A chamada “missão integral” já estava na vitrine de críticas antes e quando Paul e Raphael Freston escreveram o artigo abaixo para a seção “Ética” da revista
Ultimato deste bimestre. Ela continua em debate nas redes sociais depois do texto “Tentações da Missão Integral”, de Antonio Carlos Costa, publicado em seu
perfil no Facebook no último dia 19. A ele já surgiram duas respostas:
uma de Jorge Barro e
outra de Alessandro Rocha.
Para ajudar no debate sadio, disponibilizamos a todos os leitores o artigo na íntegra de Paul e Raphael Freston:
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A tão famigerada “missão integral”
A chamada missão integral tem recebido tantas, e tão fortes, críticas que muitos evangélicos que antes se identificavam com ela começam a se perguntar se não deveriam abandoná-la. E outros que não a conheciam ficam se perguntando como os seus (supostos?) irmãos na fé poderiam ter sido enganados por uma teologia tão claramente nociva.
Claro que “missão integral” é só um nome. Usemos outro nome, se for necessário, mas não abandonemos o que a missão integral, a nosso ver, representa.
O intuito de somar
Longe de ser a negação do evangelicalismo tradicional, muito menos a adoção do marxismo, a missão integral nasce na América Latina nos anos 70 com o intuito de “somar” ênfases que costumavam ser encontradas em campos opostos, rejeitando a necessidade de optar entre elas. Nem o unilateralismo verticalista, nem o unilateralismo horizontalista. A sã doutrina e a piedade são importantes, como também o são o compromisso social e a contextualização. Mas não basta uma mera justaposição artificial de ênfases distintas. Tem de haver uma teologia capaz de integrar essas ênfases num todo harmonioso. Proeminentes nesse labor teológico eram pessoas como René Padilla, Samuel Escobar, Pedro Arana e outros -- e não Moltmann, Küng, Boff etc, como alguns irmãos críticos da missão integral têm veiculado.
O resgate histórico
A missão integral não nasce do nada. Há muitos precursores. Por falta de espaço, mencionaremos apenas os mais longínquos, em termos cristãos, os autores patrísticos. Também por falta de espaço, fiquemos com apenas um deles, Gregório Nazianzeno, o único agraciado com a alcunha de “teólogo”, por sua contribuição à compreensão da Trindade. O verticalismo ele tinha! E o horizontalismo? Eis três frases de Gregório (ênfase acrescentada):
“É necessário que todos que são seres humanos “demonstrem uma porção de bondade aos outros seres humanos, qualquer que seja a sua necessidade”: viuvez, orfandade, exílio, crueldade de senhores, brutalidade de juízes, desumanidade de fiscais de impostos, violência de bandidos, avareza de ladrões, confisco, naufrágio. “Todos […] esperam pelas nossas mãos”, assim como nós esperamos pelas mãos de Deus.”
“Preste atenção na “igualdade original”, e não na “diferença posterior”. Não na lei dos poderosos, mas na lei do Criador. Tanto quanto puder, ajude a natureza; “honre a liberdade original.””
“Já que somos seres humanos, em primeiro lugar demos o fruto da nossa compaixão aos seres humanos […] Em seguida, “imitemos a primeira e suprema lei de Deus”, que envia sua chuva tanto aos justos como injustos […] que distribui por toda a terra seus rios e […] bosques para todos os seres vivos […] E “suas dádivas não estão sob o domínio de ninguém”, nem são regidas por leis, nem demarcadas por fronteiras, mas “todas são possuídas em comum […] sustentando a dignidade da nossa natureza.””
A missão integral e o kuyperianismo são incompatíveis?
Um de nós foi talvez a primeira pessoa a escrever sobre o grande neocalvinista holandês Abraham Kuyper em português -- nos anos 80. Globalmente, o seu legado é reivindicado por pessoas de variadas posições políticas. Afinal, Kuyper escreveu:
“Lutar contra um mal social isolado ou resgatar os indivíduos, embora excelente, é muito diferente de agarrar o problema socioeconômico em si com o sagrado entusiasmo da fé.”
“A igreja foi organizada não somente para buscar o bem-estar eterno de seus seguidores, mas também para remover as injustiças sociais [...] Quando ricos e pobres se opõem uns aos outros, [Jesus] nunca fica do lado dos ricos, mas sempre do lado dos pobres [...] Ele se colocava invariavelmente contra os poderosos e aqueles que viviam luxuosamente, e a favor dos que sofriam e eram oprimidos.”
Ser “conservador” na fé e “progressista” na vida social é contraditório?
Alega-se que a missão integral é inconsistente, porque quem é conservador na teologia tem que ser conservador nas suas posições sociopolíticas também. Faltaria “integralidade” à missão “integral”.
Essa crítica esquece que os termos “conservador” em teologia e “progressista” -- aliás, um termo de que não gostamos, por várias razões -- em posicionamentos sociais apenas refletem o uso convencional nos debates teológico e social. Os termos servem apenas como códigos convencionais para mapear posições nesses dois debates. Mas os nomes não importam. Para os adeptos da missão integral, há uma integralidade plena entre essas duas posições; uma decorre da outra. Há uma coerência entre ser o que se convencionou chamar de “conservador” nos debates teológicos, e o que se convencionou chamar de “progressista” nos debates sociopolíticos.
A missão integral possibilita a “liberdade dos filhos da casa”
Para nós, a missão integral representa também um “espírito”, um tom, uma maneira de conduzir os debates dentro da igreja e de recomendar a fé para a sociedade. Por isso, a missão integral não deve usar o mesmo tom de que lançam mão alguns de seus críticos, nem devolver-lhes o mesmo tipo de alegações e acusações.
Abreviando as palavras do grande filósofo Julián Marías, falando da tragédia da teologia católica de sua época:
Só em liberdade, sentindo-se “em casa”, instalado no amor que “lança fora o temor” (1Jo 4.18), é possível a “vida” cristã. O espírito inquisitorial, a obsessão com o erro e o projeto ilusório de fazer ciência sem equivocar-se paralisaram a teologia e, ainda mais grave, a “vida”. Resultou difícil “viver” livremente o cristianismo, na segura instalação amorosa dos filhos da casa. Os cristãos têm vivido “em casa alheia”, sem atrever-se a respirar, obcecados com o temor das censuras. Claro, liberdade não quer dizer arbitrariedade, ausência de conteúdos e normas. Ao contrário: A realidade tem uma estrutura rigorosa, e temos que nos apoiar nessa estrutura para sermos livres. Mas o cristianismo não é algo que se “aplica” como um código jurídico, mas algo que se vive como a língua. Esta tem uma estrutura, uma gramática, mas quem fala uma língua usa-a “livre e criativamente”.
Para nós, a missão integral é uma maneira de possibilitar a “liberdade dos filhos da casa”, destemida no pensamento e no viver, no fazer ciência sem medo de equivocar-se, mas respeitando sempre a estrutura da realidade e da revelação, usando criativamente a gramática da fé.
A missão integral inclui um biblicismo integral
Em artigo anterior nesta coluna (março/abril de 2014), dissemos que o cristianismo evangélico é caracterizado pela vontade de ser radicalmente “bíblico”; mas que ser bíblico é um “desafio” permanente, e nunca uma posse nossa. E é um desafio com “muitas dimensões”, as quais fazem parte da integralidade da missão integral. Repetimos aqui algumas dessas dimensões:
Ser bíblico significa:
- Reconhecer a amplitude da Bíblia
A Bíblia é como um país muito grande, que não se pode conhecer numa visita rápida de turista.
- Enamorar-se da, e situar-se na, história bíblica
Como diz C. S. Lewis: “Para ser realmente cristãos, temos que não apenas concordar com o fato histórico, mas também abraçar o mito com o poder da imaginação”. O cristianismo tem a melhor história do mundo, de um Deus que entra pessoalmente no seu mundo, vive como pessoa pobre num país oprimido, é incompreendido e rejeitado, sofre e morre de forma indigna, e vence a morte pela ressurreição.
- Imergir-se na cultura do reino de Deus
Significa aprender a “cultura” do reino de Deus, adaptar-se às prioridades e valores deste. Isso envolve desaprender tanto quanto aprender, pois Jesus inverte os valores do mundo e nos oferece um mundo impregnado de outros valores.
- Ler a Bíblia em comunhão com a igreja de todos os tempos
Não podemos ser bíblicos sozinhos. Temos de ler a Bíblia na comunhão dos santos, que é local, mas também é geográfica e historicamente dispersa. Devemos ler a Bíblia por meio dos melhores intérpretes, mesmo que estejam do outro lado do mundo, ou tenham morrido há muitos séculos.
- Entender a liberdade evangélica
Se ser evangélico é a vontade de ser bíblico, isso nos dá uma nova liberdade. A liberdade de não ter de defender determinadas tradições e execrar outras. A liberdade de examinar todas as tradições, avaliando-as pelos critérios da revelação e da relevância. A liberdade de aplaudir tudo o que for bíblico, onde quer que se encontre, inclusive entre não cristãos.
- Ser calibrado nas ênfases
Devemos ser bíblicos também no peso que cada assunto tem na Bíblia. Quem é bíblico sabe dimensionar as questões. Um pregador que fala 50 % do tempo sobre um assunto que representa 0,05 % da Bíblia não está sendo bíblico.
- Ser persistente
Nas palavras de Efrém, o Sírio (século 4º): No estudo de um texto bíblico, “quem encontrar um dos seus tesouros não deve pensar que ali existe somente aquilo que encontrou, mas antes, que ele foi capaz de encontrar somente aquilo. Dê graças pelo que você conseguiu tirar, e lembre-se que o que ficou também faz parte da sua herança [...] Procure recebê-lo em outro momento, não desista”.
- Reconhecer a diversidade do corpo de Cristo
Primeiro, diversidade de níveis em que a Bíblia funciona: psicológico, emocional, relacional, social, político, intelectual etc. Segundo, a diversidade entre as pessoas que leem a Bíblia: de diversos temperamentos, diversos níveis educacionais, diversas situações sociais, diversos momentos da vida. E, terceiro, as diversas perspectivas contidas na própria Bíblia. Como diz novamente Efrém: “[...] Muitas são as perspectivas de sua Palavra, como também muitas são as perspectivas daqueles que a estudam. Deus escondeu na sua Palavra todo tipo de tesouro, para que cada um de nós, toda vez que meditamos, seja enriquecido”.
• Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático de religião e política em contexto global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá.
• Raphael Freston é mestrando em sociologia na Universidade de São Paulo e foi membro da diretoria nacional da ABUB.
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