quinta-feira, 5 de junho de 2014

O Estado não tem Autoridade Paterna

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Por Lucas G. Freire


Uma das grandes evoluções na história do direito foi a diferenciação dos tipos de autoridade e a ‘especialização’, por assim dizer, de cada tipo em uma esfera diferente. Embora essa diferenciação tenha raramente saído do papel, foi de fato uma grande conquista histórica no pensamento ocidental. Na medida em que demonstra uma aproximação ao princípio bíblico da autoridade limitada, essa diferenciação deve ser bem vista pelo cristão reformado.

Para ilustrar o que eu quero dizer com isso, basta olhar para as prerrogativas do pater familias, o pai de família, no lar da antiguidade romana. Podia ser um patriarca neste sentido somente um homem que fosse cidadão pleno em Roma. A liderança do pai de família era inquestionável e abrangia (ao menos em potencial) todos os aspectos da vida.

A vida e a morte de cada membro do domicílio (em alguns casos, incluindo a esposa) estavam ‘sob a mão’ do pai de família. Os filhos e empregados daquela casa deveriam se sujeitar à liderança patriarcal com devoção e dedicação. Se quisesse, o patriarca tinha até mesmo o direito vender seus filhos para serem escravos. E pior: tinha o dever de matar seu bebê que nascesse deficiente.

Hoje em dia não é assim. Ao menos nos países influenciados por uma cultura que foi cristã no passado. Uma cultura que, ao invés de ‘batizar’ esse patriarcalismo exacerbado, fez uma reflexão crítica e usou o próprio princípio dos grandes pensadores da antiguidade para defender, contra os antigos, a diferenciação das esferas de autoridade. Por consequência, essa cultura, apesar de manter a autoridade dos pais dentro casa, foi tirando dela qualquer excesso ilegítimo.

O cristão confessa que o Estado tem o poder da espada para combater a agressão criminosa e violenta. O cristão não confessa que o pai de família tem a autoridade de coagir dessa forma. Nesse sentido, o cristão, mesmo ao defender os chamados ‘valores tradicionais de família’ jamais defenderá o direito do pai de escravizar seus filhos, violentar a esposa e agredir qualquer pessoa que esteja sob sua proteção paternal. O pai cristão não tem poder de vida e morte sobre os membros de seu domicílio. Ponto.

Ao mesmo tempo, o cristão confessa sua fé na bíblia como relevante para os dias de hoje. Uma das prerrogativas que a bíblia concede aos pais como autoridades no lar é a da punição corporal. A bíblia não entra em detalhe, mas uma coisa é bem clara: palmada é uma coisa. Violência doméstica é outra. O pai que não sabe a diferença entre os dois deve ser castigado não somente pela autoridade eclesiástica (que, com as chaves do céu, pode chegar a ponto de excomungar o pecador que não se arrepende), mas também pela autoridade civil (que, com o poder da espada, tem a prerrogativa de combater crimes violentos como os desse tipo).

Se palmada é uma coisa e violência doméstica é outra, então a discussão muda de nível. Quando a dita ‘Lei da Palmada‘ é discutida, ela coloca “castigo corporal” em paralelo com “tratamento cruel e degradante”. O legislador que faz isso apaga a distinção milenar e praticamente universal entre palmada e violência doméstica.

Lei da Palmada é uma falsa denúncia de concentração de autoridade doméstica nos pais. Já existem leis contra a agressão. Leis que, por sinal, têm sido mal aplicadas, a julgar pelo número de casos de violência doméstica que ainda ocorrem. O que a Lei da Palmada quer mudar, na verdade, diz respeito à ‘palmada’ e não à violência doméstica em si. Em outras palavras, a Lei da Palmada quer regulamentar o método de educar os filhos. O Estado quer aprovar um método mais ‘progressivo’ e rejeitar o método mais ‘tradicional.’

Repare: a palmada tem eficácia bastante limitada dependendo da situação. Qualquer psicólogo irá atestar que, a partir de uma certa idade, a criança é capaz de ser persuadida e de entender um comando verbal. É só numa janela limitada de tempo que a palmada é eficaz para educar. Nessa janela, a criança ainda é pequena e a força requerida para o efeito desejado é mínima se comparada à força exercida no fenômeno da violência doméstica. Não há como confundir as duas coisas.

Por esse e outros motivos é necessário manter a distinção entre palmada e violência doméstica. Ao procurar regulamentar a palmada, o Estado brasileiro não tem buscado limitar a autoridade dos pais à esfera do lar, e sim inflar a autoridade estatal para ocupar a esfera da criação de filhos. Isso não surpreende. A história do sistema educacional público e da legislação de ‘moral e bons costumes’ está aí para comprovar que o Estado de fato quer ser pai, mãe e babá de todos.

O caso da Lei da Palmada nos alerta para algumas coisas importantes. Primeiro, é essencial manter o princípio da pluralidade e da diferenciação das esferas de autoridade. A autoridade paterna ou materna não é total. A autoridade estatal também não. Essas duas autoridades não se confundem. As duas esferas não se confundem. Elas só se confundem na autoridade divina. Somente Deus é ao mesmo tempo Pai e Juiz, Cabeça e Rei. Ao vermos legislação desse tipo, é importante ver qual distorção tem ocorrido, mesmo que a lei alegadamente defenda um princípio de autoridade limitada.

Segundo, onde houver violência e agressão existe espaço para o agente que faz uso legítimo da punição justa à violência e agressão. No nosso mundo contemporâneo, temos esse agente chamado ‘Estado’ que, em tese, deveria se limitar a cumprir esse papel mas, na verdade tem sido ele mesmo agressor ilegítimo. O caso da Lei da Palmada ilustra mais uma vez essa violação dos limites da autoridade civil. O cristão reformado não se engane. Parafraseando Sto. Agostinho: o Estado sem justiça é praticamente uma máfia de salteadores.

Por fim, existe também o perigo de estarmos defendendo um princípio aqui e contrariando o mesmo princípio em outro assunto. Você não quer que o Estado decida como você deve educar seu filho, e você está disposto a aceitar que o Estado tem a prerrogativa de punir a agressão quando ela ocorrer. Pois bem. Quando o assunto da ‘moral e bons costumes’ aparecer, pense duas vezes antes de defender o gigantismo estatal para impor de cima para baixo os ‘valores tradicionais’ que você deseja que se espalhem no mundo à sua volta.

O cristão reformado crê no poder transformador do evangelho. Esse poder o Estado não tem. Quer usar a política para ver uma cultura mais cristã? Um bom começo é parar de defender o Estado babá e começar a defender a noção de que cada um deve agir de forma responsável. E não se esqueça de confiar mais no poder transformador do evangelho. Fazendo assim, você estará avançando um passo na direção de praticar um princípio que mal tem saído do papel e já tem dado muito bom fruto na nossa civilização: o princípio da autoridade limitada.

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Fonte: Política Reformada

Leia também: A Lei da Palmada e o desafio cristão
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