representava um sentido espiritual mais profundo, possível de ser expresso somente por meio de alegorias. Mais uma vez uma subdivisão estranha ao conceito bíblico do estado espiritual das pessoas, é introduzida no ensinamento das igrejas, refletindo o desenvolvimento de orgulho espiritual.
Os Quakers e o Orgulho Espiritual
Na época dos puritanos tivemos o surgimento dos Quakers que declaravam-se possuidores de uma experiência fora do normal com o Espírito Santo. Uma constante, em suas pregações, era a procura pela “inner light” – luz interior, que declararia a perfeita vontade do Espírito a cada um na qual brilhasse. Com sua diferenciação dos “crentes comuns” eles representaram um novo surgimento da tão prejudicial divisão tríplice, evidência de orgulho espiritual.
A idéia do Crente Carnal e o Orgulho Espiritual
Pulando para época mais recente, até dentro do campo evangélico conservador fundamentalista, mesmo quando este ainda não havia se tornado quase todo pentecostal, foi gerada uma nova e superior categoria de crentes–o crente espiritual. Este seria aquele que deu o segundo passo de aceitação. Já havia aceito a Cristo como Salvador, mas, em um segundo passo e em uma segunda experiência, o aceita como Senhor. Essa aceitação do senhorio de Cristo faz com que ele se dissocie do crente carnal. Crentes carnais seriam aqueles que permanecem em um estágio inferior e primitivo de espiritualidade mantendo um comportamento virtualmente similar ao do descrente. Temos, novamente, o ensinamento da existência de três categorias de pessoas: os descrentes, os crentes carnais e os crentes espirituais.
As Experiências Pentecostais e o Orgulho Espiritual
O pentecostalismo, abrigou e renovou esta tendência dentro da igreja, dando-lhe novos rótulos, mas postulando uma hierarquia dos salvos estranha à Palavra de Deus. Ele trouxe à cena evangélica o inusitado e o extraordinário como sendo não apenas parte da realidade existencial, histórica e religiosa da Igreja, mas como objeto de anelo e desejo na vida individual de cada crente. Os ensinamentos do pentecostalismo deixaram a expectativa de que sem estas experiências algo estaria a faltar na vida do cristão. Era necessário se atingir um patamar superior, obter-se uma segunda bênção, elevar-se acima do nível do crente comum. Gerou-se assim uma hierarquia de crentes: os batizados vs. os não-batizados pelo Espírito Santo, ou, utilizando uma outra terminologia: os recebedores vs. os “ainda-carentes-de-uma-segunda-bênção”.
A questão da Cura Divina e o Orgulho Espiritual
A questão da cura divina, trazida pelo pentecostalismo, segue linhas paralelas semelhantes. Ela coloca os crentes em uma escala hierárquica, qualificando o seu cristianismo, fazendo uma divisão entre os que já atingiram um patamar de fé que é suficiente a torná-los recebedores de curas milagrosas vs. aqueles cuja fé é insuficiente ao recebimento destas bênçãos. Tais experiências estariam reservadas aos mais aquinhoados espiritualmente. Via de regra, formamos uma casta de orgulhosos espirituais que vivem a propagar as graças “alcançadas”, em função da sua fé.
O Perigo do “gnosticismo reformado”
Com tantas recaídas, de segmentos diversos da igreja cristã, no mesmo problema, o meu ponto é que nós calvinistas precisamos nos guardar para não seguirmos esta trilha tão repisada na história da igreja. Não podemos nos considerar imunes ao desenvolvimento de uma atitude de que “nós reformados” somos os iluminados, únicos entendedores das verdades divinas que se encontram veladas à grande parte dos crentes comuns, a não ser que recebam a explicação lógica e incontestável de nossa parte. Muitos calvinistas têm se deixado levar pela síndrome da descoberta da pólvora, passando a demonstrar o mais evidente orgulho espiritual, no relacionamento com os irmãos, prejudicando o testemunho da fé reformada.
Um Exemplo de Como o Orgulho Pode Tomar Conta de Nós
Vou citar o que me disse um grande amigo meu, e não gostaria que entendesse que eu o estou acusando de orgulho espiritual. Faço a citação apenas como exemplo de como devemos nos guardar, porque às vezes imperceptivelmente, estamos nos colocando, como calvinistas, numa casta especial de iluminados, cujo resultado será o desenvolvimento desse tão perigoso orgulho espiritual do qual devemos fugir. Após haver lido extensivamente vários trabalhos sobre justificação e de ter ouvido uma brilhante exposição desta doutrina, dentro da perspectiva bíblica/reformada, ele me disse: “Estou impressionado e chegando à conclusão de que ninguém sabe na realidade o que é a justificação…” Continuando, disse: “o nosso povo não tem a mínima idéia do que significa ser justificado.”
Notem que essas palavras foram ditas não com orgulho, mas com humildade e profunda admiração pelo trabalho de Cristo, mas quero chamar atenção para o fato de que essa apreensão doutrinária, e até essa apreciação das doutrinas da graça, traz em si a semente latente e destruidora que pode germinar, sem muito esforço, em orgulho espiritual. Minha resposta, na ocasião, foi: “Sabem, meu irmão, elas sabem sim. Se uma pessoa foi realmente resgatada pelo precioso sangue de Cristo ela sabe experimentalmente o que é justificação”.
A Experiência da Graça de Deus
Não estou colocando experiência acima da revelação escriturada, mas estou fazendo uma distinção entre saber o que é, e saber realizar uma exposição lógica, sistemática e detalhada de uma doutrina. Não podemos nunca cair no engano de que a ignorância espiritual é algo que será arraigado pela visão que temos da soberania de Deus. Não podemos nunca menosprezar a simplicidade dos crentes comuns, resgatados que foram por Cristo Jesus, pelo Deus soberano que todos amamos, predestinados desde a fundação do século, separados para a glória do Deus todo poderoso. Eles sabem o que é justificação, mesmo que nunca tenham ouvido falar de Lutero e Calvino, mesmo que não consigam dizer os cinco pontos do calvinismo, mesmo que não consigam explicar o que é justificação. O Deus poderoso que salva, o faz soberanamente, não dependendo da perspicácia, lógica ou inteligência do escolhido.
O Exemplo do Cego de Jericó
Temos que nos mirar no exemplo do cego curado por Jesus, em João 9. Ele não sabia muitas coisas. Havia discernido autoridade, nas palavras de Jesus, por isso fez o que ele mandou e o classificou como “profeta” (v. 17). Não sabia, entretanto, a razão da sua cura. Não sabia a procedência ou o destino do soberano que o curara (Vs. 12 e 25). Além do lodo com o qual havia sido untado, não sabia, obviamente, explicar como fora curado (vs. 11 e 27). Uma coisa porém ele sabia e isso lhe era suficiente naquela ocasião: “uma cousa sei, eu era cego e agora vejo”.
Razões Para Nossa Ampla Comunhão
Por que podemos ter comunhão genuína com aqueles que não são calvinistas? Porque se verdadeiramente salvos, somos irmãos, filhos do mesmo Deus soberano. Porque apesar das inconsistências verificadas nas suas formulações teológicas, por mais que digam que a salvação foi fruto do pretenso “livre arbítrio” do homem; por mais que, em seus discursos, venham a inferir uma subordinação das ações de Deus a este “livre arbítrio”, quando se põem de joelhos e oram, oram a um Deus soberano que tudo pode, a um Deus que é tudo e oram a ele reconhecendo que nada são.
Incoerências Humanas
Temos que reconhecer que nós mesmos, como seres humanos falíveis, nunca somos totalmente coerentes com nossas premissas. Querem um exemplo? Sabemos da importância do Dia do Senhor, do domingo. Temos a convicção que neste dia devemos nos reunir e adorarmos o nosso Deus. A maioria de nós, aqui, nunca pensaria esquecer o nosso culto dominical para nos envolvermos em, vamos dizer, uma partida de futebol. Entretanto muitos de nós torcemos bastante por este ou aquele clube de futebol. Secretamente apoiamos tanto o divertimento quanto o ganha-pão naquele dia, ou pelo menos fechamos os olhos e estabelecemos um duplo padrão de comportamento: um para nós e para os nossos filhos e outro, desculpável, para aqueles por quem nós torcemos. Chegamos até a inventar uma categoria de cristãos, “os atletas de Cristo”, que sacramentaliza, cristianiza e justifica a atividade no domingo. Isto é: peça a nossa opinião e condenaremos o esporte dominical. Observe a nossa prática e condescendência e verificará uma aceitação tácita dos esportes praticados no Dia do Senhor. O que é isso? Incoerência humana, para sermos bem gentis, e Deus nos agüenta!
Por acaso achamos que poderemos encontrar total coerência entre o discurso e a prática nos demais cristãos? Digo isso apenas para reforçar que é bastante provável que venhamos a encontrar a fé genuína reformada em pessoas, mesmo quando o discurso externo estiver um pouco incoerente com a nossa fé reformada. Nunca devemos ser orgulhosos e menosprezadores daqueles que constituem a verdadeira igreja de Cristo, pela qual ele deu o seu sangue. Conclamando calvinistas a ter um comportamento cordato e humilde, o Rev. Ian Hamilton, da Escócia, disse: “A graça de Deus deveria adoçar nossas discordância. Existe um grande perigo de absolutizar a nossa forma de fazer as coisas. Devemos nos apegar àqueles que se apegam a Cristo”. (5)
O Amor que Aniquila o Orgulho
O apóstolo Pedro, escrevendo em sua primeira carta (1.22 e 23) nos fala do amor cristão que aniquila o orgulho. Neste trecho lemos: Tendo purificado as vossas almas, pela vossa obediência à verdade, tendo em vista o amor fraternal não fingido, amai-vos de coração uns aos outros, ardentemente, pois fostes regenerados, não de semente corruptível, mas de incorruptível, mediante a palavra de Deus, a qual vive e é permanente.
A base deste amor é a regeneração comum (v. 23) que todos os cristãos têm em Cristo Jesus. Ele é também o nossos exemplo, pois no verso 17 lemos que ele julga “sem acepção de pessoas”, isto é, com equidade de tratamento. O amor comissionado no versículo 22 possui três características:
· É questão de obediência (“obediência à verdade”),
· Tem que ser sincero (“não fingido”) e
· Tem que ser intenso (“ardentemente”)


Tendo sido regenerados pelo Deus vivo e pela Palavra viva, de nada podemos nos orgulhar, nem mesmo da nossa compreensão de Deus e de Sua majestade, pois só dele procede a iluminação para o entendimento das verdades espirituais e ele deseja que sejamos caridosos e pacientes na instrução da Sua Palavra. Que Ele nos livre do pecado do orgulho espiritual.
(4) Kenneth Scott Latourette, A History of Christianity (N. York: Harper & Row, 1953, 1975) pp. 26, 114, 123, 124.
(5) Ian Hamilton, palestra: “O Propósito que Governa o Culto Reformado”, no VI Simpósio do Projeto Os Puritanos, Águas de Lindóia, 6-13 de junho de 1997.



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