É preciso buscar uma explanação da teoria calviniana de resistência ao Estado. O objetivo é compreender a teoria calviniana da resistência à autoridade por meio de representantes denominados magistrados populares ou inferiores.
Uma nova onda de discussões doutrinárias a respeito do direito de resistência ao tirano veio logo depois da Reforma. Calvino, diferentemente de Lutero, permite a resistência por parte dos órgãos do Estado aos quais foram estabelecidos limites.404
Um dos problemas de interpretar o pensamento de Calvino nesta questão política, surge ao relacionar suas diversas afirmações e escritos que exigem obediência ao Estado e a Lei, e ao mesmo tempo em que a resistência ao governo tirano é para o cristão, somente um direito, mas também um dever de resistir. Cabe aqui a pergunta: Calvino estava seguro do que, de fato, queria dizer? Calvino ensinou a obediência ou a desobediência civil? Vamos, pois, tentar responder a estas questões.
Calvino ao orientar sujeição, obediência, respeito e honra aos principados, se referiu aos magistrados que fazem jus aos títulos a eles conferidos. Mas alertou para a existência de príncipes indolentes, gananciosos, injustos, tiranos, assassinos e criminosos.405 Ainda assim, eles devem ser considerados com as mesmas honrarias e reverencias que seriam concedidas a um excelente rei. Calvino embasou sua tese com uma enxurrada de textos bíblicos.
Desta forma, mesmo que injusta, imoral ou anti-religiosa, a autoridade civil deve ser respeitada em sua função legítima. Calvino acreditava que Deus pode se servir de magistrados indignos e injustos para, soberana e providencialmente, cumprir a sua boa vontade na história.406 No entanto, bem à frente diz: “mas existe uma exceção a essa obediência (…)”.407
Qual exceção?
Se eles nos ordenarem qualquer coisa contrária a vontade de Deus, nada deve significar para nós […] e neste caso devemos ignorar todas essa dignidade que os magistrados possuem.
E citando o exemplo da desobediência de Daniel, preconizou:
Estamos submetidos aqueles que foram colocados sobre nós, mas apenas por ele. 408
Aqui o pensamento de Calvino parece ambíguo. Ao mesmo tempo em que preconizou sujeição às autoridades, não importa como tenham chegado a seus cargos, ele também sugeriu uma teoria de resistência. É exatamente por esta ambiguidade que Skinner409 o chama de ‘mestre da ambiguidade’, pois, embora não haja dúvidas de que Calvino endossou uma teoria da não-resistência, na prática introduz várias exceções em sua argumentação.
Calvino assim asseverou:
Ao cidadão comum não assiste o direito de atentar contra a majestade dos reis; os magistrados, porém, que constituídos são para defender os direitos do povo, podem e devem resistir aos abusos dos soberanos.410
Para Calvino a resistência ao governo injusto é, pois, para o cristão, não apenas um direito, mas um dever.
[…] não os proíbo de agirem conforme seu dever de resistir à licenciosidade e a ira dos reis; pelo contrário, se forem coniventes com a violência sem limites contra o povo infeliz, eu afirmaria que tal omissão se constitui numa grave traição. Porque maliciosamente como traidores de seu país estão a perder a liberdade de seu povo, para cuja defesa e amparo devem saber que têm sido colocados por ordem divina como tutores e defensores.411
Com essa exceção, teria o pensamento calviniano se revestido de um potencial revolucionário? Ainda há outras questões. De fato, em Calvino, esse destaque para o verdadeiro papel dos magistrados do povo era um pormenor ou uma exceção em seus escritos. Poderia esse pormenor constituir-se no viés pelo qual o potencial revolucionário calviniano influenciou outros calvinistas?
Como uma hipótese que se formula para responder a essas questões, a resposta que se busca obter aponta nessa direção. Pois, com base em seus escritos e na repercussão que tiveram esse pormenor e esse destaque dado por Calvino ao papel dos magistrados do povo foi inovador. E essa foi sua contribuição para o desenvolvimento da teoria da resistência. Embora um mero detalhe, até mesmo uma pequena exceção, nisso encontrava-se a colaboração de Calvino para o desenvolvimento de uma teoria de resistência à autoridade iníqua ou ao tirano.
Foi também a partir da premissa da soberania de Deus que Calvino chegou ao seu ensino sobre a desobediência civil. Se é por causa de sua origem divina, que as autoridades civis têm o direito à obediência de todos os homens em geral e dos cristãos em particular, também é por ser de origem divina que, para Calvino, o poder político é limitado em sua função e em seu fim.
Comentando Romanos 13.4, ele afirmou:
Os magistrados podem aprender disto a natureza de sua vocação. A sua administração não deve ser feita em função de si próprios, mas visando ao bem público. Nem têm eles poderes ilimitados, senão que sua autoridade se restringe ao bem-estar de seus súditos. Em resumo são responsáveis diante de Deus e dos homens pelo exercício de sua magistratura. Uma vez que foram escolhidos e delegados por Deus mesmo, é diante deste que são responsáveis. 412
Desta forma, somente Deus possui autoridade auto-gerada. A autoridade dos magistrados é delegada por Deus, a quem devem prestar contas. Por isto, a obediência devida às autoridades civis é limitada, sobretudo, pela obediência que o homem deve a Deus.
Calvino encerrou as Institutas com estas palavras:
Mas, na obediência que temos ensinado ser devida aos superiores, deve haver sempre uma exceção, ou antes, uma regra que se deve observar acima de todas as coisas: é que tal obediência não nos afaste da obediência Àquele sob cuja vontade é razoável que se contenham todos os editos dos reis, e que à sua ordenação cedam todos os mandamentos, e que à sua majestade humilhada seja e rebaixada toda a sua altaneira. E, para dizer a verdade, que perversidade seria, a fim de contentar os homens, provocar a indignação daquele por amor de quem obedecemos aos homens? Devemos estar sujeitos aos homens que têm preeminência sobre nós, não, entretanto, de outra forma senão em Deus. Se, porventura, os homens ordenam algo que contraria a Deus, de nenhum valor nos deve isto ser. 413
Para Calvino, o dever de submissão às autoridades civis não é ilimitado. Contra os governos injustos é preciso agir pelos meios legais que estão na mão do povo. Por isso, ele entendia que é necessário dar ao povo mecanismos legais para a derrubada de seu governo. Assim a desobediência civil ao governo injusto, naquilo que ele tem de injusto. A obediência às ordens injustas da autoridade civil, contrárias à vontade de Deus, é um crime contra o próprio Deus. Mas a desobediência civil não se justifica senão àquela ordem injusta em particular, naquele ponto específico que o governo tem de injusto, e não ao governo como um todo. O governo injusto retém sua autoridade em tudo que exige de seus governados e que não contrarie sua obediência a Deus.
Calvino ensinou também que Deus pode, ocasionalmente, suscitar “salvadores providenciais”, de dentro ou de fora da própria nação, quando a desordem alimentada pelo governo é maior que a injustiça da revolução. Neste caso, a revolução é, de maneira excepcional, justificada. Obviamente, isto é, para Calvino, uma exceção e não uma regra que justifique toda e qualquer revolução.
Portanto, o que se pode concluir é que a tese de Calvino era a das obrigações e responsabilidades mútuas, divinamente ordenadas entre magistrados e cidadãos.
Nesta questão, Calvino se posicionou contra um duplo perigo: o da rebelião do povo contra o governo e o do abuso do poder do governo contra o povo. Ele rejeitou ambos os extremos. Para ele a falta de governo conduziria à anarquia e ao caos, e o absolutismo monárquico se oporia à verdadeira religião, elevando-se acima do trono do Deus soberano. Assim no pensamento de Calvino o autoritarismo é condenável, ao mesmo tempo em que o princípio de autoridade é desejável.
A doutrina política de Calvino, calcada no conceito teológico da soberania divina, preconizou que as sociedades calvinistas não mais deveriam se submeter a reis e autoridades tirânicas, fossem elas políticas, religiosas ou de qualquer espécie.
Ao cidadão comum não assiste o direito de atentar contra a majestade dos reis; os magistrados, porém, que constituídos são para defender os direitos do povo, podem e devem resistir aos abusos dos soberanos.414
Geralmente não se dá atenção à declaração de ‘grande alcance’415 que Calvino fez no final de suas Institutas. No entanto, é inegável desenvolvimento das teorias de resistência e da própria concepção da esfera política que encontramos nos discípulos de Calvino se deve a cosmovisão subjacente à sua teologia, cujas implicações o próprio reformador talvez não tivesse consciência, mas que no campo da política, viabilizou o envolvimento maciço dos calvinistas com a resistência política, e a reorganização do Estado. 416
Na França, por exemplo, temos uma obra bastante popular entre os huguenotes perseguidos, atribuída a Theodoro de Beza (1519-1605), discípulo e sucessor de Calvino em Genebra, que pressupõe responder a questões como: Até que limite será legítimo resistir ao príncipe que oprime ou destrói o Estado, e a quem caberá a resistência? 417
Parte do Capítulo 3- A TEOLOGIA POLÍTICA (3.4 A TEORIA DA RESISTÊNCIA AO ESTADO), da dissertação A TEOLOGIA POLÍTICA DE JOÃO CALVINO (1509-1564) NA INSTITUTAS DA RELIGIÃO CRISTÃ (1536), de EBER DA CUNHA MENDES
Notas de Referências
401 REID, op. cit., p. 57-58, nota 38.
402 CALVINO, Juan. Institución de la religión cristiana. 2v. Traducida y publicada por Cipriano de Valera en 1597 por Luiz de Usoz y Rio en 1858. Nueva edicion revisada en 1967. Paises Bajos: Fundacion Editorial de Literatura Reformada, 1967, p. 847.
403 Ibidem, p. 847.
404 HERBERT, Marcuse. Estado Democrático e Estado Autoritário. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1969, p. 168.
405 CALVINO, 1995, p. 124,125, nota 335.
406 Ibidem, p. 125.
407 Ibidem, p. 126.
408 Ibidem, p. 137.
409 Skinner levanta a seguinte questão: na versão original de 1536 das Institutas esta posição é mais dramática e estratégica que reapareceu inalterada nas outras edições subseqüentes da obra. No entanto, na edição definitiva de 1559, Calvino apresenta mudanças de idéia. Ainda assim, até o final de sua vida, a postura política de Calvino permaneceu mais coerente com o ensino Paulino da não-resistência.
- 468,469, nota 81.
410 CALVINO, IV v., op. cit., p. 483, nota 60.
411 CALVINO, 2v., p. 1193, nota 402.
412 CALVINO, op. cit., nota 171.
413 CALVINO, 2v, op. cit., p. 1193, nota 402.
414 CALVINO, IV v., op. cit., p. 483, nota 60.
415 HERBERT, op. cit., p. 168, nota 404. Para o autor, a teoria de resistência é o calvinismo. No capítulo 5 o autor aborda sobre os limites da desobediência justificável.
416 Para Skinner, temos boas razões para considerar a análise de Calvino como uma importante contribuição para a construção das idéias políticas em meados do século XVI. SKINNER, op. cit., p. 507, nota 81.
417 CAVALCANTI, op. cit., p. 119, nota 396.