sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

UMA REFLEXÃO DOS PRINCÍPIOS MORAIS DOS MÉTODOS DE CRESCIMENTO DE IGREJA


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Por Matheus Negri

Este breve ensaio é resultado de reflexões a partir da prática do autor e de debates com pares na academia e no diálogo com membros e participantes das mais variadas denominações. Das conversas surge a questão: o quanto a igreja deve se apropriar das técnicas do mercado para avaliar seu desempenho? Quais os resultados que devem ser cobrados? Nota-se um grande apelo ao número de membros ou participantes, e o uso de teorias, métodos e técnicas desenvolvidas no âmbito do mercado para alcançar o objetivo.


O que se propõe é apresentar, através de uma metodologia simples, adotada muitas vezes pela teologia prática – ver, julgar e agir –, o desafio da moral do mercado colocado à administração eclesiástica hoje, buscar um resgate na moral[1] bíblico-cristã, e propor caminhos práticos para a aplicação dessa moral.

A PRESENTE SITUAÇÃO DA IGREJA E SEU CONTEXTO

Através da metáfora do líquido, Z. Bauman[2] explica contexto contemporâneo. Para ele a liquidez explicaria de modo mais adequado a dificuldade de se padronizar ou “encaixotar” os ideais contemporâneos que conflitam, de certa maneira, com a solidez da modernidade passada. A liquidez, ou fragmentação da cultura ocidental, a partir do século XX, tomou proporções assustadoras, devido às duas grandes guerras, às lutas pelos direitos civis, a queda do regime comunista, e os avanços da tecnologia da informação. O ocidental tornou-se um verdadeiro cidadão do mundo, conhecedor da vida íntima das celebridades nacionais e internacionais, sabendo mais das mudanças climáticas da Antártida do que sabe sobre o manual de sua televisão. A partir do final do século XX, constata J. Arduini, juntamente com a intensificação da informática e os avanços da internet, houve uma intensa globalização neocapitalista e um surto místico-psíquico-religioso.[3]

Essas mudanças, como é de se esperar, causam um impacto profundo no ser humano, suas relações e em suas concepções sobre a cultura, a ciência, a técnica e a moral.[4] Trata-se de uma mudança que, no dizer de Arduini, leva a preferir a intuição à racionalidade, a experiência subjetiva aos sistemas metafísicos, a cultivar o emocionalismo, o sincretismo, o prazer, e em contrapartida a tolerância à economia, que de maneira imoral, deteriora populações inteiras.[5] É desafiante o complexo quadro instaurado no ocidente acerca das instituições garantidoras de referenciais para a sociedade (política, família e religião).

Neste quadro está inserida a igreja, que de maneira nenhuma passa imune ao seu tempo e a decorrente liquidez. E é neste contexto que a administração eclesiástica se inscreve. Aparentemente um caminho se impõe à igreja neste momento: abraçar a cultura globalizada neocapitalista. Adentrando a lei do mercado, que segundo Bauman é marcada pela produção e consumo imediato.[6]

Ao assumir a cultura neocapitalista tende a se autocompreender como uma empresa, dessa forma as bases em que fundamenta suas ações estão ligadas não nas Sagradas Escrituras, mas as normas da efetividade impostas pelo mercado, como teorias da administração e marketing. E como bem salienta Michel Sandel[7], não há um limite claro sobre a moralidade do mercado. Que para Bauman e Donskis[8] se manifesta na perda da sensibilidade diante do imperativo do consumo e a consequente falta de critérios. E esse sintoma pode ser percebido por algumas estruturas denominacionais que trabalham por franquias, e não medem esforços para angariar fundos. Ou ainda no forte apelo para o crescimento numérico de membros e participantes, julgando assim que por meios mercadológicos de oferta e procura, qual é a melhor igreja. Tema muito presente na literatura focada em evangelismo e pela contemporânea matéria, em seminários e faculdades de teologia, intitulada crescimento de igreja.[9]

Como afirma João R. Buhr[10], “Para conseguirem aumentar de tamanho, muitas vezes, são administradas como empresas. É cada vez mais comum aplicar métodos empresariais para obter resultados satisfatórios”. E a resultante da apropriação deste método é demonstrada por Buhr no sofrimento dos pastores. E acrescento aqui não só o sofrimento dos pastores, mas também de toda a comunidade que sofre juntamente com a pressão por resultados.

Faz-se necessário perguntar se esta situação deve ser aceita ou refutada? O que proponho neste caminho de liquidez é o encontro de uma rocha forme. Mesmo que o tempo presente seja marcado pela moral do mercado, a igreja deve ser marcada pela moral bíblica, e nela ter o seu fundamento. Vejamos então a moral cristã.

A MORAL CRISTÃ A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE CRISTO

A fé cristã é elaborada a partir da vida e dos ensinamentos de Jesus de Nazaré que estão reunidos num conjunto de quatro livros bíblicos chamados de Evangelhos. Jesus Cristo é tido como o filho de Deus encarnado, o Messias prometido e esperado pelo Antigo Testamento, qual libertaria o seu povo da tirania na fundação de um reino de paz e amor. No seu tempo de vida e ministério na terra percorre as ruas da Palestina pregando o evangelho das boas novas, anunciando a chegada do Reino de Deus. Cristo resignifica as antigas leis judaicas, dadas por Deus no monte Sinai para Moisés, não as invalida, mas apresenta que a lei mais importante é o amor. Aqui está a novidade trazida que os homens deveriam amar a todos, inclusive seus inimigos.

No cristianismo a conduta do homem deve ser guiada pela compaixão e misericórdia, da mesma forma que encontramos na moral hebraica. Um bom exemplo é o evangelho de Mateus, nele o evangelista organiza as boas novas de Cristo em cinco ciclos de discurso. No primeiro ciclo encontramos uma sequencia de capítulos conhecido como Sermão da Montanha, Mateus 5-7, no qual podemos observar que existe uma inversão de valores, pois inicia com as, Bem Aventuranças, valorizando os pobres de espírito, os que choram, os humildes, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os pacificadores, os perseguidos e todos os que sofrerem pelo nome de Cristo. A todos estes é prometido consolo, paz e felicidade no Reino de Deus. Confira o texto:

Vendo as multidões, Jesus subiu ao monte e se assentou. Seus discípulos aproximaram-se dele, e ele começou a ensiná-los, dizendo: “Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o Reino dos céus. Bem-aventurados os que choram, pois serão consolados. Bem-aventurados os humildes, pois eles receberão a terra por herança. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão satisfeitos. Bem-aventurados os misericordiosos, pois obterão misericórdia. Bem-aventurados os puros de coração, pois verão a Deus. Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, pois deles é o Reino dos céus. “Bem-aventurados serão vocês quando, por minha causa os insultarem, perseguirem e levantarem todo tipo de calúnia contra vocês. Alegrem-se e regozijem-se, porque grande é a recompensa de vocês nos céus, pois da mesma forma perseguiram os profetas que viveram antes de vocês” (Mateus 5.1-12). 
Cristo afirma também que a justiça de seus seguidores deve ser superior a dos fariseus, os líderes judaicos conhecidos por sua rigorosa prática religiosa, e que sua conduta deveria ser de humildade, pois assim seriam exaltados no Reino (Cf. Mateus 5.17-20). Neste capítulo cinco ensina que a ira possui o mesmo peso do homicídio. O adultério é cometido pela intenção do coração e não pela prática do ato. E de forma espantosa o amor deve ser a todos, inclusive aos inimigos, visto que neste momento Israel pertence a Roma e sofre com a invasão e perseguição. Coloca assim que o cristão ao ser agredido deve dar a outra face e não buscar a vingança, pois seu padrão de conduta é a próprio Deus (Cf. Mateus 5.21-47).
Jesus ensina ainda que os dois maiores mandamentos são amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo:

Respondeu Jesus: “‘Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento’. Este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo é semelhante a ele: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mateus 22.37-40).

Assim por esta nova lei, a do amor, Cristo apresenta um novo projeto de vida para seus seguidores, abrindo um novo campo na moralidade não sendo somente externa, mas interna partindo das intenções do ser humano. Estritamente teocêntrica, o centro está, então, para as intenções do discípulo.

O projeto de vida dos antigos gregos era baseado na felicidade (eudaimonia) na polis. Dos quais Aristóteles afirma “todo o saber e toda intenção têm um bem por que anseiam […]. Tanto a maioria como os mais sofisticados dizem ser a felicidade, por que supõe que ser feliz é o mesmo que viver bem e passar bem”[11], felicidade está posta como um esforço político por parte do homem em suas ações[12]. Já o seguidor de Cristo tem sua felicidade em uma vida futura. Esta sua nova vida começa agora e é fundamentalmente marcada pelo amor e compaixão. Ele espera ansioso, em meio aos sofrimentos, a volta de seu Senhor e a manifestação pela de seu Reino eterno (Cf. Romanos 8.18-25).

Cristo levou seus ensinamentos até as últimas consequências. Sofreu uma morte de cruz e assim afirmando que o mais importante é o amor, pois do que explica o apóstolo Paulo em sua carta aos romanos: “Mas Deus demonstra seu amor por nós: Cristo morreu em nosso favor quando ainda éramos pecadores” (Romanos 5.8).

Passamos agora a considerar o legado desta nova moral no mundo em que estava inserido. Um projeto audacioso como este e de sua magnitude de forma nenhuma pode passar despercebido e nem deveria. Jesus afirma no fim do Evangelho de Mateus que suas palavras deveriam ser ensinadas a todos, temos um projeto de vida para toda a terra, e não somente para um seleto grupo de pessoas. Nas palavras do evangelho: “Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a obedecer a tudo o que lhes ordenei” (Mateus 28.19,20).

CAMINHOS PRÁTICOS

Baseado, então, nos ensinamentos dos evangelhos e dos apóstolos, que se encontram nos outros livros do novo testamento, e a partir da uma experiência de Jesus do Antigo Testamento, temos que o projeto de vida cristã para o ser humano é composto da seguinte maneira: quanto a sua existência deve ser para a glória de Deus (Cf. 1 Coríntios 10.31); quanto ao seu relacionamento com as outras pessoas, independente com quem e onde esteja, deverá seguir a regra do amor incondicional (Cf. Mateus 22.36-40); sua relação com a natureza e o mundo criado deverá seguir a lei do amor e do respeito, visto que ele é criação de Deus e ele, o ser humano, é posto como um administrador (Cf. Gênesis 2.15); e quanto a morte esta é somente uma passagem para a verdadeira vida, a eterna, no qual aquele que seguir o projeto de vida da moral cristã terá a paz e o consolo prometidos, já os que não o fizeram passarão a eternidade em sofrimento (Cf. Apocalipse 21.1-8).

Desta maneira encontramos um fundamento moral inegociável para a igreja, como afirmou o Concílio Vaticano II: peregrina e por natureza missionária.[13] Como peregrina ela está atravessando o tempo e não presa a ele. Por isso não pode se deixar dominar pelas estruturas e visões preponderantes, ou imperativas, de determinada cultura. Mas sim agir a partir de sua natureza como uma missionária que traduz a sua mensagem, de tal forma que aqueles que passam por seu caminho são transformados a partir do fundamento de Cristo. Essa transformação é profunda e trabalha no interior do ser, transformando a cosmovisão, aquilo que baliza o agir.

O retorno ao fundamento bíblico-moral da igreja é um imperativo, visto que a crise de sua identidade é geradora da falta de credibilidade diante da sociedade, de dar respostas insuficientes ao sofrimento econômico, ao desespero das massas, a intolerância religiosa, que num crescente protagoniza o empoderamento dos discursos de ódio. E por fim, responder a sociedade brasileira por meio de uma teologia pública que contemple a política apartidária. Mesmo a situação vigente sendo imperativa, algumas dicas e são bem vindas.

Em primeiro lugar, ampliar o debate. Os teólogos e pastores precisam levar o debate sobre a igreja, sua função e fundamento, para os leigos. De forma que todo o corpo vivo de Cristo possa refletir sobre sua práxis. A partir de livre exame das escrituras constatar, e obviamente encorajar, a reflexão profética da realidade.

Em segundo lugar, fazer uma diagnóstica da realidade. Para Dunker a “’racionalidade diagnóstica’ opera cifrando, reconhecendo e nomeando o mal-estar em modos mais ou menos legítimos de sofrimento, e secundariamente, estipulando, no interior destes, as formas de sintoma”.[14] Assim a igreja precisa identificar a articulação entre sintoma, sofrimento e mal-estar. Saber onde ela pode ser a resposta e onde ela é a causadora do sofrimento.

Em terceiro lugar, deixar o método. Coma importação irrefletida da teologia, ou prática, evangelical norte-americana o método torna-se o fim em si mesmo. De forma que os líderes eclesiásticos e o povo da igreja são apenas usados para atingir metas e números. A partir de técnicas utilitaristas a pessoa humana é diluída em cálculo frio e vil. O método deve ser deixado de lado e as palavras e prática de Jesus devem ocupar o seu lugar por definitivo: a salvação do sujeito, de maneira integral, é o começo, o meio e o fim.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A igreja fundada por Cristo com o passar do tempo teve muita dificuldade em manter suas raízes e fundamentos. Seguidamente procurou sempre se adaptar a cosmovisão vigente. Martin Dreher[15] destaca a tradução da fé inicial dos cristãos palestinos para a cultura helênica, depois a latinização dos pais apostólicos, a germanização decorrente das invasões e missões ao povo bárbaro, os conflitos da reforma e contra-reforma, o advento do iluminismo e hoje destacamos a absorção, inacreditável, da moral relativista e insensível do neocapitalismo pós-moderno.

Nossa abordagem procurou apresentar à realidade imposta à igreja e, à luz da Palavra de Deus, repensar novas soluções para os novos desafios ligados à moral neocapitalisa que adentrou os portões das igrejas evangélicas brasileiras. Esses desafios são novos e decorrentes da pós-modernidade, e têm atravessado diversas denominações. A partir desses, pode-se pensar uma moral bíblica para a igreja fundamentada nas palavras de seu Senhor e Salvador.

REFERÊNCIAS

ARDUINI, Juvenal. Antropologia: ousar para reinventar a humanidade. São Paulo: Paulus, 2002.

ARISTÓTELES. Ética a Nicomaco. São Paulo: Editora Atlas, 2009.

BÍBLIA SAGRADA. Nova Versão Internacional. Sociedade Bíblica Internacional. São Paulo: Editora Geográfica, 2000.

BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

________________. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BAUMAN, Zigmunt; DONSKIS, Leonidas. Cegueira Moral: a perda da sensibilidade na modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

BUHR, João R. Igrejas ou empresas? Uma breve reflexão sobre o sofrimento causado a pastores quando igrejas são tratadas como empresas. Protestantismo em Revista, Vol. 40 (2016

DREHER, Martin N. História do povo de Deus: uma leitura latino-amaricana. São Leopoldo: Sinodal, 2011.

DUNKER, C. I. L. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil ente muros. São Paulo: Boitempo, 2015.

MONDIN, Battista. Antropologia teológica. São Paulo: Paulus, 1979.

MUZIO, Rubens. O DNA da Igreja: comunidades cristã transformando a nação. Curitiba: Esperança, 2010.

SANDEL, Michael. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

VATICANO. Documentos do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulus, 2002.
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NOTAS

[1] Moral, que possui sua raiz no termo latino, mores (hábitos, costumes). Por isso é possível falar de uma moral cristã, estes são os costumes e hábitos próprios desta religião.

[2] BAUMAN, 2001, p. 9.

[3] ARDUINI, 2002, p. 13.

[4] MONDIN, 1979, p. 46.

[5] ARDUINI, 2002, p. 13.

[6] BAUMAN, 2009, p. 8,9.

[7] SANDEL, 2012, p. 19.

[8] BAUMAN,DONSKIS, 2014, p. 158.

[9] MUZIO, 2010, p. 161.

[10] BUHR, 2016, p. 111-122.

[11] ARISTÓTELES, 2009, p. 20.

[12] ARISTÓTELES, 2009, p. 37

[13] VATICANO, p. 314.

[14] DUNKER, 2015, p. 20.

[15] DREHER, 2011.

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