quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Sempre Reformando ou Sempre Mudando?



Hoje se comemora no mundo todo os 493 anos da Reforma Protestante - mas, o que significa seu lema "igreja reformada, sempre se reformando"?

Há vários lemas que os reformados gostam de usar para identificar e resumir as marcas da Reforma: Sola Scriptura, Sola Fides, Solus Christus, Sola Gratia, Soli Deo Gloria e o moto Ecclesia Reformata et Semper Reformanda Est. Mas, como tudo na vida, eles têm sido entendidos e usados de maneira diferente pelos que se consideram herdeiros da Reforma.

É o caso especialmente do “Ecclesia Reformata et Semper Reformanda Est”, de autoria do reformado holandês Gisbertus Voetius (1589-1676), à época do Sínodo de Dort (1618-1619). Este slogan, que pode ser traduzido como “A Igreja é reformada e está sempre se reformando”, tem sido interpretado como se Voetius estivesse dizendo que uma característica da Igreja Reformada é que ela está sempre mudando. Contudo, é difícil imaginar que Voetius, calvinista estrito, que participou em Dordrecht da disputa contra os discípulos de Armínio, tivesse usado este lema para encorajar a abertura da Igreja para novas idéias de qualquer tipo – seria o mesmo que dizer que os seguidores de Armínio estavam certos e que a Igreja Reformada deveria se abrir para uma reforma de natureza arminiana na sua soteriologia! Voetius estava tentando qualificar o argumento deles de que a Igreja deveria estar aberta para receber novas luzes sobre pontos que pareciam imutáveis. Voetius não negou o princípio da reforma constante, mas destacou que o alvo era sempre retornar às Escrituras, que tinham sido a base da Reforma. E na compreensão dele e do Sínodo de Dort, as idéias dos seguidores de Armínio certamente não representariam um retorno às Escrituras.


É importante notar que o aforismo de Voetius não foi “ecclesia reformans”, que significaria que a Igreja se reforma a si mesma, mas “ecclesia reformanda”, que está na voz passiva e indica que o agente da reforma não é ela própria, mas sim o Espírito de Deus. E este certamente promove o crescimento e a compreensão das Escrituras a cada nova geração, sem com isso admitir que a verdade muda.

As palavras de Voetius vêm sendo reinterpretadas ao longo dos anos e usadas de formas que nunca passaram pela mente do teólogo calvinista holandês. A Igreja Católica, no Concílio Vaticano II, tomou para si a parte final do aforismo de Voetius, “reformanda est”, após reinterpretá-lo para justificar as mudanças que introduziu no catolicismo tradicional. Os seguidores de EllenWhite, profetisa do Adventismo, usam-no para justificar sua reivindicação de serem uma reforma da Reforma. E mais recentemente, o lema ressoa distorcido, mais uma vez. Uma ala da própria Reforma protestante tem usado o moto para justificar mudanças e inovações na Igreja Reformada que certamente não estão de acordo com as Escrituras.

Só para ilustrar, “Semper Reformanda” é o nome de uma organização religiosa nos Estados Unidos que defende a inclusão de gays e lésbicas no ministério pastoral e o casamento homossexual. O grupo adotou este lema porque entendeu que ele expressa o princípiomater da Reforma, que as igrejas reformadas devem mudar a cada geração, para se contextualizar às mudanças da sociedade, da cultura e das novas compreensões.

Essa, na verdade, sempre foi o entendimento daqueles que acham que o mais importante na Reforma Protestante não foi ter voltado no passado para resgatar as antigas doutrinas da graça, mas de ter ido em frente, promovendo uma mudança no status quo (não estou dizendo que todos os que pensam assim são a favor da agenda GLT). A idéia subjacente é que o novo sempre é melhor. Querem o reformanda mas não o Sola Scriptura. Torcem Voetius.

Na verdade, reformados não podem ser contra a continuidade da Reforma, pois sabem que a Igreja é composta de pecadores. Sabem também que a cada geração novos desafios se erguem contra ela. Todavia, só podem aceitar reformas e mudanças que nos tragam mais para perto da Palavra de Deus. Acho que o ponto central aqui é que os reformados crêem que a verdade não muda e que as reformas que a Igreja deve buscar almejam sempre um melhor entendimento da verdade e uma aplicação relevante dela para seus dias. Há quem acredite que a verdade muda, e quando falam em ecclesia reformanda, estão pensando em mudanças inclusive das antigas verdades professadas pelos reformadores. Para eles, nenhuma delas é intocável. Todas estão sujeitas a reinterpretações tão radicais a ponto de se tornarem totalmente outras. É aqui que está a principal diferença entre os reformados e os reformandos ou reformistas.

O Tempora, O Mores


sábado, 25 de outubro de 2014

Uma breve História do Movimento Reformado

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Neste vídeo o Rev. Dorisvan Cunha faz uma breve palestra a respeito da História do Movimento Reformado, ou Calvinista. Ao contrário do que alguns pensam, o movimento não começou com João Calvino. Na realidade, começou com Zuínglio, em Zurique, na Suíça. Assista:

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Fonte: Guerra pela Verdade 
Divulgação: Bereianos

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Igrejas que aceitam o casamento gay pertencem a Satanás, alerta pastor


John McArthur ataca liberalismo teológico que toma conta das igrejas
por Jarbas Aragão

      O influente pastor John MacArthur já está acostumado a dividir opiniões com suas declarações. Ele recentemente se envolveu em uma grande polêmica com os pentecostais ao afirmar que seu culto não agradava a Deus.
       Na entrevista ao site The Blaze, MacArthur defende que “a geração mais jovem absorveu a corrupção e a falta de moral ética através da mídia e indústria de entretenimento”. Como consequência, a ira de Deus virá sobre os EUA como resultado de sua liberalização, pois essa á promessa do livro de Romanos.
      Não tem dúvidas que o cristianismo está se tornando cada vez mais uma questão meramente cultural, pois a maior parte das pessoas que se denominam cristãs não tem compromisso com uma igreja local e com isso os fundamentos da fé cristã estão “se diluindo” na sociedade.
Isso pode ser visto, segundo ele, nas denominações liberais, que apoiam o casamento gay. Para MacArthur, tal posicionamento revela que elas não estão preocupadas em ser fiéis à Bíblia. E dispara: “são as igrejas apóstatas e pertencem a Satanás”.
      A tolerância ao casamento de pessoas do mesmo sexo está dividindo denominações históricas como a Igreja Presbiteriana (PCUSA) e a Metodista. Na entrevista que deu ao site, MacArthur, pastor da megaigreja Comunidade da Graça em Sun Valley, Califórnia, e autor de dezenas de livros, não poupou críticas.
      Lembrando que as denominações mais antigas fundaram os primeiros seminários do país, mas apesar de influentes, perderam seu propósito:  “Você pode visitar cada um desses seminários e verá que por um século eles têm negado a autoridade bíblica… [hoje] não têm mais relação nenhuma com as Escrituras”.
       Conservador, MacArthur já defendeu questões controversas no campo da política. Foi alvo de muitas críticas quando apoiou a invasão do Iraque e Afeganistão pelas tropas americanas durante o governo Bush.  Durante o tempo que está na Casa Branca, Barack Obama tem dado forte apoio a questões como o casamento gay e o direito ao aborto. Essas questões estão afetando a própria percepção dos cristãos do país sobre o assunto.
      Aqueles que apoiam a homossexualidade tem se tornado “totalmente irracionais… A condenação de Deus para a pratica da homossexualidade é muito clara e a sua oposição em todos os tempos”.  O pastor desafiou os demais pastores que se posicionem claramente contra a penetração nas igrejas dessa mentalidade de ampla aceitação do que a Bíblia condena claramente.
Em seu artigo “O plano de Deus para a agenda gay”, afirmou que a verdadeira igreja de Cristo não deveria se preocupar em ser politicamente correta: “Não se deixe intimidar pelos defensores dos homossexuais e seu raciocínio fútil, os argumentos são infundados”. E disparou: “Os homossexuais e os que defendem esse pecado, estão comprometidos em transtornar a soberania de Cristo neste mundo… À medida que você interage com os homossexuais e seus simpatizantes, precisa falar da condenação bíblica”.
      Aqui no Brasil, o pastor presbiteriano brasileiro Augustus Nicodemus, fez colocações parecidas em um artigo recente. Para ele, “o campo está sendo preparado no Brasil para que em breve evangélicos passem a considerar a homossexualidade como sendo uma questão pessoal e secundária, abrindo assim a porta para ordenação de gays e lésbicas praticantes ao ministério da Palavra e para a realização de casamento gay nas igrejas evangélicas”. Com informações The Blaze.

Fonte:gospelprime


segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Jorge Müller, O Homem Que Literalmente Ousou Pôr em Prática o Evangelho

Jorge Müller nasceu em 1805, de pais que não conhe­ciam a Deus. Com a idade de dez anos, foi enviado a uma universidade, a fim de preparar-se para pregar o Evange­lho, não, porém, com o alvo de servir a Deus, mas para ter uma vida cômoda. Gastou esses primeiros anos de estudo nos mais desenfreados vícios, chegando, certa vez, a ser preso por vinte e quatro dias. Jorge, uma vez solto, esfor­çava-se nos estudos, levantando-se às quatro da manhã e estudando o dia inteiro até as dez da noite. Tudo isso, po­rém, ele fazia para alcançar uma vida descansada de pre­gador.
Aos vinte anos de idade, contudo, houve uma completa transformação na vida desse moço. Assistiu a um culto onde os crentes, de joelhos, pediam que Deus fizesse cair sua bênção sobre a reunião. Nunca se esqueceu desse cul­to, em que viu, pela primeira vez, crentes orando ajoelha­dos; ficou profundamente comovido com o ambiente espi­ritual a ponto de buscar também a presença de Deus, cos­tume esse que não abandonou durante o resto da vida.
Foi nesses dias, depois de sentir-se chamado para ser missionário, que passou dois meses hospedado no famoso orfanato de A. H. Frank. Apesar de esse fervoroso servo de Deus, o senhor Frank, ter morrido quase cem anos antes (em 1727), o seu orfanato continuava a funcionar com as mesmas regras de confiar inteiramente em Deus para todo o sustento. Mais ou menos ao mesmo tempo em que Jorge Müller hospedou-se no orfanato, um certo dentista, o se­nhor Graves, abandonou as Suas atividades que lhe davam um salário de 7.500 dólares por ano, a fim de ser missioná­rio na Pérsia, confiando só nas promessas de Deus para su­prir todo o seu sustento. Foi assim que Jorge Müller, o novo pregador, recebeu nessa visita a inspiração que o le­vou mais tarde a fundar seu orfanato sobre os mesmos princípios.
Logo depois de abandonar sua vida de vícios, para an­dar com Deus, chegou a reconhecer o erro, mais ou menos universal, de ler muito acerca da Bíblia e quase nada da Bíblia. Esse livro tornou-se a fonte de toda a sua inspira­ção e o segredo do seu maravilhoso crescimento espiritual. Ele mesmo escreveu: “O Senhor me ajudou a abandonar os comentários e a usar a simples leitura da Palavra de Deus como meditação. O resultado foi que, quando, a primeira noite, fechei a porta do meu quarto para orar e meditar sobre as Escrituras, aprendi mais em poucas horas do que antes durante alguns meses.” E acrescentou: “A maior di­ferença, porém, foi que recebi, assim, força verdadeira para a minha alma”. Antes de falecer, disse que lera a Bíblia inteira cerca de duzentas vezes; cem vezes o fez es­tando de joelhos.
Quando estava ainda no seminário, nos cultos domésti­cos de noite com os outros alunos, freqüentemente continuou orando até a meia-noite. De manhã, ao acordar, cha­mava-os de novo para a oração, às seis horas.
Certo pregador, pouco tempo antes da morte de Jorge Müller, perguntou-lhe se orava muito. A resposta foi esta: “Algumas horas todos os dias. E ainda, vivo no espírito de oração; oro enquanto ando, enquanto deitado e quando me levanto. Estou constantemente recebendo respostas. Uma vez persuadido de que certa coisa é justa, continuo a orar até a receber. Nunca deixo de orar!… Milhares de almas têm sido salvas em respostas às minhas orações… Espero encontrar dezenas de milhares delas rio Céu… O grande ponto é nunca cansar de orar antes de receber a resposta. Tenho orado 52 anos, diariamente, por dois homens, filhos dum amigo da minha mocidade. Não são ainda converti­dos, porém, espero que o venham a ser. – Como pode ser de outra forma? Há promessas inabaláveis de Deus e sobre elas eu descanso”.
Não muito antes de seu casamento, não se sentia bem com o costume de salário fixo, preferindo confiar em Deus em vez de confiar nas promessas dos irmãos. Deu sobre isso as três seguintes razões:
1) “Um salário significa uma importância designada, geralmente adquirida do aluguel dos bancos. Mas a vontade de Deus não é alugar bancos (Tiago 2.1-6)”.
2) “O preço fixo dum assento na igreja, às vezes, é pesado demais para alguns filhos de Deus e não quero colocar o menor obstáculo no caminho do progresso espiritual da igreja”.
3) “Toda a idéia de alugar os assentos e ter salário torna-se tropeço para o pregador, levando-o a trabalhar mais pelo dinheiro do que por razões espiri­tuais”.
Jorge Müller achava quase impossível ajuntar e guar­dar dinheiro para qualquer imprevisto, e não ir direto a Deus. Assim o crente confia no dinheiro em caixa, em vez de confiar em Deus.
Um mês depois de seu casamento, colocou uma caixa no salão de cultos e anunciou que podiam deitar lá as ofer­tas para o seu sustento e que, daí em diante, não pediria mais nada, nem a seus amados irmãos; porque, como ele disse, “Sem me aperceber, tenho sido levado a confiar no braço de carne, mas o melhor é ir diretamente ao Senhor”O primeiro ano findou com grande triunfo e Jorge Müller disse aos irmãos que, apesar da pouca fé ao come­çar, o Senhor tinha ricamente suprido todas as suas neces­sidades materiais e, o que foi ainda mais importante, ti­nha-lhe concedido o privilégio de ser um instrumento na sua obra.
O ano seguinte foi, porém, de grande provação, porque muitas vezes não lhe restava nem um xelim. E Jorge Müller acrescenta que no momento próprio a sua fé sem­pre foi recompensada com a chegada de dinheiro ou ali­mentos.
Certo dia, quando só restavam oito xelins, Müller pe­diu ao Senhor que lhe desse dinheiro. Esperou muitas ho­ras sem qualquer resposta. Então chegou uma senhora e perguntou: – “O irmão precisa de dinheiro?” Foi uma grande prova da sua fé, porém, o pastor respondeu: – “Mi­nha irmã, eu disse aos irmãos, quando abandonei meu sa­lário, que só informaria o Senhor a respeito das minhas ne­cessidades”. – “Mas”, respondeu a senhora, “Ele me disse que eu lhe desse isto”, e colocou 42 xelins na mão do prega­dor.
Outra vez passaram-se três dias sem terem dinheiro em casa e foram fortemente assaltados pelo Diabo, a ponto de quase resolverem que tinham errado em aceitar a doutrina de fé nesse sentido. Quando, porém, voltou ao seu quarto achou 40 xelins que uma irmã deixara. E ele acrescentou então: “Assim triunfou o Senhor e nossa fé foi fortalecida”.
Antes de findar o ano, acharam-se de novo inteiramen­te sem dinheiro, num dia em que tinham de pagar o alu­guel. Pediram a Deus e o dinheiro foi enviado. Nessa oca­sião, Jorge Müller fez para si a seguinte regra da qual nun­ca mais se desviou: “Não nos endividaremos, porque acha­mos que tal coisa não é bíblica (Romanos 13.8), e assim não teremos contas a pagar. Somente compraremos o que pudermos, tendo o dinheiro em mãos, assim sempre sabe­remos quanto realmente possuímos e quanto temos o direi­to de gastar”.
Deus, assim, gradualmente treinava o novo pregador a confiar nas suas promessas. Estava tão certo da fidelidade das promessas da Bíblia, que não se desviou, durante os longos anos da sua obra no orfanato, da resolução de não pedir ao próximo, e de não se endividar.
Um outro segredo que o levou a alcançar tão grande bênção de confiarem Deus, foi a sua resolução de usar o di­nheiro que recebia somente para o fim a que fora destina­do. Essa regra nunca infringiu, nem para tomar empresta­do de tais fundos, apesar de se ter achado milhares de ve­zes face a face com as maiores necessidades.
Nesses dias, quando começou a provar as promessas de Deus, ficou comovido pelo estado dos órfãos e pobres crian­ças que encontrava nas ruas. Ajuntou algumas dessas crianças para comer consigo às oito horas da manhã e a se­guir, durante uma hora e meia, ensinava-lhes as Escritu­ras. A obra aumentou rapidamente. Quanto mais crescia o número para comer, tanto mais recebia para alimentá-las até se achar cuidando de trinta a quarenta menores.
Ao mesmo tempo, Jorge Müller fundou a Junta para o Conhecimento das Escrituras na Nação e no Estrangeiro. O alvo era: 1) Auxiliar as escolas bíblicas e as escolas do­minicais. 2) Espalhar as Escrituras. 3) Aumentar a obra missionária. Não é necessário acrescentar que tudo foi fei­to com a mesma resolução de não se endividar, mas sem­pre pedir a Deus, em secreto, todo o necessário.
Certa noite, quando lia a Bíblia, ficou profundamente impressionado com as palavras: “Abre bem a tua boca, e ta encherei” (Salmo 81.10). Foi levado a aplicar essas pa­lavras ao orfanato, sendo-lhe dada a fé de pedir mil libras ao Senhor; também pediu que Deus levantasse irmãos com qualificação para cuidar das crianças. Desde aquele mo­mento, esse texto (Salmo 81.10), serviu-lhe como lema e a promessa se tornou em poder que determinou todo o curso da sua vida.
Deus não demorou muito a dar a sua aprovação de alu­gar uma casa para os órfãos. Foi apenas dois dias depois de começar a pedir, que ele escreveu no seu diário: “Hoje re­cebi o primeiro xelim para a casa dos órfãos”.
Quatro dias depois foi recebida a primeira contribuição de móveis: um guarda-roupa; e uma irmã ofereceu dar seus serviços para cuidar dos órfãos. Jorge Müller escreveu naquele dia que estava alegre no Senhor e confiante em que Ele ia completar tudo.
No dia seguinte, Jorge Müller recebeu uma carta com estas palavras: “Oferecemo-nos para o serviço do orfanato, se o irmão achar que temos as qualificações. Oferecemos também todos os móveis, etc, que o Senhor nos tem dado. Faremos tudo isto sem qualquer salário, crendo que, se for a vontade do Senhor usar-nos, Ele suprirá todas as nossas necessidades”. Desde aquele dia, nunca faltaram, no orfa­nato, auxiliares alegres e devotados, apesar de a obra au­mentar mais depressa do que Jorge Müller esperava.
Três meses depois, foi que conseguiu alugar uma gran­de casa e anunciou a data da inauguração do orfanato para o sexo feminino. No dia da inauguração, porém, ficou de­sapontado: nenhuma órfã foi recebida. Somente depois de chegar a casa é que se lembrou de que não as tinha pedido. Naquela noite humilhou-se rogando a Deus o que anelava. Ganhou a vitória de novo, pois veio uma órfã no dia se­guinte. Quarenta e duas pediram entrada antes de findar o mês, e já havia vinte e seis no orfanato.
Durante o ano, houve grandes e repetidas provas de fé. Aparece, por exemplo, no seu diário: “Sentindo grande ne­cessidade ontem de manhã, fui dirigido a pedir com insis­tência a Deus e, em resposta, à tarde, um irmão deu-me dez libras”. Muitos anos antes da sua morte, afirmou que, até aquela data, tinha recebido da mesma forma 5.000 ve­zes a resposta, sempre no mesmo dia em que fazia o pedi­do.
Era seu costume, e recomendava também aos irmãos, guardar um livro. Numa página assentava seu pedido com a data e no lado oposto a data em que recebera a resposta. Dessa maneira, foi levado a desejar respostas concretas aos seus pedidos e não havia dúvida acerca dessas respostas.
Com o aumento do orfanato e do serviço de pastorear os quatrocentos membros de sua igreja, Jorge Müller achou-se demasiadamente ocupado para orar. Foi nesse tempo que chegou a reconhecer que o crente podia fazer mais em quatro horas, depois de uma em oração, do que em cinco sem oração. Essa regra ele a observou fielmente durante 60 anos.Quando alugou a segunda casa, para os órfãos de sexo masculino, disse: “Ao orar, estava lembrado de que pedia a Deus o que parecia impossível receber dos irmãos, mas que não era demasiado para o Senhor conceder”. Ele orava com noventa pessoas sentadas às mesas: “Senhor, olha para as necessidades de teu servo…” Essa foi uma oração a que Deus abundantemente respondeu. Antes de morrer, testificou que, pela fé, alimentava 2.000 órfãos, e nenhuma refeição se fez com atraso de mais de trinta minutos.
Muitas pessoas perguntavam a Jorge Müller como con­seguia ele saber a vontade de Deus, pois não fazia nada sem primeiro ter a certeza de ser da vontade do Senhor. Ele respondia:
1) “Procuro manter o coração em tal estado que ele não tenha qualquer vontade própria no caso. De dez proble­mas, já temos a solução de nove, quando conseguimos ter um coração entregue para fazer a vontade do Senhor, seja essa qual for. Quando chegamos verdadeiramente a tal ponto, estamos, quase sempre, perto de saber qual é a sua vontade.
2) “Tenho o coração entregue para fazer a vontade do Senhor, não deixo o resultado ao mero sentimento ou a uma simples impressão. Se o faço, fico sujeito a grandes enganos.
3) “Procuro a vontade do Espírito de Deus por meio da sua Palavra. É essencial que o Espírito e a Palavra acom­panhem um ao outro. Se eu olhar para o Espírito, sem a Palavra, fico sujeito, também, a grandes ilusões.
4) “Depois considero as circunstâncias providenciais. Essas, ao lado da Palavra de Deus e do seu Espírito, indi­cam claramente a sua vontade.
5) “Peço a Deus em oração que me revele sua própria vontade.
6) “Assim, depois de orar a Deus, estudar a Palavra e refletir, chego à melhor resolução deliberada que posso com a minha capacidade e conhecimento; se eu continuar a sentir paz, no caso, depois de duas ou três petições mais, sigo conforme essa direção. Nos casos mínimos e nas tran­sações da maior responsabilidade, sempre acho esse méto­do eficiente”.Jorge Müller, três anos antes da sua morte, escreveu: “Não me lembro, em toda a minha vida de crente, num período de 69 anos, de que eu jamais buscasse, sincera­mente e com paciência, saber a vontade de Deus pelo ensi­namento do Espírito Santo por intermédio da Palavra de Deus, e que não fosse guiado certo. Se me faltava, porém, sinceramente de coração e pureza perante Deus, ou se eu não olhava para Deus, compaciência pela direção, ou se eu preferia o conselho do próximo ao daPalavra do Deus vivo, então errava gravemente”.
Sua confiança no “Pai dos órfãos” era tal, que nem uma só vez recusou aceitar crianças no orfanato. Quando lhe perguntavam porque assumira o encargo do orfanato, respondeu que não fora apenas para alimentar os órfãos material e espiritualmente, mas “o primeiro objetivo bási­co do orfanato era – afirmava -, e ainda é, que Deus seja magnificado pelo fato de que os órfãos sob os meus cuida­dos foram e estão sendo supridos de todo o necessário, so­mente por oração e fé, sem eu nem meus companheiros de trabalho pedirmos ao próximo; por isso mesmo se pode ver que Deus continua fiel e ainda responde às nossas ora­ções”.
Em resposta a muitos que queriam saber como o crente pode adquirir tão grande fé, deu as seguintes regras:
1) Lendo a Bíblia e meditando sobre o texto lido, che­ga-se a conhecer a Deus, por meio de oração.
2) Procurar manter um coração íntegro e uma boa consciência.
3) Se desejamos que a nossa fé cresça, não devemos evitar aquilo que a prove e por meio do que ela seja fortale­cida.
“Ainda mais um ponto: para que a nossa fé se fortale­ça, é necessário que deixemos Deus agir por nós ao chegar a hora da provação, e não procurar a nossa própria liberta­ção.
“Se o crente desejar grande fé, deve dar tempo para Deus trabalhar.”
Os cinco prédios construídos de pedras lavradas e si­tuados em Ashley Hill, Bristol, Inglaterra, com 1.700 janelas e lugar para acomodar mais de 2.000 pessoas, são teste­munhas atuais dessa grande fé de que ele escreveu.
Cada uma dessas dádivas (devemo-nos lembrar) Jorge Müller lutou com Deus em oração para obter; orou com alvo certo e com perseverança, e Deus lhe respondeu.
São de Jorge Müller estas palavras: “Muitas repetidas vezes tenho-me encontrado em posição muito difícil, não só com 2.000 pessoas comendo diariamente às mesas, mas também com a obrigação de atender a todas as demais despesas, estando a nossa caixa com os fundos esgotados. Havia ainda 189 missionários para sustentar, cerca de 100 colégios com mais ou menos 9.000 alunos, além de 4.000.000 de tratados para distribuir, tudo sob nossa res­ponsabilidade, sem que houvesse dinheiro em caixa para as despesas”.
Certa vez o doutor A. T. Pierson foi hóspede de Jorge Müller no seu orfanato. Uma noite, depois que todos se deitaram, Jorge Müller o chamou para orar dizendo que não havia coisa alguma em casa para comer. O doutor Pierson quis lembrar-lhe que o comércio estava fechado, mas Jorge Müller bem sabia disso. Depois da oração deita­ram-se, dormiram e, ao amanhecer, a alimentação já esta­va suprida e em abundância para 2.000 crianças. Nem o doutor Pierson, nem Jorge Müller chegaram a saber como a alimentação foi suprida. A história foi contada naquela manhã, ao senhor Simão Short, sob a promessa de guardá-la em segredo até o dia da morte do benfeitor. O Senhor despertara essa pessoa do sono, à noite, e mandara que le­vasse alimentos suficientes para suprir o orfanato durante um mês. E isso sem a pessoa saber coisa alguma da oração de Jorge Müller e do doutor Pierson!
Com a idade de 69 anos Jorge Müller iniciou suas via­gens, nas quais pregou centenas de vezes em quarenta e duas nações, a mais de três milhões de pessoas. Recebeu, em resposta às suas orações, tudo de Deus para pagar as grandes despesas. Mais tarde, ele escreveu: “Digo com ra­zão: Creio que eu não fui dirigido a nenhum lugar onde não houvesse prova evidente de que o Senhor me mandara para lá”. Ele não fez essas viagens com o plano de solicitar dinheiro para a junta; não recebeu o suficiente nem para as despesas de doze horas da junta. Segundo as suas pala­vras, o alvo era “que eu pudesse, por minha experiência e conhecimento das coisas divinas, comunicar uma bênção aos crentes… e que eu pudesse pregar o Evangelho aos que não conheciam o Senhor”.
Assim escreveu ele sobre um seu problema espiritual: “Sinto constantemente a minha necessidade… Nada posso fazer sozinho, sem cair nas garras de Satanás. O orgulho, a incredulidade ou outros pecados me levariam à ruína. So­zinho não permaneço firme um momento. Que nenhum leitor pense que devido à minha dedicação, eu não me pos­sa ‘inchar’ ou me orgulhar, ou que eu não possa descrer de Deus!”
O estimado evangelista, Carlos Inglis, contou a respeito de Jorge Müller:
“Quando vim pela primeira vez à América, faz trinta e um anos, o comandante do navio era devoto tal que jamais conheci. Quando nos aproximamos da Terra Nova, ele me disse: ‘Sr. Inglis, a última vez que passei aqui, há cinco se­manas, aconteceu uma coisa tão extraordinária que foi a causa de uma transformação de toda a minha vida de cren­te. Até aquele tempo eu era um crente comum. Havia a bordo conosco um homem de Deus, o senhor Jorge Müller, de Bristol. Eu tinha passado 22 horas sem me afastar da ponte de comando, nem por um momento, quando fui as­sustado por alguém que me tocou no ombro. Era o senhor Jorge Müller. Houve, então, entre nós o seguinte diálogo:
- Comandante – disse o senhor Müller, – vim dizer-lhe que tenho de estar em Quebec no sábado, à tarde.
Era quarta-feira.
-  Impossível – respondi.
- Pois bem, se seu navio não pode levar-me, Deus acha­rá outro meio de transporte. Durante 57 anos nunca deixei de estar no lugar à hora em que me achava comprometido.
- Teria muito prazer em ajudá-lo, mas o que posso fa­zer? – Não há meios!
-  Vamos aqui dentro para orar – sugeriu.
Olhei para aquele homem e disse a mim mesmo: ‘De qual casa de doidos escapou este?’ Nunca eu ouvira al­guém falar desse modo.
- Sr. Müller, o senhor vê como é espessa esta neblina.
- Não – respondeu ele – os meus olhos não estão na neblina, mas no Deus vivo que governa todas as circuns­tâncias da minha vida.
O senhor Müller caiu de joelhos e orou da forma mais simples possível. Eu pensei: ‘É uma oração como a de uma criança de oito ou nove anos’. Foi mais ou menos assim que ele orou: ‘Ó Senhor, se for da tua vontade, retira esta neblina dentro de cinco minutos. Sabes como me compro­meti a estar em Quebec no sábado.  Creio ser isso a tua von­tade.”
Quando findou, eu queria orar também, mas o senhor Müller pôs a sua mão no meu ombro e pediu que não o fi­zesse, dizendo:
-  Comandante, primeiro o senhor não crê que Deus faça isso, e, em segundo lugar, eu creio que Ele já o fez. Não há, pois, qualquer necessidade de o senhor orar nesse sentido. Conheço, comandante, o meu Senhor há cinqüen­ta e sete anos e não há dia em que eu não tenha audiência com Ele. Levante-se, por favor, abra a porta e verá que a neblina já desapareceu.
Levantei-me, olhei, e a neblina havia desaparecido. No sábado, à tarde, Jorge Müller estava em Quebec.'”
Para o ajudar a levar a carga dos orfanatos e a apro­priar-se das promessas de Deus em oração, lado a lado com ele, Jorge Müller tinha consigo, havia quase quarenta anos, uma esposa sempre fiel. Quando ela faleceu, milha­res de pessoas assistiram ao seu enterro, das quais cerca de 1.200 eram órfãos. Ele mesmo, fortalecido pelo Senhor, conforme confessou, dirigiu os cultos fúnebres no templo e no cemitério.
Com a idade de 90 anos pregou o sermão fúnebre da se­gunda esposa, como o fizera na morte da primeira. Uma pessoa que assistiu a esse enterro, assim se expressou: -“Tive o privilégio, sexta-feira, de assistir ao enterro da se­nhora Müller… e presenciar um culto simples, que foi, tal­vez, pelas suas peculiaridades, o único na história do mun­do: Um venerável patriarca preside ao culto do início ao fim. Com a idade de noventa anos, permanece ainda cheio daquela grande fé que o tem habilitado a alcançar tanto, e que o tem sustentado em emergência, problemas e traba­lhos duma longa vida…”
No ano de 1898, com a idade de noventa e três anos, na última noite antes de partir para estar com Cristo, sem mostrar sinal de diminuição de suas forças físicas, deitou-se como de costume. Na manhã do dia seguinte foi “cha­mado”, na expressão de um amigo ao receber as notícias que assim explicam a partida: “O querido ancião Müller desapareceu de nosso meio para o Lar, quando o Mestre abriu a porta e o chamou ternamente, dizendo: ‘Vem!'”
Os jornais publicaram, meio século depois da sua mor­te, a seguinte notícia: “O orfanato de Jorge Müller, em Bristol, permanece como uma das maravilhas do mundo. Desde a sua fundação, em 1836, a cifra que Deus tem con­cedido, unicamente em resposta às orações, sobe a mais de vinte milhões de dólares e o número de órfãos ascende a 19.935. Apesar de os vidros de cerca de 400 janelas terem sido partidos recentemente por bombas (na segunda guer­ra mundial), nenhuma criança e nenhum auxiliar foi feri­do”.
Fonte: O livro, “Herois da Fé” de Orlando Boyer

Se há eleitos, há eleição!

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Por Charles H. Spurgeon

Ora, se as pessoas são chamadas de eleitas, então deve haver eleição. Se Jesus Cristo e seus apóstolos são acostumados a chamar os crentes pelo título de eleitos, certamente acreditamos que eles o sejam, a menos que o termo nada signifique. Jesus Cristo disse: 

"Não tivesse o Senhor abreviado aqueles dias, e ninguém se salvaria; mas, por causa dos eleitos que ele escolheu, abreviou tais dias." (Marcos 13:20) 

"Então, se alguém vos disser: Eis aqui o Cristo! Ou: Ei-lo ali! Não acrediteis; pois surgirão falsos cristos e falsos profetas, operando sinais e prodígios, para enganar, se possível, os próprios eleitos." (Marcos 13:22)

"E ele enviará os anjos e reunirá os seus escolhidos dos quatro ventos, da extremidade da terra até à extremidade do céu." (Marcos 13:27)

"Não fará Deus justiça aos seus escolhidos, que a ele clamam dia e noite, embora pareça demorado em defendê-los?" (Lucas 18:7) 

Em conjunto com mais outras passagens que poderiam ser selecionadas, onde tanto o termo "eleito", ou "escolhido", ou "preordenado", ou "apontado" é mencionado; ou a frase "minhas ovelhas" ou alguma designação similar, mostrando que o povo de Cristo é distinto do resto da humanidade.

Mas vocês têm concordâncias, e eu não vou lhes dar mais problemas com textos. Através das epístolas, os santos são constantemente denominados "os eleitos". Em Colossenses encontramos Paulo dizendo: "... pois, como eleitos de Deus, santos e amados, de ternos afetos de misericórdia". Quando ele escreve a Tito, ele mesmo se chama, "Paulo, servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo, para promover a fé que é dos eleitos de Deus". Pedro diz: "eleitos, segundo a presciência de Deus Pai". E se você vai para João, descobrirá que ele é afeiçoado ao termo. Ele diz: "O presbítero à senhora eleita"; e ele fala da nossa "irmã, a eleita". E sabemos onde isso está escrito: "Aquela que se encontra em Babilônia, também eleita". Eles não se envergonhariam desse termo hoje em dia; não tinham medo de falar disso. 

Atualmente esse termo tem sido revestido de uma diversidade de sentidos, e as pessoas têm mutilado e estragado a doutrina, e assim transformado-a numa verdadeira doutrina de demônios, tenho que admitir; e muitos do que se chamam crentes, têm que se intitular antinomistas. Não obstante esse fato, por que eu me envergonharia disso, se o homem o corrompe? Amamos a verdade divina tanto na tormenta quanto na bonança. Se há um mártir pelo qual temos amor antes de ele ser torturado, deveríamos amá-lo mais ainda quando ele está livre. Quando a verdade divina é desenvolvida na tribulação, não a chamamos de falsidade. Não a apreciamos para vê-la na tribulação, porque podemos discernir como deveria ser, mutatis mutandis, se ela não tivesse ido para a masmorra e torturada pela crueldade e pelas maquinações humanas. Se você vir a ler algumas das epístolas dos Pais da Igreja, você os descobrirá sempre se referindo ao povo de Deus como "eleito". Realmente, nas conversas do dia a dia, o termo usado entre as igrejas dos cristãos primitivos para uma outra era "eleito". Eles frequentemente usavam o termo para os demais, demonstrando que era geralmente aceito que todo o povo de Deus era manifestamente "eleito".

Mas vamos agora para os versículos que provam a doutrina de modo afirmativo. Abram suas Bíblias em João 15:16, e vejam que Jesus Cristo escolheu seu povo, pelo que diz:"Não fostes vós que me escolhestes a mim; pelo contrário, eu vos escolhi a vós outros e vos designei para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça; a fim de que tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome, ele vo-lo conceda." E no versículo 19: "Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que era seu; como, todavia, não sois do mundo, pelo contrário, dele vos escolhi, por isso, o mundo vos odeia." E no capítulo 17, versículos 8 e 9: "porque eu lhes tenho transmitido as palavras que me deste, e eles as receberam, e verdadeiramente conheceram que saí de ti, e creram que tu me enviaste. É por eles que eu rogo; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus".

Vá para Atos 13:48: "Os gentios, ouvindo isto, regozijavam-se e glorificavam a palavra do Senhor, e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna." Eles poderiam ter omitido essa passagem, se quisessem, mas ela diz: "destinados para a vida eterna" no original tão patente quanto possível; e não nos importamos sobre os diferentes comentários existentes por aí. Vocês por pouco não precisam ser lembrados de Romanos 8, porque eu acredito que todos já estão bem familiarizados com esse capítulo e atualmente o entendem. Nos versículos 29 e seguintes ele diz: 

"Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou. Que diremos, pois, à vista destas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou, porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as coisas? Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus?" 

Seria desnecessário repetir o contexto do nono capítulo de Romanos. Tão certo quanto aquela [doutrina] se encerra na Bíblia, nenhum homem será capaz de provar o Arminianismo; tão certo quanto aquela [doutrina] está lá escrita, nem as mais violentas deturpações da passagem vão ser capazes de exterminar, das Escrituras, a doutrina da eleição. Permitam-nos ler versos como esses: "E ainda não eram os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama), já fora dito a ela: O mais velho será servo do mais moço." Então leia no versículo 22,"Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão" Então vá para Romanos 11:7: "Que diremos, pois? O que Israel busca, isso não conseguiu; mas a eleição o alcançou; e os mais foram endurecidos" No quinto versículo do mesmo capítulo, lemos: "Assim, pois, também agora, no tempo de hoje, sobrevive um remanescente segundo a eleição da graça"

Vocês, sem dúvida, vão se lembrar da passagem de I Coríntios 1:26-29: "Irmãos, reparai, pois, na vossa vocação; visto que não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento; pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são; a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus." Novamente, lembrem-se da passagem de I Tessalonicenses 5:9: "porque Deus não nos destinou para a ira, mas para alcançar a salvação mediante nosso Senhor Jesus Cristo"

Então vocês têm meu texto, que creio ser o bastante; mas, se precisam de mais, poderão encontrá-las com mais vagar, se já tiverem removido sua desconfiança de que essa doutrina seja verdadeira.

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Fonte: spurgeon.org
Tradução: Josemar Bessa
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sábado, 18 de outubro de 2014

Missão Integral ou Neocalvinismo: em busca de uma visão mais ampla da missão da Igreja

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Por Rev. Filipe Costa Fontes


Há algum tempo a Missão Integral (MI) tem sido objeto de controvérsia nos círculos conservadores do evangelicalismo brasileiro. De um lado estão aqueles que a rejeitam e a criticam, alegando que ela seria uma versão protestante da Teologia da Libertação. Isto é, para eles a MI seria uma tentativa de compreensão da missão da igreja por um viés filosófico-sociológico marxista, razão pela qual, na prática, desviaria o foco da missão da igreja para o engajamento político-social. De outro lado, existem aqueles que a defendem e aderem a ela, principalmente sob a alegação de que a igreja teria passado por uma espécie de achatamento em sua concepção de missão, reduzindo o alcance da missão da igreja ao aspecto espiritual da vida humana, e a MI permitiria uma ampliação necessária. Ou seja, ela possibilitaria uma visão da missão da igreja como um movimento em direção à integralidade da vida humana.

Devemos considerar a legitimidade da preocupação que tem levado algumas pessoas a aderirem à MI. De fato, não são poucas as igrejas que nutrem uma perspectiva dualista da realidade, sobretudo da pessoa humana. E, por consequência, vivenciam sua missão de modo reducionista, negligenciando oportunidades de aplicação do evangelho a outras esferas de nossa existência, que não a relativa à fé. Parece mesmo faltar a muitos pastores e igrejas uma compreensão da abrangência do impacto da missão da igreja. Contudo, o que tem acontecido recentemente com a MI no Brasil não é muito diferente e parece fortalecer o argumento daqueles que a tem rejeitado. Muitos pastores e igrejas que aderiram à MI parecem também estar sofrendo de uma prática reducionista.

Eles ficam tão fascinados com o engajamento político-social que acabam por atribuir a essa tarefa um caráter de centralidade, para não dizer de exclusividade.

A percepção desse reducionismo tem sido compartilhada até mesmo por alguns dos proponentes da MI, como é possível verificar no texto a seguir:

O paradigma da missão integral, movimento da missão integral, ou teologia da missão integral, popularizado após o Congresso Internacional de Evangelização Mundial realizado em Lausanne, Suiça, em 1974, ganhou as ruas no Brasil somente depois que o Pacto de Lausanne foi publicado em português, dez anos após sua elaboração. Desde então a expressão missão integral ficou restrita ao debate a respeito da relação entre evangelização e responsabilidade social, e chegou aos nossos dias tão reduzido que qualquer igreja que tem uma creche acredita estar “fazendo missão integral”. (...) Observe que alguém facilmente diria que um projeto social está relacionado com missão integral, mas dificilmente consideraria um encontro de casais realizado num hotel 5 estrelas como um projeto de missão integral. A organização de um centro comunitário é imediatamente percebida como ação de missão integral, mas um sarau com muita música e leituras de Fernando Pessoa e Adélia Prado exigiria muita explicação para que fosse associado à missão integral. O senso comum diria que o médico que dedica um final de semana para trabalho voluntário numa comunidade da periferia da cidade está fazendo missão integral, mas diria que o mesmo médico, cobrando R$ 700,00 por uma consulta em seu consultório, está realizando seu trabalho secular (não religioso), ou, no máximo, ganhando dinheiro para financiar projetos de missão integral. É urgente ampliarmos o horizonte de reflexão.
Extrapolar os limites definidos pelo debate evangelização /responsabilidade social e mergulharmos nas implicações das relações sagrado/profano e religioso/não religioso para a vivência da espiritualidade cristã pessoal e comunitária.[1]

É curioso perceber, no entanto, que esse reconhecimento não acontece sem que a suposta integralidade original da MI seja defendida. Geralmente, ele vem acompanhado do argumento de que esse reducionismo seria, para usar as palavras do autor acima, “uma distorção do conceito em seus termos originais”.[2]

Mas, afinal, o reducionismo verificado na prática de igrejas brasileiras que têm
aderido à MI seria de fato um desvio da proposta original ou um desdobramento natural originalmente gestado? Essa é a pergunta que pretendemos responder na parte inicial deste artigo, e que possui uma importante implicação para o debate inicialmente mencionado. Caso a segunda alternativa seja verificada, nossa hipótese é a de que teremos razões para questionar a contribuição da MI para a efetiva ampliação de nossa concepção de missão. O propósito do artigo, contudo, não se limita a esse movimento reativo. Além de levantar este questionamento queremos sugerir que a tradição calvinista, mais especificamente tal qual expressa no neocalvinismo holandês, oferece melhores condições para a compreensão da missão da igreja. Apresentar as razões desta sugestão é o que pretendemos fazer na segunda parte do texto.

1. missão integral?

A expressão Missão Integral foi cunhada por volta da década de 1970 por membros da Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL, na sigla em espanhol), para descrever uma compreensão da missão cristã que abrange tanto a proclamação quanto a demonstração do evangelho por meio da ação social.[3]

Geralmente a MI é apresentada como um chamado à integralidade; uma defesa da missão da igreja como um movimento em direção à “pessoa toda, com todo o evangelho, em todo o seu contexto social e cultural”.[4] É este chamado que tem atraído muitos evangélicos conservadores, mesmo no círculo reformado. É também ele que pretende ser, de alguma forma, assegurado pelo argumento de que o reducionismo prático da MI seria um desvio do propósito original.

Contudo, há razões para questionar este chamado à integralidade. Isso, por que a apropriação do adjetivo “integral” pela perspectiva que estamos analisando não parece estar relacionada ao significado semântico do termo – todo, inteiro, completo – mas à tentativa de superação de um dualismo específico, que se refere ao exercício da missão da igreja enquanto instituição: o dualismo evangelização/ação social. Oliva, citando Nóbrega, afirma que o uso do qualificativo integral tem como objetivo “lembrar as igrejas de que elas não devem optar por um dos polos opostos – salvação pessoal/espiritual ou responsabilidade social”.[5] Para Carvalho, esse dualismo teria sido o ponto central de discussão do Congresso de Lausanne, importante marco da MI, e também o responsável pela elaboração do conceito.

Entre as questões que o congresso de Lausanne procurou responder, talvez a mais importante seja a que focalizou a relação entre evangelização e responsabilidade social. O debate sobre essa relação levou à formulação de um conceito mais amplo de missão cristã, expresso no conceito de missão integral, englobando tanto a evangelização quanto a responsabilidade social, sendo ambas inter-relacionadas e essencialmente distintas. A partir daí, todas as discussões em torno da missão integral passaram a focalizar sua fundamentação e aplicação à luz da prática pastoral e missionária.[6]

Como é possível verificar, embora se utilize de um adjetivo cujo significado semântico aponta para a abrangência, a discussão da MI gira em torno de uma questão específica: o engajamento da igreja com a ação social e a relação entre este engajamento e a evangelização. A interpretação e referência ao engajamento social como um movimento voltado à integralidade revela sua semente reducionista.

É provável que esse reducionismo seja fruto da construção dialética da MI, o que a teria conduzido, pelo menos em parte, a uma síntese[7] com um paradigma filosófico-sociológico reducionista: o materialismo histórico – que reduz a dinâmica da realidade ao aspecto socioeconômico.[8] Descrevendo o ambiente intelectual que teria forjado a MI, Gondim afirma claramente seu caráter dialético, argumentando que ela teria se originado do desejo dos evangélicos de “fazer nascer uma teologia que se aventurasse em dialogar com as ciências e a filosofia”.[9] E sugere seu caráter sintético ao relacioná-la à Teologia da Libertação e ao apontar as Fraternidades Teológicas Latino-Americanas como fermentadoras do pensamento que lhe deu origem.[10] Mais que uma simples sugestão pode ser encontrada na argumentação de Sanches, que relaciona as origens da MI a um movimento denominado ISAL (Igreja e Sociedade na América Latina), fundado na década de 60, e que, em suas próprias palavras, “elaborou uma síntese entre o protestantismo e o marxismo, por meio de um fecundo diálogo entre a Teologia e as Ciências Sociais, a fim de interpretar o contexto de crise política vivida pelo povo latino-americano”.[11]

Se, por um lado, esses apontamentos não são suficientes para afirmar um compromisso original generalizado da MI com o projeto ideológico marxista, por outro, eles nos oferecem fortes indícios da influência do materialismo histórico na atmosfera intelectual que forjou tal pensamento. É ilustrativa dessa influência certa ênfase exclusivista nos impactos socioeconômicos do evangelho. Em palestra ministrada no Fórum Jovem de Missão Integral, Ramos sustenta:

Então o que foi que mudou com a chegada do reino? Mudou a economia. Agora, a proposta é a solidariedade e o alvo é a igualdade. Mudou a relação de trabalho. Porque agora, o trabalhador tem de ser o primeiro a desfrutar do resultado do seu trabalho. Mudou a relação política. Agora, o “sujeito” não é eleito para assumir o poder, o “sujeito” é eleito para assumir o serviço. Se a Igreja ganha essa consciência, a Igreja se torna profeta dos profetas, se torna o grande arauto da justiça.[12]

É também ilustrativa desta relação a apropriação e aplicação de conceitos próprios do materialismo histórico à obra de Cristo. Na palestra anteriormente citada, por exemplo, a vinda do reino de Cristo por ocasião de sua primeira vinda é descrita em termos de “ruptura” e “revolução”.[13] Finalmente, esta relação e influência podem ser percebidas pela constante crítica da MI à tradição teológica de pensamento e sua consequente defesa de “uma teologia legitimamente continental”,[14] o que se assemelha ao caráter antitradicionalista do materialismo histórico.[15]

O resultado dessa relação é não apenas a falta de um conceito de integralidade, mas de lastro histórico-teológico para localizar a questão da missão da igreja dentro de um escopo maior de pensamento,[16] o que culmina na impossibilidade de superação do dualismo inicialmente verificado: o dualismo evangelização/ação social na missão institucional da igreja. Carlos Antônio Barro sustenta que a partir de Lausanne é possível verificar três posições mais definidas dentro da MI sobre a relação entre os polos desse dualismo: uma mais conservadora, que enfatiza a evangelização como tarefa principal; uma mais moderada, que começa a pensar em integrar a busca pela justiça social à missão da igreja, e uma terceira que elimina prioridades e vê evangelização e ação social como tarefas complementares.[17] Esta última é a posição mais comumente defendida pela MI na atualidade, e mesmo ela não promove a superação do dualismo evangelização/ação social. Pois a defesa de que a igreja deve fazer uma coisa e outra, embora promova uma aproximação dos dois polos, os mantém separados, o que significa, no fim das contas, a manutenção da dualidade.

Nossa suspeita inicial, portanto, é que o reducionismo observado na prática da MI, ao invés de desvio, seria a consequência natural de sua construção dialética e aproximação sintética de um paradigma reducionista.

Consequentemente, seria possível questionar a contribuição da MI para a ampliação de nossa visão missiológica e promoção de uma concepção efetivamente integral de missão.

2. integralidade e missão no neocalvinismo holandês

Neocalvinismo é o nome comumente usado para se referir ao movimento originado na Holanda, nos séculos 19 e 20, sob a liderança de Abraham Kuyper, cuja proposta básica era aplicar os princípios do calvinismo ao relacionamento do cristão e da igreja com a sociedade e a cultura de sua época.[18] A partir dessa proposta “projetaram-se, no século 20, várias iniciativas de ação cristã transformadora em setores diversos, como filosofia e teologia, política e ação social, artes e ciências, educação e comunicações”.[19]

O neocalvinismo holandês é uma tentativa de contextualização que mantém o compromisso com a tradição teológica de pensamento. Nas palavras de Carvalho, o que Kuyper fez foi refundar o calvinismo, “seguindo de perto os princípios reformados da soberania de Deus e da unidade entre natureza e graça, articulando-os, porém, a um contexto definitivamente moderno (ou até mesmo pós-moderno)”.[20] Por um lado, portanto, o neocalvinismo é uma tentativa de aplicação relativamente recente. Por outro, ele se apresenta revestido de um lastro histórico-teológico que permite a reflexão sobre a missão da igreja dentro de um escopo amplo de discussão que considera os grandes temas da teologia. Esta é a primeira razão pela qual o consideramos uma proposta mais apropriada para a nossa reflexão missiológica. O neocalvinismo se propõe a pensar a missão da igreja em relação à cultura contemporânea sem a necessidade de promover uma revolução paradigmática messiânica, uma vez que ele pensa para além de uma teologia localizada restrita a determinados contextos socioculturais, como é o caso da MI.

Em segundo lugar, é importante destacar que o calvinismo, tradição teológica em que se fundamenta a perspectiva apresentada, é um esforço por construir um edifício teológico a partir da aplicação radical da Escritura Sagrada.

Nas palavras do próprio Calvino:

Eis aqui o princípio que distingue nossa religião de todas as demais, ou seja: sabemos que Deus nos falou e estamos plenamente convencidos de que os profetas não falaram de si próprios, mas que, como órgãos do Espírito Santo, pronunciaram somente aquilo para o qual foram do céu comissionados a declarar. Todos quantos desejam beneficiar-se das Escrituras devem antes aceitar isto como um princípio estabelecido, a saber: que a lei e os profetas não são ensinos passados adiante ao bel-prazer dos homens ou produzidos pelas mentes humanas como uma fonte, senão que foram ditados pelo Espírito Santo.[21]

Ao fazer essa afirmação não defendemos a perenidade do calvinismo enquanto paradigma teológico. Mas desejamos sugerir que existem vantagens em lidar com um edifício teológico que sustente como princípio fundamental a exclusividade de seu compromisso com a Escritura Sagrada, ao invés do diálogo sintético com qualquer pensamento imanente.[22] Foi esse compromisso radical com a Escritura que permitiu ao calvinismo e, consequentemente, ao neocalvinismo holandês, a apropriação da ideia de integralidade no sentido semântico pleno do termo. A posse desse conceito é a terceira razão de nossa sugestão. 

O conceito de integralidade é fundamental à teologia reformada. Uso o termo ‘fundamental’ em seu sentido radical, com a intenção de afirmar que o conceito é, de fato, um dos pilares do que Kuyper denominou “sistema de vida calvinista”.[23] De certa forma, esse conceito também surge no calvinismo como a superação de um dualismo. No entanto, enquanto na MI o conceito de integralidade visa a superação de um dualismo específico, que diz respeito à missão institucional da igreja, no calvinismo ele visa a superação de um dualismo abrangente, que envolve a realidade como um todo. Trata-se do dualismo natureza/graça, construído a partir de uma tentativa de síntese entre elementos do pensamento cristão com a filosofia grega, e impulsionado pelo catolicismo romano.[24] Assumindo o risco de imprecisões, poderíamos defini-lo como uma mentalidade que separava toda a realidade em dois polos distintos, concebendo parte dela em relação a Deus e parte como dotada de autonomia, sem qualquer relação com Deus.[25] Essa pode parecer uma discussão meramente filosófica, mas sua abrangência é ampla:

A relação entre natureza e graça é mais do que um problema teórico. De fato, trata-se de um problema religioso fundamental, pois procura responder como a reconciliação com Deus por meio de sua obra redentora se relaciona com as estruturas espaço-temporais, antropológicas e racionais da vida.[26]

A Reforma Protestante, com maior profundidade João Calvino e a tradição calvinista, encontraram na doutrina da soberania de Deus um caminho para a superação dessa polarização. A tradição calvinista fez isso ao assumir o senhorio absoluto de Cristo sobre a realidade, conforme ilustram as tão conhecidas palavras proferidas por Abraham Kuyper em 20 de outubro de 1880, na Nieuwe Kerk, em Amsterdã: “Não há um único centímetro quadrado em todos os domínios da existência humana sobre o qual Cristo, que é o Soberano sobre tudo, não clame: é meu!”.[27]

Primeiramente, o neocalvinismo fundamenta o conceito da soberania de Deus na doutrina bíblica da criação. Um exemplo de como essa doutrina foi radicalmente considerada no pensamento neocalvinista pode ser encontrado na filosofia da ideia cosmonômica de Herman Dooyeweerd, filósofo e discípulo de Kuyper. Sua ontologia, por exemplo, descreve uma diversidade de aspectos nos quais a realidade se manifesta temporalmente, cada um deles sujeito a uma estrutura de lei divinamente ordenada. De acordo com Dooyeweerd, a lei de Deus seria a condição de possibilidade e o que estabelece os limites de absolutamente toda a realidade, normatizando o funcionamento dela em sua integralidade, desde os aspectos mais básicos como o numérico ou o espacial, passando pelos intermediários como o analítico e o linguístico até aos mais complexos como o estético, o ético e o pístico (relativo à fé).[28] Em segundo lugar, a doutrina da soberania de Deus encontra fundamento também na compreensão radical da doutrina da redenção. As palavras de Kuyper nos remetem a essa doutrina ao se referirem a Cristo. Para o sistema de vida calvinista, a salvação de Deus em Cristo possui uma extensão cósmica, e não diz respeito apenas a parte do homem, mas ao homem todo; e não apenas ao homem, mas a partir dele se estende a toda a realidade.[29]

A partir dessa compreensão radical das doutrinas da criação e da redenção, o neocalvinismo pode empregar o termo “integralidade” em seu sentido semântico – todo, inteiro, completo – e “missão” como o esforço humano de “fazer convergir para Deus toda a criação e toda vida que se desenvolve nela”.[30] Essa superação do dualismo básico natureza/graça permitirá, por fim, a superação do dualismo específicoevangelização x ação social na missão da igreja, razão final pela qual sugerimos o neocalvinismo como perspectiva mais apropriada para a promoção da ampliação de nossa visão missiológica.

Filha da concepção neocalvinista de soberania é a ideia de “esferas de soberania” ou “soberania das esferas”.[31] Essa expressão foi cunhada e utilizada por Kuyper para, desafiando o absolutismo do estado moderno, afirmar o entendimento de que a soberania de Deus se manifesta socialmente no estabelecimento de um campo de atuação e de limites para as diversas instituições.

Num sentido calvinista nós entendemos que a família, os negócios, a ciência, a arte e assim por diante, todas são esferas sociais que não devem sua existência ao Estado, e que não derivam a lei de sua vida da superioridade do Estado, mas obedecem a uma alta autoridade dentro de seu próprio seio; uma autoridade que governa pela graça de Deus, do mesmo modo como faz a soberania do Estado. (...) Nesse caráter independente está necessariamente envolvida uma autoridade superior especial, a que intencionalmente chamamos de soberania das esferas sociais individuais, a fim de que possa estar claro e expresso que estes diferentes desenvolvimentos da vida social nada têm acima deles, exceto Deus, e que o Estado não pode intrometer-se aqui e nada tem a ordenar em seu campo.[32]

A partir dessa proposta do neocalvinismo holandês, a missão de sujeitar a realidade ao senhorio de Cristo é vista como uma missão coletiva. Em termos institucionais, ela não seria apenas a missão da igreja, mas a missão de cada instituição, dentro de sua esfera de atuação. Não apenas a igreja, mas “o casamento, a família, as instituições educacionais, o Estado e a sociedade como um todo devem ser organizados de acordo com os princípios cristãos”.[33]

Por consequência, seria correto dizer que a igreja possui um núcleo principal de ação que deve normatizar sua participação nesse esforço de sujeitar a realidade ao senhorio de Cristo. Segundo Kuyper esse núcleo seria promover a fé em Cristo pela pregação da Palavra, congregar os salvos e realizar serviço filantrópico ou diaconal.[34]

Ao definir a missão da igreja Kuyper enfatizou o elemento de proclamação do evangelho. Segundo ele, “para a glória de nosso Deus é necessário haver a regeneração seguida pela conversão, e a Igreja deve contribuir para esta conversão através da pregação da Palavra”.[35] Por isso, os outros dois elementos que compõem a missão da igreja são vistos em subordinação a esta tarefa de proclamação. O propósito da comunhão seria fortalecer esse testemunho. Nas palavras de Kuyper, “atiçar esta chama e fazê-la brilhar”.[36] E o serviço filantrópico ou diaconal teria como propósito manifestar o alcance da proclamação.

Isto é, revelar que “para o homem integral e para todos os aspectos da vida ele é o Christus Consolator”.[37]

Alguém pode afirmar que enfatizar a missão proclamatória da igreja seria uma visão limitadora do impacto da igreja na sociedade e na cultura. Contudo, tal afirmação revelaria ou uma visão imanente das causas da desordem social, ou uma visão limitada do poder e alcance redentor do evangelho. Pois, se partirmos da radicalidade da concepção calvinista da queda como causa de toda a desordem social, e de seu consequente apreço pelo evangelho como o poder de Deus para a transformação do homem em toda a sua relação com a realidade, a proclamação da igreja, compreendida em seu sentido amplo de aplicar o evangelho de Cristo a todas as esferas da vida, passa a ser vista como a mais fundamental necessidade para uma efetiva reforma da sociedade e da cultura, e a mais real contribuição da igreja para isso. Neste sentido, a perspectiva neocalvinista permite a superação do dualismoevangelização/ação social na missão da igreja, ao eliminar a polarização entre as duas coisas, apontando uma como efeito da outra. Ele sugere que ao invés de falar em uma coisa ou outra, ou numa coisa e outra, deveríamos falar em uma coisa pela outra.

Na prática, essa perspectiva desloca e aprofunda a questão do debate. Ao invés de nos perguntar: Deve a igreja abrir uma instituição de ensino escolar? Ela deve criar um grupo de artes? Deveríamos nos perguntar: Como uma igreja pode proclamar o evangelho de Cristo de tal modo aplicado à educação e aos relacionamentos que as instituições de ensino sejam levadas a imprimir os valores do Reino de Deus em seu exercício diário? Ou, como uma igreja proclama o evangelho de Cristo de tal modo aplicado à estética que a maneira de se fazer arte seja generalizadamente impactada? Talvez, ao fazer isso, igrejas locais pudessem descobrir vocações específicas e decidir proclamar as implicações do evangelho para determinada área da realidade, de modo especial e prático. Isso seria não apenas legítimo, mas desejável! Contudo o envolvimento da igreja neste caso deveria se dar, ainda, em subordinação à sua missão de proclamação do evangelho. Seu foco deveria ser não apenas a realização de determinadas atividades sociais ou culturais, mas a utilização delas como exemplo de como, pelo evangelho, pessoas e instituições podem trabalhar para “fazer convergir para Deus toda a criação e toda vida que se desenvolve nela”.[38] Neste caso, ela não estaria fazendo apenas evangelização e ação social/cultural, mas transformação social/cultural pela evangelização, aplicando o evangelho a todas as esferas da vida.

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Notas:
[1] KIVITZ, E. R. O evangelho integral. Disponível em: 
http://edrenekivitz.com/blog/tag/missao-integral/. Acesso em: 18 fev. 2014.
[2] KIVITZ, 2014.
[3] REIS, G. J. B. dos. C. René Padilla: introdução à sua vida, obra e teologia. São Paulo: Arte Editorial, 2011, p. 85-86.
[4] GONDIM, R. Missão Integral: Em busca de uma identidade evangélica. São Paulo: Fonte Editorial, 2010, p. 20.
[5] NÓBREGA, E. R. Missão Integral: Fundamentos teológicos e implicações práticas. João Pessoa: Betel Publicações & Ministério Mais que Palavras, 2011, p. 21-22.
[6] CARVALHO, G. V. R. de. A missão integral na encruzilhada: Reconsiderando a tensão no pensamento teológico de Lausanne. In: RAMOS, L.; CAMARGO, M.; AMORIM, R. Fé cristã e cultura contemporânea. Viçosa: Ultimato, 2009, p. 17.
[7] Um pensamento “sintético” é um sistema teórico construído na interação entre elementos original e estruturalmente cristãos e elementos de sistemas teóricos apóstatas, cujo ponto de partida é imanente.
[8] O erro básico do marxismo seria “assumir que é possível explicar as concepções estéticas, jurídicas, morais e písticas em termos de uma reflexão ideológica de um sistema econômico de produção”. DOOYEWEERD. A New Critique of Theoretical Thought. 3ª ed. Paideia: Ontario, 1984, v. 2, p. 293. Minha tradução.
[9] GONDIM, 2010, p. 20.
[10] Cf. GONDIM, 2010, p. 20.
[11] SANCHES, S. de M. A teologia da missão integral como teologia evangélica contextual latino-americana. Revista Caminhando v. 15, n. 1, p. 65-85, jan./jun. 2010, p. 76.
[12] RAMOS, A. Palestra no Fórum Jovem de Missão Integral. Disponível em: http://www.irmaos.com/artigos/?id=2432. Acesso em: 3 abr. 2014.
[13] Cf. RAMOS, 2014.
[14] GONDIM, 2010, p. 20.
[15] Samuel Escobar, sobre a origem da Fraternidade Teológica Latino-Americana: “Existia o convencimento de que fazia falta um ponto de encontro que permitisse aos evangélicos pensantes entender melhor o Evangelho e sua pertinência ante a crítica situação de nossos países. Havia um desejo de unir-se e ajudar-se mutuamente a escutar com clareza a voz do Espírito Santo para seu povo na América Latina. Não nos sentíamos representados pela teologia elaborada na América do Norte e imposta através de seminários e institutos bíblicos dos evangélicos conservadores, cujos programas e literatura eram tradução servil e repetitiva, forjada em uma situação totalmente estranha à nossa. Tampouco nos sentíamos representados pela teologia elitista dos protestantes ecumênicos, geralmente calcada em moldes europeus e distante do espírito evangelizador e das convicções fundamentais das igrejas evangélicas majoritárias do continente americano”. ESCOBAR, S. La fundación de la Fraternidad Teológica Latinoamericana: Breve ensayo histórico. In: PADILLA, C. R. (org). 25 Años de Teologia Evangelica Latino Americana. Buenos Aires: FTL, 1995, p. 16. Mario Vieira de Mello, sobre o antitradicionalismo marxista: “...o que mais impressiona em tal doutrina é a petulância, é a arrogância com que cinco mil anos de existência histórica são assim descartados e reduzidos a uma crônica de acontecimentos sem idoneidade ou transparência. Nenhum outro pensamento do mundo ocidental, seja ele o de Descartes, o criador da dúvida metódica, o de Rousseau, o denegridor da sociedade, ou mesmo o do grande rebelde que foi Friedrich Nietzsche, ousou repudiar a tradição cultural da maneira por que o fez o marxismo. (..) É como se tivéssemos subitamente encontrado um marciano que se risse ou se compadecesse dos nossos pobres esforços intelectuais no sentido de verificar hipóteses por meio de experiências, de conceber a verdade das relações matemáticas, ou mesmo de articular ideias. A ruptura com o passado é, no marxismo, total”. MELLO, M. V. de. Desenvolvimento e cultura: O problema do estetismo no Brasil3ª ed. Brasília: Funag, 2009, p. 55.
[16] Carvalho sustenta que a falta desse lastro teológico conduziria a uma teologia genérica, definida como: “uma teologia de baixo custo, acessível a todos, adaptável aos cristãos de todas as tradições, com apelo suficiente para mobilizá-los à ação”, e localiza sua fonte na “possibilidade de criar soluções teológicas originais, contextualizadas, independentes do debate entre as grandes tradições europeias”. Cf. CARVALHO, 2009, p. 44.
[17] Cf. BARRO, A. C. Revisão do marco da missão integral. In: Congresso Brasileiro de Evangelização, 2. Missão Integral: proclamar o reino de Deus vivendo o evangelho de Cristo. Viçosa: Ultimato, 2004, p. 75-76.
[18] Cf. LIMA, Leandro A. de. O futuro do calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 71-72.
[19] CARVALHO, 2009, p. 53-54.
[20] CARVALHO, 2009, p. 53.
[21] CALVINO, João. As Pastorais. São Paulo: Paracletos, 1998, p. 262.
[22] Pensamento imanente é todo pensamento que procura explicar a realidade ignorando a relação dela com Deus.
[23] Cf. KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.
[24] Cf. SCHAEFFER, Francis. A morte da razão. 8ª ed. São Paulo: ABU, 2001, p. 9-10.
[25] Cf. SCHAEFFER, 2001, p. 7.
[26] CARVALHO, 2009, p. 48.
[27] BRATT, James D. Abraham Kuyper: A Centennial Reader. Grand Rapids: Eerdmans, 1998, p. 488.
[28] Cf. KALSBEEK, L. Contours of a Christian Philosophy: An Introduction to Herman Dooyeweerd’s Thought: a supplement to the collected works of Herman Dooyeweerd. Lewiston, NY: Edwin Mellen Press, 2002, p. 100.
[29] Cf. CARVALHO, G. V. R. de. O senhorio de Cristo e a missão da igreja na cultura. In: RAMOS, L.; CAMARGO, M.; AMORIM, R. Fé cristã e cultura contemporânea. Viçosa: Ultimato, 2009, p. 64. [30] KUYPER, 2002. p.62. É importante esclarecer que o neocalvinismo não sustenta uma visão otimista ingênua do impacto do evangelho sobre a realidade nesta atual conjuntura. Kuyper sustenta que uma vida completamente redimida não se manifestará “antes do segundo advento” (KUYPER, 2002, p. 69). Por consequência, o incentivo do neocalvinismo ao esforço para sujeitar a realidade ao senhorio de Cristo não se dá na esperança de que uma transformação completa da realidade aconteça no atual momento, mas de que a conformidade da realidade ao projeto criacional e a antecipação do reino vindouro, promovem a glória de Deus e o bem comum (Cf. KUYPER, 2002, p. 80-81).
[31] Cf. KUYPER, 2002, p. 86.
[32] KUYPER, 2002, p. 98.
[33] VAN TIL, H. R. O conceito calvinista de cultura. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 155.
[34] Cf. KUYPER, 2002, p. 74-76.
[35] KUYPER, 2002, p. 74.
[36] KUYPER, 2002, p. 75.
[37] KUYPER, 2002, p. 75.
[38] KUYPER, 2002. p. 62.
***
Sobre o autor: O autor é ministro presbiteriano formado pelo Seminário Teológico Rev. José anoel da Conceição. É licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Assunção, mestre em Teologia Filosófica pelo CPAJ e em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atua como professor assistente na área de teologia filosófica no CPAJ e professor do departamento de cultura geral do Seminário JMC.

Fonte: Revista Fides Reformata - XIX, Nº 1 (2014), p. 61-72.
Divulgação: Bereianos

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