segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Reforma, Calvino e Economia

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A influência da Reforma Protestante para o desenvolvimento do capitalismo é alvo de não pequena controvérsia no mundo acadêmico. Ela tem servido especialmente para enfatizar o papel da religião nas relações econômicas. O debate tende a buscar respostas na polarização entre a história dos países influenciados pela Reforma, mais ao norte da Europa, e os países católicos romanos, mais próximos do mediterrâneo, razão pela qual também é grande a tentação de reduzir o debate a uma briga de torcidas, quando os interessados são influenciados pelo denominacionalismo estrito. A controvérsia por vezes toma a forma de uma rivalidade mimética, pela qual pressupõe-se que a verdadeira religião cristã é aquela mais afinada às verdades econômicas – um parâmetro que não deixa de ter alguma relevância, visto que o cristianismo, ao contrário de outras religiões, é também uma religião histórica preocupada com uma cosmovisão coerente com a realidade concreta.

É comum que o debate seja resumido a lugares-comuns. Não se pode dizer que “o protestantismo criou o capitalismo”; isto seria uma caricatura de um problema complexo, com um número maior de fatores impossíveis de serem reproduzidos em laboratório e que na verdade começou a mostrar-se um pouco antes da Reforma em si. A tese de Max Weber hoje divide lugar com várias outras, como as de Richard Easterlin e R.H. Tawney, de forma que não apenas a “ética protestante” do trabalho é um fator determinante para o desenvolvimento do capitalismo entre os países protestantes, em contraste com o crescimento menor de países católicos romanos. Fatores como educação-tecnologia, secularização, posição estratégica no período colonial e organização política são também importantes. 

Dentre esses, primeiro, o incentivo à educação-tecnologia também pode ser mais corretamente relacionado à Reforma que sempre impulsionou a educação das massas com o propósito de torná-las aptas para um contato direto com as Escrituras, inclusive com o desenvolvimento de uma educação pública. Alguns teóricos com tendências marxistas talvez queiram enxergar isso como uma desculpa religiosa para mascarar o puro interesse de criação de uma classe mais tecnicamente preparada para o trabalho, mas isso provavelmente não seria nada além de uma manifestação de sua maledicência e seu espírito antagonista à religião ‘per se’. O fato é que no século XIX os países protestantes possuíam níveis proporcionalmente maiores de educação primária. Embora os secularistas tenham se apropriado desse legado da Reforma, moldando-o à sua própria educação humanista, o impulso inicial foi certamente religioso. A urgência entre a necessidade de ensino bíblico na consciência dos protestantes em contraste com doutrinas como a da Fé Implícita, segundo a qual os leigos não necessitam de um conhecimento objetivo e crescente das doutrinas e da Escritura, confiando antes esse papel somente à Igreja, certamente fez a diferença. Efeitos secundários da Reforma, como o papel de John Wesley e do metodismo, que, segundo historiadores, por causa de seu conservadorismo no que concerne à autoridade e seu trabalho educacional, impossibilitou uma versão inglesa da Revolução Francesa, e, embora com diferenças, o papel do pentecostalismo na América Latina, podem servir como parâmetro para compreensão daquele fenômeno.

Em segundo lugar, paralelamente, o papel do secularismo também merece atenção. Antes da Reforma, como veremos a seguir, o cristianismo serviu como um freio à acumulação de capital. Desde o século XVIII, os países protestantes começaram a sofrer um processo crescente de secularização, relativamente mais lento nos países católicos pós-Contrarreforma, o que significou uma libertação do comércio de suas antigas amarras morais. Os países católicos romanos, a partir do século XIX, e mais especialmente no século XX, têm presenciado um crescimento econômico paralelo ao dos países protestantes também em virtude de seu grau de secularização. 

Em terceiro lugar, deve-se levar em consideração a posição estratégica de países protestantes e católicos, que beneficiaram-se da colonização, mas que produziram efeitos econômicos distintos entre a própria população. Embora Portugal e Espanha tenham sido potências pioneiras, sua colonização não produziu uma classe mercantil forte a ponto de exigir mudanças, o que aconteceu em países protestantes como a Inglaterra e a Holanda. Essas potências navais puderam produzir efeitos distintos dentro de seus territórios. Isso leva-nos, em quarto lugar, a reconhecer as diferenças de arranjos políticos desenvolvidos. Nesse caso, também, as diferenças teológicas vêm à tona. Os países influenciados pelo calvinismo, por causa de sua doutrina de resistência civil através de magistrados menores, tenderam a desenvolver teorias políticas descentralizadoras e, no caso específico da Holanda, mais tolerantes. Em contraste, os países católicos tenderam à centralização. Um fator a ser estudado nesse contexto é a participação da Contrarreforma nesse processo, com a reafirmação das hostilidades medievais ao livre mercado e a defesa de rigor e controle nas relações econômicas. A Contrarreforma talvez explique a razão pela qual a Itália, por exemplo, perdeu a corrida do avanço econômico já que, antes da Reforma, em virtude do rebento secularista da Renascença, ela chegara a ser o centro da riqueza da Europa. Muitos comerciantes da ‘orbis catholicus’, de espírito erasmiano (i.e., humanista) foram para países protestantes em busca de condições menos hostis.

Se todos esses fatores tornam a situação mais complexa, mais ainda é quando se tenta ser mais específico do que a categoria “protestantismo” permite. E mais ainda quando se busca a influência inequívoca de um único teólogo, Calvino. 

De certo, como percebe Murray Rothbard, economista, Lutero e Calvino têm basicamente as mesmas opiniões, exceto em duas questões: o conceito de “vocação” e a interpretação da lei da usura. O economista ressalta que o conceito de vocação foi mais desenvolvido entre seus herdeiros puritanos, razão pela qual a contribuição mais marcante da pessoa de Calvino, especificamente, está em sua interpretação da lei da usura. Ela torna-se mais compreensível quando confrontada com as interpretações de seus predecessores.

Primeiro vejamos algumas passagens levantadas pelos teólogos na história da igreja no concernente à usura. Em Levítico 25:35-38, temos:

E, quando teu irmão empobrecer, e as suas forças decaírem, então sustentá-lo-ás, como estrangeiro e peregrino viverá contigo. Não tomarás dele juros, nem ganho; mas do teu Deus terás temor, para que teu irmão viva contigo. Não lhe darás teu dinheiro com usura, nem darás do teu alimento por interesse.
Eu sou o Senhor vosso Deus, que vos tirei da terra do Egito, para vos dar a terra de Canaã, para ser vosso Deus.” [Levítico 25:35-38]

Em Deuteronômio 23:19-20 (um sumário de Deuteronômio 15:1-11):

A teu irmão não emprestarás com juros, nem dinheiro, nem comida, nem qualquer coisa que se empreste com juros. Ao estranho emprestarás com juros, porém a teu irmão não emprestarás com juros; para que o Senhor teu Deus te abençoe em tudo que puseres a tua mão, na terra a qual vais a possuir.” [Deuteronômio 23:19,20]

E em Êxodo 22:25:

Se emprestares dinheiro ao meu povo, ao pobre que está contigo, não te haverás com ele como um usurário; não lhe imporeis usura.” [Êxodo 22:25]

Desde, infelizmente, os Pais da Igreja, essas passagens têm sido terrivelmente mal interpretadas. Já no Primeiro Concílio de Nicéia, vê-se a questão da usura sendo mencionada e aplicada para os leigos nos concílios seguintes. Desde Platão e Aristóteles, mas também em romanos como Cícero, Plutarco e outros, a tradição desenvolvida enxerga o interesse econômico como mal em si mesmo, e que o usurário e o banqueiro são os piores inimigos da civilização, condenados até como conspiradores – embora os gregos antes deles praticassem empréstimos a juros. Os conceitos de virtude e vício dos filósofos e pagãos influenciaram a igreja e fizeram da crítica à usura o conselho dominante até os dias de Calvino, especialmente populares na Idade Média. Para Aristóteles, o dinheiro não era um bem improdutivo. Tomás de Aquino, seguindo-o, condenou qualquer prática de juros como se fosse uma venda repetida do mesmo objeto. Para ele, “Receber usura pelo dinheiro mutuado é, em si mesmo, injusto, porque se vende o que não se tem; donde nasce manifestamente uma desigualdade contrária à justiça.” [1] Lutero também manteve opinião desfavorável aos juros.

As consequências disso são evidentes até os nossos dias. Os banqueiros são vistos como conspiradores, até mesmo por conservadores. Na época, os cristãos eram proibidos de fazer empréstimos uns aos outros. Os judeus, por outro lado, tornaram-se a fonte de empréstimo para cristãos. 

A grande mudança veio primeiro com Calvino. Rothbard admite que:

“Calvino começou com uma ampla defesa teórica da tomada de interesse e então cercou-a de qualificações; os liberais escolásticos começaram com uma proibição da usura e então qualificaram-na. Mas enquanto na prática os dois grupos convergiram e os escolásticos, descobrindo e elaborando o banimento da usura sobre exceções, foram teoricamente mais sofisticados e frutíferos, a quebra formal do banimento promovido por Calvino foi um avanço no pensamento e na prática ocidentais.” [2]

Para Calvino, a condenação do interesse pelos filósofos e romanos não tinha respaldo bíblico. A passagens que falavam sobre a usura de nenhuma forma eram uma condenação da usura em si, mas, antes uma lei que visava garantir a caridade ao irmão necessitado. Em seu comentário de Êxodo 22:25, Calvino escreveu:

“A questão aqui não é sobre a usura, como muitos têm falsamente pensado, como se Ele nos comandasse a emprestar gratuitamente, e sem qualquer expectativa de ganho; mas, no ato do empréstimo, a vantagem privada é geralmente buscada, e portanto nós negligenciamos o pobre; e emprestamos nosso dinheiro apenas ao rico, de quem esperamos alguma compensação. Cristo lembra-nos que, se nós buscamos adquirir o favor do rico, nós não atestamos qualquer prova de caridade ou misericórdia; e daí reside a proposta de outro tipo de liberalidade, que é simplesmente gratuita, na assistência ao pobre, não apenas porque nosso empréstimo é arriscado, mas porque eles não podem dar um retorno em espécie.”[3]

É preciso ressaltar que essa lei atravanca em muito o banimento da usura. Não é um banimento total, mas apenas para o “irmão pobre”. Não é sequer todo e qualquer irmão, mas apenas o necessitado. Outro erro de Aquino nessa questão é não perceber essa limitação e estender a irmandade cristã e pactual para todos os homens. Ele disse que “Aos judeus foi proibido receber usura dos seus irmãos, isto é, dos Judeus. Por onde se dá a entender que receber usura de quem quer que seja é sempre mau; pois, devemos considerar a todos os homens como próximos e irmãos.” [4] Nem o recebimento de usura foi proibido a todos os irmãos, nem muito menos consideramos todos os homens como irmãos.

Um outro argumento defendido por Calvino é a nossa situação civil diferenciada em relação ao povo do Antigo Testamento. Agora, as nossas leis devem basear-se na equidade, não fazendo sentido, portanto, desde que a usura em si não é má, sustentar tal proibição. Rothbard aponta corretamente uma inconsistência de Calvino nessa questão, pois, ao mesmo tempo em que Calvino dizia que todas as profissões glorificavam a Deus, criticou quem trabalhasse profissionalmente com usura. A despeito disso, Calvino continuou condenando os exageros nas taxas e seu padrão ficou internacionalmente conhecido como o “contrato alemão”.

Em comparação, mesmo a contragosto de empreendedores do ‘orbis catholicus’, o parecer da Igreja de Roma continuou negativo a respeito da usura por algum tempo. Apenas em 1745 o papa Bento XIV começou a rever o posicionamento da igreja na encíclica Vix Pervenit.

Cem anos depois de Calvino, o teólogo holandês Claude Saumaise quis corrigir ainda alguns erros restantes sobre a usura, chegando ao ponto de permitir a usura a pobres. Segundo ele, quanto mais pessoas pedindo empréstimos, mais a concorrência faria com que as taxas de juros caíssem e se tornassem mais acessíveis. É uma solução pragmática. Entretanto, talvez alguma discussão seja necessária sobre isso. De acordo com o teólogo Rousas J. Rushdoony, a lei que proíbe a usura para irmãos pobres tem um objetivo comunitário muito importante: ela garante a existência da caridade e impede que a comunidade perca seu senso de unidade para o mais brutal individualismo. Rushdoony argumenta que Deus não criou essa lei arbitrariamente, razão pela qual não podemos supor que nossa lógica econômica seja superior à intenção de Deus ao promulgá-la. Para Rousas, de igual modo, as leis que protegem a caridade são mais direcionadas às pessoas próximas de cada indivíduo, principalmente os empregados mais pobres, exatamente por esse motivo. 

Semelhantemente, não devemos enxergar em Calvino um grande capitalista. Apesar de suas defesas nesse ponto, Calvino ainda tinha uma opinião hostil aos homens de negócios, que, em sua visão, esperam catástrofes a fim de aumentar os preços de seus produtos. De certo, alguns de seus conselhos hoje seria reprovados por uma visão econômica liberal mais salutar. Em Genebra, sabe-se que o preço do pão foi regulado por um período. Ele também defendeu a saúde pública. Lutero também, em geral, apoiou o controle estatal de preços. O efeito prático, contudo, da correção da interpretação da lei da usura por parte de Calvino, segundo Rothbard, foi que ela “transferiu a responsabilidade da aplicação de ensinamentos sobre a usura da igreja ou do estado para a consciência individual”. Não apenas a lei da usura promoveu isso, mas o desenvolvimento das teorias políticas dos calvinistas culminou, gradualmente, para a legitimação de contratos livres; a doutrina pactualista (ou aliancista) é emblemática nesse sentido. A teologia calvinista desenvolveu-se cada vez mais rumo à liberdade de contrato e os puritanos, através de experiência e revisão teológica, cada vez mais buscaram bases bíblicas para a liberdade econômica (vejam o texto que escrevi sobre a colônia de Plymouth aqui).

Quando fala-se da importância do aristotelismo ou do tomismo para o desenvolvimento da ciência econômica, isso não significa que tudo o que Aristóteles ou Tomás de Aquino escreveram sobre o assunto está correto. Semelhantemente, podemos falar da importância do calvinismo sem com isso defendermos que esse sistema tenha acertado em tudo. Calvino nunca escreveu qualquer tratado sobre economia. Seu dom ímpar de interpretação, contudo, permitiu que ele produzisse um grande impacto com apenas poucos parágrafos sobre a usura. Fica evidente que o protestantismo forneceu alguns elementos que, embora não tenham sido suficientes para a criação do capitalismo, foram cruciais para a criação de um ambiente no qual, aliado a outros fatores, ele se desenvolvesse. Talvez a Contrarreforma tenha atrapalhado um pouco o desenvolvimento de países católicos, caso o processo de secularização do Renascimento tivesse seguido em frente. Tal processo, infelizmente, também é muito danoso. Um capitalismo divorciado da ética cristã só tem produzido gerações de jovens ansiosos e frustrados. A retirada da base cristã das relações econômicas já cobra o seu preço no mundo de várias maneiras.

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Notas:
[1] AQUINO, Tomás de. Em “Suma Teológica”, Q. 78, art.1.
[2] ROTHBARD, Murray. Em “An Austrian Perspective on the History of Economic Thought, vol. 1, Economic Thought Before Adam Smith.” Veja aqui:https://mises.org/library/economics-calvin-and-calvinism
[3] CALVINO, João. Em “Commentary on Pentateuch”, Ex 22:25.
[4] AQUINO, Tomás de. Em “Suma Teológica”, Q. 78, art.1.

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Autor: Antonio Vitor
Divulgação: Bereianos

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