Por Solano Portela
Parte 2 - O Pecado da Intolerância Fraternal |
O Pós-modernismo e a Tolerância Uma das características do pós-modernismo é a excessiva tolerância impingida a todas as opiniões, ou o que poderíamos chamar de relativização das verdades. Como brilhantemente já expôs o Dr. Héber Carlos de Campos,(6) o pós-modernismo caracteriza-se pelo pluralismo de idéias e pela premissa que nenhuma verdade é a “verdade verdadeira” e que temos que ser tolerantes, ou politicamente corretos, com todos os pontos de vista. Como calvinistas acreditamos estarmos firmados na verdade, não em uma verdade sujeita à compreensão subjetiva de cada um. Essa verdade é proposicional, objetiva, não-contraditória e inquestionável pois procede de revelação da parte de Deus ao homem, representada pelas inerrantes Escrituras Sagradas - a Bíblia. Pode parecer estranho, conseqüentemente, que estejamos classificando intolerância como pecado, quando nossa própria compreensão das verdades bíblicas nos impele em direção contrária ao pós-modernismo, exigindo a nossa intolerância. Devemos fazer uma diferenciação, entretanto, entre tolerância externa e a tolerância na fé, ou fraternal (entre irmãos da mesma fé). Nesse sentido, o próprio Heber Campos declara: “Devemos ser politicamente corretos quando a verdade não está em jogo”. (7) Intolerância vs. Intransigência Nesse sentido, por uma questão de clareza, gostaria de propor que diferenciássemos as duas situações distintas, chamando a intolerância externa de intransigência. Assim, consideradas e verificadas a aceitação de certas verdades bíblicas, básicas e comuns, devemos ser tolerantes, mantendo, simultaneamente, a intransigência (intolerância externa). Um dos grandes problemas que confrontamos é o de confundir intolerância com intransigência. Em muitas ocasiões somos intolerantes e chegamos a nos orgulhar disso, como se fosse uma marca necessária às nossas convicções teológicas. Definindo mais detalhadamente, intolerância fraternal, a atitude que não deveríamos ter, o pecado que deveríamos evitar, é: · Falta de amor no trato com os nosso irmãos; · Falta de discernimento das questões prioritárias, do que é mais importante em nossa fé cristã. O ensino de Paulo Sobre Tolerância Fraternal Em Colossenses 3.12-16 temos ensinamento do apóstolo Paulo sobre a necessidade de demonstração de tolerância fraternal. Diz-nos o texto: |
A orientação de Paulo é precisa e inquestionável. Da mesma forma com que fomos perdoados e recebidos em extrema graça e tolerância, por nosso Senhor Jesus Cristo, assim também, seguindo o Seu exemplo, devemos desenvolver semelhante atitude e testemunho para com os nossos irmãos (v. 13). O sentimento que deve ser notado pelos circunstantes, é o amor, o qual, ele nos comissiona, deve ser nossa vestimenta (“revesti-vos” – v. 14). Esse estilo de vida é compatível e conduz à paz de Cristo (v. 15), gerando harmonia e ações de graças. Notem que, realisticamente, Paulo constata a possibilidade de diferenças de opiniões, situação em que é própria e cabível o ensino e a admoestação (v. 16). Tais diferenças devem ser tratadas com a palavra de Cristo, que deve habitar em nossos corações, resultando em amplo louvor ao nome de Deus. Detalhando o Conceito de Intransigência Não obstante, as advertências acima, existe campo para a intransigência que não é pecado. Dentro da definição que propusemos, intransigência seria, então: · zelo pela verdade · compreensão das doutrinas prioritárias da Palavra de Deus Intransigência é o contrário de transigir, ou seja ultrapassar os limites; quebrar as regras recebidas. Nesse sentido, intransigência deve ser característica de cada calvinista, de cada crente convicto das verdades bíblicas. Ele não pode abrir mão das doutrinas claras, declaradas na Palavra de Deus. Ele não pode ultrapassar os limites traçados por Deus. O Ensino de Paulo sobre Intransigência Um exemplo dessa atitude, que é correta e própria, é encontrado na pessoa de Paulo, conforme sua inspirada declaração, em Gálatas (1.6-10). Nesse trecho Paulo fala de crentes “não tão quentes” que estão desenvolvendo um ministério paralelo ao seu, indo de igreja em igreja, pregando. A reação de Paulo é bastante diferente daquela expressa na carta aos Filipenses 1.12-18, onde foi bastante benevolente e tolerante. Os dez primeiros versos da carta aos Gálatas dizem o seguinte: |
Nos versículos 1 a 5, Paulo fez a sua apresentação, indicando a sua autoridade apostólica, demonstrando que ela vem de Deus e não de homens. A carta foi primariamente dirigida à Igreja da Galácia, mas teve ampla circulação entre as demais igrejas. Paulo dá glória a Deus e indica que Jesus Cristo se deu por nós para nos livrar das maldades desta era, passando a tratar de um problema que estava surgindo naquela igreja: a aceitação de um evangelho adulterado. No v. 6 ele mostra uma profunda perturbação interna – "estou assombrado", diz, demonstrando grande admiração que os membros daquela igreja estivessem mudando rapidamente de convicções. A afeição e a lealdade estava sendo colocada em outra doutrina, pois estavam dando ouvidos a "alguns" (v. 7) que perturbavam e queriam perverter o evangelho de Cristo. Pregavam um outro evangelho (grego: heteros-- distinção com o outro, do verso seguinte, que é allos. Aqui, heteros = ouk allo, ou seja diferente, “não outro”). Paulo referia-se, sem dúvida, aos judaizantes que pretendiam adicionar algumas coisas "palpáveis, visíveis", à simples pregação do evangelho. Quem sabe eles diziam que era apenas uma questão de método? Talvez fosse muito mais atraente, desse mais substância, ou talvez até, mais emoção ao evangelho. Estas pessoas se apresentavam com autoridade e se propunham a declarar o método de salvação. Paulo mantém a designação "evangelho" porque era apresentado como tal, mas na realidade, diz ele, não é evangelho nenhum (sistema diferente, mensagem diferente, doutrina diferente)! No v. 8, Paulo dirige-se ao fundo do seu extenso vocabulário grego para classificar estas pessoas e lança uma fortíssima condenação. Independentemente de quem quer que seja: estas pessoas, ele próprio, ou até um anjo do céu—se vier trazer um evangelho que vá além (note que não era necessariamente diferente na aparência, mas com algumas coisas adicionadas) daquele que eles tinham previamente ouvido da parte dele, tal pessoa deveria ser considerada anátema (isto é: amaldiçoado). Estas palavras contêm uma terrível responsabilidade a nós que fomos comissionados a pregar e a transmitir as verdades de Deus. Para que não pairasse qualquer dúvida sobre o seu zelo, sobre sua posição, ele repete mais uma vez as mesmas palavras, no versículo 9. Não quer ser mal-entendido, não quer deixar "passar em branco", não quer parecer precipitado - é um pensamento depurado e destilado sob o fogo do zelo e sob o direcionamento sobrenatural do Espírito Santo. Podemos negligenciar o aviso contido e pensar que Paulo se referia somente à sua situação específica. Afinal, não temos mais judaizantes em nosso meio! Muitos de nós chegam a fazer, corretamente, a aplicação destas palavras à pregação da Igreja Católica Romana, com suas adições e condições anexadas à Graça salvadora de Cristo. Isto não basta, temos que analisar o que está acontecendo no campo chamado "evangélico". Tristemente iremos, em muitas ocasiões, encontrar a proclamação de "outro" evangelho. Paulo poderia ter particularizado a questão, especificado quem ele combatia, mas quis o Espírito Santo, em sua soberania, deixar a colocação de forma genérica, de tal modo que o princípio fosse enfatizado — não podemos mexer com o cerne do evangelho. Nesse sentido, devemos ser intransigentes porque, no versículo 11, ele coloca: “Faço-vos, porém, saber, irmãos, que o evangelho por mim anunciado não é segundo o homem; porque eu não o recebi, nem o aprendi de homem algum, mas mediante revelação de Jesus Cristo”. Eis a razão de Paulo para ter esta convicção: o evangelho não é doutrina de homens, mas sim revelação de Jesus Cristo. Ele contraria a perspicácia, os desejos e as motivações carnais do homem. Temos que ter a coragem de "remar contra a maré" e proclamar o puro Evangelho de Cristo, sendo intransigentes nisso. Uma Demonstração de Tolerância, na Vida de Paulo Na epístola aos Filipenses (1.12-18), Paulo mostrou-se bastante tolerante com relação àqueles que pregavam a Cristo até com o motivo errado, mas sem adulterar o conteúdo da mensagem. Não é que ele recomende a falta de sinceridade ou os motivos errados dos que se aproveitavam de suas cadeias para pregar, mas ele é surpreendentemente tolerante. No entanto, não há nenhuma menção, no trecho, de que houvesse distorção no conteúdo da mensagem. Paulo sabia analisar os detalhes, discernir as prioridades e se concentrar nas questões cruciais da fé cristã. Ele não temia ser conhecido e caracterizado por sua intransigência, quando o cerne do evangelho estava sendo adulterado. Entretanto, ele não queria ser classificado de intolerante, se este perigo estava ausente. Ele não queria ser “do contra” contra tudo, mas sim contra o que se merecia ser contra. A tolerância tem que ser uma atitude sempre presente em nossa vida para com aqueles irmãos com os quais temos algumas diferenças. A nossa intransigência deve se conter àquelas coisas que estão perturbando os pontos fundamentais do evangelho, mas a caridade cristã, o amor de Cristo, deve ser refletido em nossas atitudes, derramando-se sobre todos aqueles que foram resgatados pelo preciosos sangue de Cristo. John Owen e Tolerância Um dos maiores teólogos e expositores da Palavra de Deus que já existiu, o puritano John Owen (1616-1683), viveu em uma era retratada por muitos como uma época de intolerância. Owen era realmente intransigente, com relação às doutrinas cardeais do evangelho, mas, surpreendentemente, ele era extremamente tolerante com aqueles que não compartilhavam a sua interpretação da Palavra de Deus. Naquela ocasião ele era conselheiro de governantes e respeitado por esses. Não seria inusitado, para a época, valer-se de sua posição de influência para promover expurgos e perseguições religiosas. Muitos assim o fizeram. Owen, entretanto, proferiu vários sermões e escritos defendendo a tolerância e o tratamento amoroso da falta de entendimento de muitos. Poderíamos dizer que Owen teve esta coragem de “remar contra a maré” da sua época, defendendo um tratamento meramente eclesiástico das questões religiosas, consciente de que o Senhor era o legítimo proprietário das consciências, a quem os homens haveriam de prestar contas por suas persuasões e convicções. Em um de seus sermões ele retrata bem a intransigência de Paulo, quando declara: “Algumas coisas, na realidade, estão tão claramente estabelecidas nas escrituras e tão bem determinadas, que não é possível questioná-las ou negá-las” .(8) Owen continua, entretanto, e se posiciona em defesa da tolerância, refletindo uma atitude que, comparada com a nossa intolerância contumaz, deveria nos envergonhar, tamanha é a sua sensibilidade. Escreve ele: |
A sensibilidade de nossos próprios males, falhas, incompreensões, escuridão e o nosso conhecimento parcial, deveria operar em nós uma opinião caridosa para com as pobres criaturas que, encontrando-se em erro, assim estão com os corações sinceros e retos, com postura semelhante aos que estão com a verdade. (9) Em 1648 Owen pregou um extenso sermão no Parlamento Britânico, na Câmara dos Comuns, intitulado “Sobre Tolerância”, no qual defendeu, mais uma vez a demonstração do amor cristão e a não-intervenção dos poderes governamentais nas diferenças de opiniões eclesiásticas. (10) A Tolerância de Cristo O grande exemplo de tolerância, nos é fornecido pelo próprio Cristo. Em Mateus 20.20-28 lemos sobre o incidente onde Jesus recebe o pedido da mulher de Zebedeu, para que seus filhos (Tiago e João) tivessem lugar de proeminência no reino que Ele havia acabado de anunciar. Possivelmente possuída de um conceito errado sobre a natureza desse reino e pleiteando cargos de importância política, ela funda a instituição do “lobby governamental”. Com essa atitude, ela demonstra uma ampla falta de percepção espiritual, mas essa falha não era só dela. Seus filhos parecem apoiá-la e participar ativamente do pedido. Em sua resposta, Jesus diz que eles estão “por fora”, ou seja, “não sabem o que pedem”. Depois de estarem por tanto tempo tão próximos a Jesus, ouvindo os Seus ensinamentos, podemos até pensar, como é que eles erraram o alvo dessa maneira? Como é possível que não se aperceberam da natureza espiritual do reino e da postura de servos que deveriam ter? Mas a situação é mais grave ainda, porque os outros dez, passaram a demonstrar igual atitude de inveja e ira, com relação àquele pedido inoportuno. Se eles estivessem imbuídos da atitude de servos, conscientes de que deveriam, cada um, “considerar os outros maiores do que a si mesmo”, certamente teriam dito a Jesus – “realmente, eles parecem ser bem qualificados para terem um lugar de importância no reino! Não nos importamos se eles forem nomeados”. Mas não, eles estavam, com certeza, pensando: “Por que eles, e não nós?” Repentinamente, depois de tantos ensinamentos, Jesus viu todos os Seus auxiliares imediatos, os homens com os quais deixaria a Sua igreja, envolvidos em uma disputa rasteira sobre cargos e influência pessoal… Como Ele deve ter se entristecido. Qual foi sua reação? Registra o texto que Jesus, pacientemente, chamou a todos ao lado e passou a ensinar-lhes, mais uma vez, a natureza do Seu reinado espiritual, a verdadeira missão que lhes seria confiada. Que demonstração de amor e de tolerância com a falta de entendimento daqueles irmãos. Que exemplo de paciência, para nós, e que incentivo para que sejamos mais tolerantes e caridosos com os nossos irmãos. Que Deus nos livre do pecado da intolerância. (6) Heber Carlos de Campos, O Pluralismo do Pós-Modernismo, Fides Reformata (São Paulo: Seminário Presbiteriano José Manoel da Conceição, 1997), 2/1, 5-28. (7) Campos, palestra realizada no VI Simpósio do Projeto Os Puritanos, Águas de Lindóia, São Paulo, 6-13 de junho de 1997. (8) John Owen, Sermão: “A Prática do Governo da Igreja” em The Works of John Owen (Londres: The Banner of Truth Trust, 1967) Vol. VIII, 60. (9) Owen, Works, VIII, 61. (10) Owen, “Of Toleration”, Works, VIII, 163-206. |
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